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1 O DEBATE INTERNACIONAL SOBRE A PROFISSÃO DO ARTISTA

2.2 PERNAMBUCO S.A

Figura 16: Charge Augusto Rodrigues. Jornal Diário de Pernambuco, 17 ago., 1950.

Na contemporaneidade, a relação entre arte e política estreita-se profundamente ao se considerar as atividades artísticas que se querem políticas ou as práticas políticas que procuram suporte na estética. Ao pensarmos nestes novos horizontes, vemos linhas tênues que se entrecruzam e formam encontros imagéticos de grande carga contextual, direcionando-se a ações para além de meros objetos artísticos.

Arte e política são duas dimensões distintas de realidade. No entanto, mostram-se conectadas e em interação, direcionadas a assuntos de interesse e de questionamento público. No entanto, o clima mundial no Pós-Guerra parece ter direcionado a situação da arte para outros meios e formas de agir. Este artista passa a dialogar diretamente com categorias, que

até então eram repelidas nas elaborações comuns do papel social do artista, como o caso da categoria dos trabalhadores. E na imagem acima vemos, a partir de uma espécie de janela ilustrada, como os artistas pernambucanos se apropriavam dos debates do campo do trabalho, logo no início dos anos 1950.

O chargista Augusto Rodrigues satirizou, em 1950, a política instituída pelo governo Vargas, nomeada como Serviço de Alimentação da Previdência Social, (SAPS). Essa autarquia desenvolveu uma política de combate à fome e à desnutrição no Brasil, que se travestiu por um lado, na criação de restaurantes populares, aos quais se agregava um projeto cultural composto de bibliotecas e discotecas populares. Além de fornecer alimentação barata, o objetivo da instituição era criar na classe trabalhadora, a consciência da necessidade de uma alimentação rica em nutrientes e a mudança de hábitos alimentares105.

Na ilustração, o artista questiona, através de personagens engravatados, damas da elite, cartolas e bengalas, como seria o cotidiano dos ricos em Recife, diante da criação do Serviço de Alimentação. Embaixo da charge o autor descreve:

- Agora, minha filha, vamos comer um beef com fritas na Câmara Federal, mais tarde iremos ver a exposição de pintura na Câmara Municipal e logo em seguida, vamos à Escola de Belas Artes de Pernambuco conversar sobre política (Charge de Augusto Rodrigues, 1950).

A charge, neste momento, surge enquanto crítica temporal a um acontecimento político, além da imagem do alvo que pretende atingir, o discurso chargístico explicita uma crítica à realidade social e política. Ao mesmo tempo, projeta e reproduz as principais concepções sociais, pontos de vista e ideologias em circulação. O passeio do casal pelas ruas do Recife, acompanhados por novos hábitos como o de comer um “beef com fritas” e depois passar pelas Escolas de Belas Artes para conversar sobre política, remete-nos não só às transformações políticas e sociais dos espaços e da coletividade, mas também ao novo agente ligado ao campo das artes plásticas que iria inserir em suas novas práticas profissionais a militância política que formava a categoria de artistas trabalhadores no Pós-Guerra.

A relação entre a arte e a política, de acordo com o sociólogo Miguel Chaia (2008), trata-se de um paradoxal encontro, na qual as partes envolvidas estabelecem instáveis equilíbrios, porém, sempre de fortes intensidades. Por vezes, uma incômoda reunião, outras vezes, uma surpreendente união. A dinâmica que movimenta essa relação é multidirecional:

105 Para se aprofundar nas discussões em torno das políticas do SAPS, ver: FOGAGNOLI, Marcela Martins. “Almoçar bem é no SAPS!”: os trabalhadores e os serviços de alimentação da Previdência Social (1940- 1945). Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2011.

Como todo agir contém um elemento de virtuosidade e o virtuosismo é a excelência que atribuímos à prática das artes, a política tem sido com freqüência definida como uma arte. Não se trata, é claro, de uma definição, mas de uma metáfora, e esta se torna totalmente falsa se incorremos no erro comum de considerar o Estado ou o governo como uma obra de arte, ou como uma espécie de obra prima coletiva (ARENDT, 1981, p. 61).106

Compreender o mundo da arte exige, não somente, uma percepção sobre o objeto artístico, mas fundamentalmente, sobre os agentes sociais envolvidos com a sua produção, circulação e consumo. Requer uma percepção nem tão processual, cujo pressuposto é uma ação coletiva que reúne vários agentes envolvidos diretamente ou não com o fazer artístico. Um mundo repleto de trocas de modelos e debates em torno do novo papel que o artista plástico deveria seguir a partir das novas agendas políticas perante a Guerra Fria que se instaurava. Em Pernambuco, a Escola de Belas Artes nasceu da necessidade de se ter, no Nordeste, um estabelecimento de ensino que atendesse ao interesse público voltado às atuações artísticas, como veremos na última seção da tese.

Nos anos 1950, Recife tentava demarcar setores de um vanguardismo artístico e cultural singulares em relação à produção dos principais centros do país. A produção artística no Recife se aliava ao cenário político da época, completando o “palco” ideal, durante os anos de 1950, para movimentos políticos e culturais que buscavam oferecer melhores condições de educação e cultura para a população marginalizada (CAVALCANTI, 1985)107.

Estes elementos que versam sobre a profissionalização artística, em meio ao campo cultural e político da cidade do Recife, envolviam toda uma ética do trabalho e de valorização da figura do artista trabalhador, além de situar a questão de suas formas de organização profissional e política no Brasil. O problema da organização é, portanto, outra face do processo de criação de uma identidade coletiva entre estes intelectuais. As práticas associativas são a forma de implementar um comportamento operário que abarcava o trabalhador dentro e fora de seu local de trabalho e que opera o sentimento de pertencimento que deve marcar este ator coletivo (GOMES, 2005).

Durante os anos de 1950, o Brasil conseguiu um desenvolvimento econômico mais diversificado, com mudanças no uso econômico da produção industrial, crescimento do

106

ARENDT, H. A Condição Humana. São Paulo: Forense-Universitária, Salamandra Consultoria Editorial e Editora da USP, 1981.

107 “O movimento artístico e cultural de Pernambuco, nos anos 40 e 50, era fértil de cometimentos. Editavam-se revistas e jornais literários, realizavam-se debates entre escritores e artistas plásticos, fundavam-se entidades especificamente de intelectuais, fora do alcance da tradicional Academia Pernambucana de Letras” (CAVALCANTI, 1985, p. 31).

mercado interno, aumento das exportações industriais e maior capacidade de gerar emprego para assalariados. Esse processo, que não encerrou a tradicional dependência das metrópoles, suscitou, todavia, a esperança em um florescimento econômico, cuja ideologia é conhecida sob o nome de “desenvolvimentismo” (NAPOLITANO, 2006, p. 16). Tratou-se, em síntese, do projeto de setores sociais latino-americanos de crescer economicamente mediante um desenvolvimento relativamente autônomo, que, na realidade, era um novo modo de integração dos capitais nacionais na etapa monopolista do intercâmbio capitalista.

A palavra de ordem era a atualização cultural, a busca de um compasso com o mundo desenvolvido. Em outras palavras, atualizar as formas, representações e tecnologias da produção artístico-cultural, cujo modelo era a “cultura” do mundo desenvolvido (NAPOLITANO, 2006, p. 18). Esse ideal converteu-se, na década de 1950, na ambição das elites nacionais de superar o papel agroexportador do país, conseguindo que o desenvolvimento industrial lhes permitisse tirar, da maneira mais racional, o máximo possível de lucros numa economia dependente.

Na produção artística, surgiram fundações patrocinadas por grupos industriais latino- americanos, solidários às empresas multinacionais, e às vezes diretamente por tais empresas, que amparam financeiramente a experimentação de vanguarda e sua promoção internacional108. Dessa maneira, o desenvolvimento tornou-se a nova bandeira de importantes setores da “burguesia” brasileira, que não estavam apenas preocupados com a penetração do capital estrangeiro na economia.

A nova política econômica tinha, no entanto, a oposição de forças nacionalistas e de esquerda e dividia os setores intelectuais e técnicos ligados ao governo e fora dele. O que, por vezes, suscitou a formação de movimentos políticos e culturais a partir da sociedade civil que se organizava. Pernambuco funcionava como um epicentro, um termômetro das agitações regionais, onde foi mais acentuadamente percebido o reflexo do momento histórico nacional, quando ainda nos anos 1950 surgiram importantes iniciativas políticas, que brotaram graças ao clima de agitação desenvolvimentista da época, como é o caso do Congresso de Salvação do Nordeste109, em 1954.

108

Como o caso da criação do Museu de Arte de São Paulo, em 1947, o Museu de Arte Moderna, 1948, e da Bienal de São Paulo em 1951 (NAPOLITANO, 2006).

109 Encontro em que representantes dos governos estaduais, assembléias legislativas, câmaras de vereadores e líderes sindicais estariam reunidos com o objetivo de debater os graves problemas da região. Uma das finalidades do Congresso de Salvação do Nordeste era promover o fortalecimento político de comunistas e nacionalistas, os quais seriam reconhecidos como os pioneiros na luta pela solução dos problemas da região (FERREIRA, 2003).

Não se pode esquecer que é durante os anos de 1950 que se manifestam as tensões políticas e culturais existentes entre os projetos estéticos e pedagógicos de espaços como a Escola de Belas Artes de Pernambuco versus a Sociedade de Arte Moderna do Recife, oposições que se baseavam em modelos de formação e atuação de artistas profissionais. A inserção destes artistas em uma cartografia política e social da região desloca algumas análises para a discussão sobre o papel destes intelectuais em busca da sua profissionalização e de um mercado em meio às tensões políticas e ideológicas do período.

Estas tensões também podem ser identificadas em outros espaços de atuação como o caso dos Salões de Belas Artes de Pernambuco e os Salões de Arte Moderna do Recife110, certames distintos, mas produtores de fortes concepções políticas, guiados por interesses públicos e privados.

A possibilidade de viver do seu trabalho artístico vai sendo conquistada aos poucos por uma minoria, ao ampliar-se um pequeno ou pronto mercado de arte na região, ao expandirem- se os canais de distribuição artística e as instituições dedicadas à exposição e na atuação política destes artistas. Contudo, a chegada de um novo projeto político e estético irá demarcar e produzir deslocamentos teóricos e práticos no campo das artes de Pernambuco, no início dos anos de 1950: a chegada da Bienal Internacional de São Paulo e sua complexa trama burocrática repleta de novos símbolos.

2.3 BIENAL INTERNACIONAL DE SÃO PAULO E A CONSTRUÇÃO DO HABITUS