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1 O DEBATE INTERNACIONAL SOBRE A PROFISSÃO DO ARTISTA

1.1 ARTES NO PÓS-GUERRA: TEMPOS DE POLÍTICAS E ANGÚSTIAS

O Pós-Guerra foi um período da história marcado pela construção discursiva e imagética do complexo ideal de polarização do mundo. Neste momento, a Guerra Fria25 surge de forma “labiríntica”, simulando possíveis finalizações da hegemonia europeia na condução do processo cultural ocidental. A grande marca deste período histórico está na elaboração de novos personagens condutores dos caminhos políticos e econômicos do mundo, além da disputa pelo direito de ser hegemônico se materializava nos confrontos ideológicos construídos e monitorados pelos Estados Unidos e a União Soviética.

Os norte-americanos investiram em um novo dispositivo que iria assegurar não somente a hegemonia político-econômica, como também, uma hegemonia cultural sobre a Europa Ocidental e parte do continente americano, que foi a propaganda. Já a União Soviética exercerá semelhante papel sobre a Europa Oriental e vários países da América Central e Latina, disseminando um novo modelo de vida distinto ao do capitalismo. O cenário da polarização erguido pelos dois países fez com que o governo norte-americano programasse uma ofensiva diplomática internacional que os levasse ao papel de condutores do processo cultural ocidental, em contraposição à União Soviética, como medida de combate ao avanço do comunismo.

De acordo com Tony Judt (2008), uma espécie de “Guerra Cultural” era articulada, demarcada por financiamentos pesados nos veículos culturais de maior abrangência na época:

Com uma rapidez que deixaria perplexa futuras gerações, a luta na Europa entre fascismo e democracia mal havia terminado e já fora substituída por uma nova ruptura: a que separava comunistas e anticomunistas. O patrulhamento de posições políticas e intelectuais favoráveis e contrárias à União Soviética não teve início com a divisão da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Mas foi naqueles anos do pós-guerra, entre 1947 e 1953, que a linha divisória entre Oriente e Ocidente, esquerda e direita, foi marcada na vida cultural e intelectual da Europa (JUDT, 2008, p. 209)26. No campo das artes plásticas, o território passa a se dilatar para acompanhar as situações problemáticas de diversas linguagens visuais. Os artistas do Pós-Guerra decidiram rever profundamente seus conceitos a partir de uma forma muito mais radical. A arte implodiu social”, lançando o olhar para o choque de forças sociais que move as “lutas de representações” e lançando o olhar para a capacidade que o grupo tem de se fazer reconhecer como unidade e identidade (CHARTIER, 2002, p. 73).

25 A Guerra Fria foi uma disputa contínua entre dois sistemas alternativos de vida, com início em 1945, com a Conferência de Yalta, com um “pseudo encerramento”25 em 1963, com o Tratado de Proibição Limitada de Testes. O primeiro acordo entre Estados Unidos da América (EUA) e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), visava o controle sobre as armas nucleares.

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e explodiu concomitantemente, resultando em inovações, experimentalismos, novas linguagens e ainda todo um hibridismo com outras expressões artísticas, que o tradicional vocábulo das “Artes Plásticas” não conseguia mais abarcar.

Não cabia muito bem no campo das artes plásticas a Performance Art, a Body Art, as Instalações, as Vídeo-Artes, os Happennings, a Poesia Visual, a Fotografia Experimental, as Assemblages e a Land Art, apenas para expor alguns exemplos mais emblemáticos. Nos Estados Unidos, começou-se a se usar o termo Visual Arts, como uma forma de demonstrar que o circuito27 das artes que estava se expandindo no sentido de abarcar essas novas formas de expressão.

De acordo com Benedetta Calandra, a decisão de incluir as artes visuais, no arsenal da Guerra Fria nos Estados Unidos, foi tomada assim que a CIA foi fundada em 1947. Consternada com o apoio que o comunismo tinha entre muitos intelectuais e artistas no Ocidente, a nova agência organizou uma divisão conhecida como: Inventários Ativos de Propaganda (Propagand Assets Inventory), que em seu auge pôde influenciar mais de 800 jornais, revistas e formadores de opinião pública, consequentemente, o movimento ligado ao expressionismo abstrato recebeu um massivo financiamento28.

Serge Guilbaut, em suas pesquisas que cruzam o universo da Guerra Fria e as artes plásticas, acrescenta que no Pós-Guerra os Estados Unidos investiram em alguns suportes capazes de disseminar o projeto político do país, tais como: a crítica de arte, revistas especializadas, museus e exposições e a elaboração do ideal de independência do artista, que significava, além do desinteresse pelo engajamento político, uma independência em relação a Paris e à arte européia como um todo29.

Este investimento expressava a necessidade de criar uma identidade artística “única”, forte, internacional, de modo a explicitar que a arte européia, leia-se, francesa, havia perdido a importância e de mostrar, enfim, que a arte norte-americana havia passado de colonizada à colonizadora.

O primeiro passo teria consistido em se livrar da ideia de arte nacional, que estava associada à produção provinciana e figurativa dos anos 1930. Porém, justamente para parecer

27 Por circuito das artes, entendam-se as instituições culturais, museus, galerias de arte, universidades, mercado editorial e os personagens que compunham esse sistema: críticos, marchands, galeristas, gerentes de instituições, leiloeiros, museólogos, professores de artes, colecionadores e os próprios artistas.

28 Para uma análise mais profunda do campo cultural da América Latina no período da Guerra Fria, indicamos: CALANDRA, Benedetta; FRANCO, Marina. La Guerra Fria Cultural en América Latina. Desafíos y limites para una nueva mirada de las relaciones interamericanas. Buenos Aires: Biblos, 2012.

29 Ver: GUILBAUT, Serge. Respingos na parada modernista: a invasão fracassada da arte abstrata no Brasil. Revista ARS, São Paulo, v. 14, n. 27, 1947-1948, 2016.

internacional e, ao mesmo tempo, distinta da arte feita em Paris, forjando uma nova estética, os artistas precisavam enfatizar seu caráter norte-americano. Nessa medida, para o crítico Greenberg (1950), o artista mais apto a cumprir esse papel era Jackson Pollock30, devido ao evidente vigor de suas pinturas. Greenberg defendia sistematicamente que a pintura fosse violenta e espontânea, por oposição à elegância normalmente associada à pintura francesa (GUILBAUT, 1985).

Do outro lado da disputa estética e ideológica da Guerra Fria estava a produção artística da União Soviética ligada ao Realismo Socialista, com pinturas figurativas, tendência que tomou força na Rússia pós-revolucionária, sobretudo a partir da ascensão de Stalin. Este movimento artístico se posicionava como a nova arte das massas proletárias nas diretrizes da política cultural comum aos diversos partidos comunistas, exercendo bastante influência na produtividade artística de grupos na América Latina e na capital pernambucana nos anos 1950.

O papel das temáticas exercitadas pelos artistas ligados ao Partido Comunista vinha tomando força com as pinturas e gravuras que abordavam diferenças de classes, os trabalhadores urbanos e rurais, sendo a arte tomada como uma arma de combate na luta de classes. No cenário do Pós-Guerra, o artista sentia a necessidade de participar com sua produção por meio da representação da guerra, das revoluções, das perseguições e das injustiças sociais (AMARAL, 1987)31. Nesse sentido, assumir um posicionamento, um papel, passou a ser uma exigência nos meios intelectuais deste período.

O historiador Rodrigo Patto (2014) nos lembra que entre as centenas de milhares de aderentes do comunismo em todo mundo, cabe destacar uma categoria social, os intelectuais e artistas. Segundo o autor, este grupo tinha importância especial para as organizações partidárias, pois ajudava a produzir imagens discursos, ideias e a disseminá-las entre a população, inclusive graças a seu prestígio social. Era fundamental poder dizer que Pablo Neruda, Candido Portinari, Jorge Amado, Pablo Picasso, Oscar Niemeyer, entre outros, pertenciam ao movimento (PATTO, 2013).

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Importante pintor do expressionismo abstrato norte-americano, um dos pioneiros deste movimento artístico, que surgiu nos Estados Unidos na década de 1940. Pollock utilizava uma técnica conhecida como action painting (pintura de ação), caracterizada pela presença de movimento, energia e velocidade.

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Os Clubes de Gravura foram espaços nos quais os artistas discutiam pontos relacionados às artes e, nesse período, como já citamos, a preocupação com o social, relações da arte e do povo eram temas destacados em suas conversas. Fernando Pedreira apresenta os comentários dos artistas do grupo de gravuras de São Paulo sobre o dever de integrar-se à sociedade e compreendê-la amplamente, pois, para eles, “fora disso, caímos no cerebralismo caótico dos abstracionistas. O que é norma em arte é a representação da realidade: a figura humana, os objetos de uso, os animais e a natureza que é o meio em que vive o homem” (PEDREIRA, 1953, p. 20).

O que demarcava a atuação destes agentes, enquanto profissionais do campo artístico capazes de refletir sobre as conjunturas políticas e sociais do mundo Pós-Guerra, era a busca de um sistema teórico explicativo que permitisse repensar as normas e regras de conduta que haviam orientado, até então, as representações de uma realidade brasileira, inclusive nas artes plásticas. O jornalista Geraldo de Carvalho em matéria publicada em 15 de setembro de 1968, no Diário de Pernambuco, descreve suas impressões relativas ao relacionamento dos artistas com aquilo que ele chamava de “Tempo de Angústias”:

Com a utilização da bomba atômica o mundo entrou numa nova fase. Inaugurava-se uma nova era, a da tecnocracia. A máquina querendo sobrepujar o homem. A cibernética trouxe uma contribuição incomensurável e o homem ainda se sente inseguro no emprego de tantas maravilhas científicas que a cada momento ele nas suas pesquisas descobre. O que estamos assistindo é uma revisão geral de todos os valores éticos, religiosos e culturais. A busca incessante de novas expressões tem levado não somente os cientistas, mas também os intelectuais e os artistas a procederem suas pesquisas nos seus campos específicos à procura de uma nova linguagem, seja ela no romance, na poesia, na escultura, no desenho, na pintura. O objetivo do artista atual é integrar-se no seu tempo. O que ele pretende é cada vez mais universalizar-se, que sua obra não seja entendida somente no meio em que vive mais em qualquer outra parte da terra que seja exposta. As reivindicações sociais de hoje não se configuram a uma determinada área, elas ocorrem tanto no Nordeste brasileiro como no Sudeste Africano ou nas republiquetas sul americanas. Os problemas são os mesmos, variando apenas as regiões. O artista de hoje não pode deixar de participar dos acontecimentos do seu tempo sob pena de ser acomodado de ultrapassado ou alienado. Todos estes problemas vêm refletir-se diretamente em sua obra (CARVALHO, 1968, p. 13)32 .

A angústia no campo da psicanálise sinalizava uma forma de vida no limite que necessita derrubar certas visões de mundo, redimensionar o seu campo da experiência (SAFATLE, 2015). A angústia poderia ser uma porta de entrada em novos mundos sociais, podendo também ser, segundo Lacan, idealmente a porta de saída, depois do atravessamento do fantasma (da neurose), o fim da análise.

O artista sinalizava ser um crítico do projeto moderno de mundo e humanidade implantado após a grande guerra. Temáticas como: medo, realidade, bomba atômica, dor, sofrimento e liberdade eram retratados nas obras de arte como quadros que registravam os colapsos das relações éticas e morais. Os artistas que se pretendiam lançar, enquanto profissionais, deveriam ter um domínio sobre estas temáticas em seu regime de temporalidade. Deveriam agir como profissionais capazes de decifrar as ondas sísmicas do turbulento mundo político da segunda metade do século XX, sendo o espaço da UNESCO um

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dos primeiros órgãos mundiais a agenciar este profissional enquanto um potente agente de diplomacias culturais.

E foi no campo cultural da velha Europa que um grupo de artistas resolveu quebrar a polaridade dos projetos estéticos concentrados nas mãos dos Estados Unidos e dos soviéticos deslocando o olhar institucional das obras de arte para a vida dos artistas em diversas partes do mundo, gerando jogos e disputas analisadas no próximo tópico.