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Arte religiosa no Brasil: a construção de um passado

Capítulo 4 A pintura religiosa de Pennacchi na Modernidade Brasileira

4.1 Arte religiosa no Brasil: a construção de um passado

No fim da década de 1920, duas correntes artísticas dividiam o ambiente artístico da cidade de São Paulo: de um lado, os acadêmicos e de outro, os modernistas. Os primeiros, herdeiros da tradição acadêmica do século XIX, ainda defendendo a repetição de uma estética acadêmica já consagrada na reiteração de esquemas pictóricos e na busca pelo virtuosismo, eliminando o direito de pesquisa, e consequentemente de atualidade da criação artística; enquanto que os modernistas, rompendo com as normas e a estética acadêmicas, buscavam “o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional” (ANDRADE, Mário, 2005, p. 244-245)99.

Estes três princípios que embasaram o movimento modernista se inserem dentro da intenção dos modernistas de romper com o passado acadêmico e em buscar o que seria a verdadeira expressão artística nacional. Reivindicavam uma arte moderna que refletisse a sociedade, o coletivo, e não os valores particulares do artista. Esta não devia estar nem a serviço de uma religião

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1973 apud BARDI, 1980, p 42.

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Segundo Mário de Andrade, estes são os três princípios fundamentais do movimento modernista.

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institucional nem também constituída de maneira autônoma como forma de espiritualidade individual, recusando-se a ser “serva da religião, do Estado, das Igrejas, dos príncipes, dos nobres e finalmente dos ricos” (PEDROSA, 2005, p. 282).

Assim, a arte moderna devia ser o veículo de formação de uma inteligência estética fundada na coletividade, onde a atualidade, a nacionalidade e a universalidade se faziam presentes no sentido em que o homem e sua condição político-social estavam a serviço de uma coletividade.

Em sua busca por forjar uma arte moderna nacional, os modernistas se voltaram para o passado na intenção de encontrar as primeiras manifestações artísticas realmente nacionais. Acabaram elegendo o Barroco como o único momento anterior ao modernismo em que se teve uma arte realmente nacional (ANDRADE, Mário, 1993, p. 50 e 89)100.

Tal ideia foi defendida por Mário de Andrade em seu ensaio “A arte religiosa no Brasil”101. Nele, o crítico se refere a uma “arquitetura religiosa”, a uma

“arte cristã” inserida e realizada num período em que a sociedade estava regida por um espírito religioso. Assim, uma vez que a arte barroca reflete o valor que

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Com a intenção de identificar traços do passado histórico e artístico brasileiro, do que seria a arte genuinamente brasileira, Mário de Andrade realiza duas viagens às cidades históricas de Minas Gerais. A primeira em junho de 1919 e a segunda em abril de 1924, da qual fizeram parte, além de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e seu filho Nonê, Tarsila do Amaral, René Thiollier, Olívia Guedes Penteado, Goffredo Telles e Blaise Cendrars (NATAL, 2007, p. 193-207).

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Neste ensaio publicado originalmente na Revista do Brasil em 1920, produto de sua viagem realizada em junho de 1919 às cidades históricas de Minas Gerais e alcançando seu objetivo de encontrar uma arte genuinamente brasileira, o crítico (ANDRADE, Mário, 1993, p. 50) elege como representantes de uma arte nacional os conjuntos arquitetônicos da Bahia, do Rio de Janeiro e em especial de Minas Gerais (“a mais característica arte religiosa do Brasil”) datados da segunda metade do século XVIII, e as obras dos artistas: Chagas, também conhecido como “o Cabra”, na Bahia; mestre Valentim, no Rio de Janeiro e Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, em Minas Gerais.

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impregnava a sociedade da época, isto é, a religiosidade, esta arte barroca é a expressão de uma identidade nacional brasileira.

Nas palavras do crítico (1993, p. 78-80), a “mais característica arte religiosa do Brasil” aparece em Minas Gerais onde a Igreja, geograficamente mais distante das influências de Portugal, pôde realizar um estilo “mais uniforme, mais original”, tomando um caráter mais nacional que a de outros centros como o Rio de Janeiro e a Bahia. Tal estilo se caracteriza pela linha curva, elementos contorcidos e a decoração que se insere nas fachadas, colunas e naves.

Devemos perceber que a eleição pelo modernismo de uma arte religiosa como a primeira manifestação artística realmente brasileira se dá segundo o pensamento moderno do novo, do original e da ruptura em relação a um estilo barroco importado da Europa. Como Mário de Andrade (1993, p. 47) escreveu, o nosso barroco era “mais simples, mais pobre e menos pedantesco” do que o barroco europeu.

Temos, assim, em pleno despertar do movimento modernista, uma arte religiosa enaltecida enquanto um patrimônio genuinamente brasileiro, nacional, a ser preservado.

Porém, se enaltecida, tal arte era também considerada pelo crítico (1993, p. 44) um “fóssil”, realizada no século XVIII, pertencente a um passado que não existia mais. Devia ser estudada como uma primeira manifestação artística nacional, uma fonte primária da cultura brasileira, cuja temática religiosa refletia o momento histórico e a sociedade brasileira do século XVIII, porém não refletia a sociedade brasileira moderna.

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Desta forma, se de um lado o modernismo valorizou uma arte religiosa realizada em meados do século XVIII, por outro lado não valorizou a arte religiosa moderna.

Não só não valorizou como também, por uma consciência coletiva nacional e em oposição às instituições e às técnicas acadêmicas consolidadas, o modernismo apregoou a ruptura entre arte e qualquer valor espiritual, incluído o religioso. Tal pensamento se faz evidente no “Manifesto Antropófago” onde Oswald de Andrade (2005, p. 227-231) se insurge “contra todos os importadores da consciência enlatada”, “contra as catequeses”, “fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama”, “contra a verdade dos povos missionários [...] – é a mentira muitas vezes repetida”.

Mas é importante notarmos que se temos aqui o distanciamento entre arte e religião, não temos a negação da existência de Deus, do sagrado e de valores superiores. Percebemos isto neste mesmo manifesto onde Oswald de Andrade (2005, p. 230) afirma que “Deus é consciência do Universo Incriado” e em Mário de Andrade (2005, p. 255) quando afirma:

“Sei que é impossível ao homem, nem ele deve abandonar os valores eternos, amor, amizade, Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana como a que vivemos, cuidar desses valores apenas e se refugiar neles em livros de ficção e mesmo de técnica, é um abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer outro. Uma covardia como qualquer outra. De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também”.

Temos aqui o reconhecimento da existência de valores superiores, como o amor, amizade, Deus, natureza, mas estes devem estar apartados da noção de arte e da realização de uma obra de arte. Pertencem ao universo particular de cada indivíduo, não podendo ser considerados reflexos de uma

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coletividade, do nacional. A arte devia sim assumir a função de formar uma alma nacional, distanciando-se de uma ligação com o espiritual e com o religioso.

Assim, a arte religiosa no século XVIII é permitida pelos modernistas enquanto expressão da coletividade de sua época; já a arte religiosa realizada no início do século XX não o é em razão de não refletir os valores da sociedade brasileira moderna.

Outro ponto que devemos enfatizar é a abrangência alcançada pelo estilo barroco como um estilo nacional, sendo empregado no desenho arquitetônico de igrejas e capelas ao longo do século XX. Mário de Andrade (1993, p. 47) neste mesmo artigo notou que “todas essas igrejas [barrocas], assim como os templos de maior porte, edificados mais tarde, obedecem a uma certa ordem de tipos arquitetônicos que tendo-se vulgarizado por todo o Brasil, tomaram uma feição fortemente acentuada, donde muito bem se poderia originar um estilo nacional”.

Realmente, a eleição da arte religiosa barroca como a primeira manifestação artística nacional pelos modernistas levou a uma “forte associação mental dos termos arte sacra brasileira/estilo Barroco” (BAPTISTA, 2002, p. 180) que se traduziu na construção de igrejas que obedecem ao estilo arquitetônico consagrado no Barroco brasileiro. É o caso, na cidade de São Paulo, por exemplo, da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, inaugurada em 1934, o Santuário Nossa

Senhora do Rosário de Fátima, construída a partir de 1931 e inaugurada em 1932,

da Igreja Nossa Senhora do Brasil, construída a partir de 1942. Trata-se de uma contradição se consideramos que neste mesmo período, como veremos mais adiante, também foram construídas igrejas e capelas sob os princípios da arquitetura moderna.

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