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CAPÍTULO IV – DE COMUNIDADES PESQUEIRAS A COMUNIDADES LITORÂNEAS: VELHAS E NOVAS DEMANDAS PARA A EXTENSÃO

4.1. A pesca artesanal

Nas comunidades litorâneas cearenses, a atividade pesqueira oferece oportunidade de geração de renda e trabalho para milhares de pessoas, destacando-se neste cenário a pesca artesanal2 — que é responsável pela grande maioria destas oportunidades.

Analisando os dados do Boletim Estatístico da Pesca Marítima e Estuarina do Nordeste do Brasil referente ao ano de 2000, verificamos que das 5.122 embarcações registradas pelo IBAMA no Ceará, as embarcações de pequeno porte ou artesanais representam 77% da frota em nosso estado — são aqui consideradas aquelas embarcações que são propriedade de pessoas físicas, ou seja, os paquetes, as jangadas, os botes a remo, as canoas, o bote a vela e o bote motorizado —, enquanto que a frota empresarial/industrial representa 23% —consideramos enquanto embarcações empresarial/industrial as lanchas com casco de madeira e as lanchas com cascos de aço (conforme figura 2):

1 Para o autor, o novo mundo rural é composto por atividades tipicamente rurais (caso da agricultura, da

pecuária, do extrativismo vegetal e animal, entre outras) e não-rurais (pequena indústria de processamento, atividade turística, setores de serviço).

Figura 2 – Gráfico representativo da percentagem de embarcações artesanais e empresarias/industriais na frota pesqueira marítima cearense.

Pesca empresarial/ industrial 23% Pesca artesanal 77%

Fonte: ESTATPESCA/IBAMA (ano de referência 2000).

A frota de pequena escala ou artesanal geralmente realiza pescarias de um dia, ou de “ir-e-vir”, como também é chamada a “pescaria de dormida” que dura de três a cinco dias, dependendo das condições de mar e de captura. Na pesca artesanal, os apetrechos mais usados são a linha de mão, a caçoeira e as redes de espera; em alguns locais usa-se também a cangainha para captura da lagosta — e o curral e o viveiro para peixe.

Em relação à produção pesqueira, segundo dados do IBAMA (2000:31), os pescadores artesanais foram responsáveis por 8.146,10 toneladas de pescado produzido no Estado, enquanto a pesca empresarial/industrial capturou 6.047,10 toneladas desembarcadas nos portos do Ceará no ano de 2000. Representando um percentual de produção de 57% oriunda da pesca artesanal e 43% oriunda da pesca industrial (FIGURA 3).

Figura 3 – Gráfico demonstrativo da produção de pescado da pesca artesanal e industrial. PESCA INDUSTRIAL 43% PESCA ARTESANAL 57%

Fonte: ESTATPESCA/IBAMA (ano de referência 2000)

Se o volume de captura de pescado pela pesca artesanal é expressivo, mais relevante ainda são os aspectos sociais da produção. Enquanto a pesca empresarial/industrial é voltada basicamente para o mercado externo, a produção da pesca artesanal é voltada para o abastecimento do mercado interno e é responsável pela maioria da proteína consumida pelas populações das comunidades litorâneas.

Outro relevante aspecto da pesca artesanal é a rede de solidariedade que se estabelece entre os pescadores artesanais ativos e pessoas que estão impossibilitadas de trabalhar pelos mais diferentes motivos. Quando uma embarcação artesanal chega de uma pescaria, é comum observar na beira da praia toda uma movimentação em torno dela e constata-se que mesmo com todas as dificuldades que os pescadores passam, a solidariedade com as viúvas, com os mais velhos, com aqueles que estão adoentados e as crianças, fica patente — materializando-se através de doações de parte da produção. Neste sentido, podemos afirmar que a pesca artesanal se constitui também como elemento importante na segurança alimentar das populações das comunidades litorâneas.

Um exemplo desta solidariedade foi registrado por ALMEIDA (2002:144) em sua dissertação de mestrado:

Outro indicador interessante é a doação de peixe entre as famílias; cerca de 40% das famílias declararam que costumam ganhar peixe. Isso ocorre freqüentemente entre as famílias de pescadores. Quando determinado pescador não foi pescar, ou mesmo quando ainda não chegou de uma pescaria, é comum outro pescador fornecer o peixe à sua família. Além das famílias de pescadores, aquelas mais carentes, que não têm condições de pagar pelo peixe, normalmente recebem doações. Esse sentimento de solidariedade é tão forte que, segundo os moradores, não é difícil ver pessoas de outras comunidades, que chegam a andar mais de 12 km para pedir peixe na praia. Na época da lagosta, então, por vezes até caminhão carregado de gente chega na comunidade para pedir as cabeças de lagosta, que são distribuídas pelos pescadores.

Aliado ao relato de Almeida, também podemos constatar esta solidariedade na fala de Marlene, moradora da Prainha do Canto Verde, registrada pelo mesmo autor: "Você pode por exemplo, ter a farinha para fazer o seu pirão na história e não ter o peixe, mas você vai lá na praia e se encalhar uma jangada você consegue, tanto faz você ter dinheiro como não. Na cidade grande se você não tiver grana pra comprar, pronto" (Marlene apud Almeida:2002).

A fala de Beto soma-se à de Marlene na constatação desta solidariedade: “Quando chego da pescaria, pego o melhor peixe para comer e muito de minha produção vai para aqueles que são parceiros do mar ou que não poderão pescar; às vezes dou até 40% da produção para gente da comunidade” (depoimento de Beto - pescador e liderança comunitária da Prainha do Canto Verde, dezembro, 2002).

Durante o trabalho de campo foi possível perceber também que em alguns locais esta solidariedade manifesta-se para além da doação de pescado. Segundo relato de Marcos — pescador e secretário da fábrica de gelo local —, em Mundaú/Trairi esta rede de solidariedade é tecida através de doação de gelo: 20% ou mais da produção diária de gelo é doada para a comunidade.

Esta solidariedade na pesca artesanal se manifesta em outras comunidades pesqueiras situadas em diferentes estados brasileiros, tendo sido registrada por Maldonado (1994) na Paraíba, e Diegues (1994) em São Paulo. Diegues (1994:74) registra essa solidariedade característica da pesca artesanal quando faz a comparação entre as relações do pescador artesanal caiçara do litoral paulista e o pescador, inserido na pesca empresarial-capitalista, embarcado em Santos/SP:

(...) Entre os primeiros [pescadores artesanais caiçaras] durante a partilha do pescado capturado, uma parte vai para o consumo dos familiares e vizinhos, e ainda, dado às viúvas e crianças. Isso já não ocorre no porto de Santos, onde os pescadores embarcados são simplesmente impedidos de sair com peixe dos limites do Entreposto de Santos (SP), uma vez que toda a produção é vendida no porto.

DIEGUES (1994:74)

Apesar da importância sociocultural, a pesca artesanal vem enfrentando uma crise de produção e estruturação do setor, decorrente de vários fatores, e vem sendo objeto de comentários de alguns cientistas. Para Fonteles, na situação atual da pesca artesanal, observa-se:

...a ausência de um processo produtivo organizado para dar suporte tecnológico às atividades de captura e garantir condições adequadas para conservação e comercialização do pescado. As conseqüências principais são a evasão da renda para outras comunidades e da força de trabalho para outros setores econômicos, podendo-se ainda acrescen- tar: concorrência de produtos alimentícios mais baratos, ausência de subsídios ao sistema produtivo, empobrecimento da zona costeira atra- vés da barragem dos cursos d’água por grandes açudes, e fragmentação do processo produtivo em termos funcionais e geográficos (FONTELES, 1997:14).

No que pese a relevância da pesca artesanal e sua capacidade de geração de emprego e a crise do setor, Fonteles comenta que:

o sistema de pesca artesanal do Estado do Ceará, apesar de sua evidente e histórica importância como produtor de alimentos de origem aquática marinha e gerador de 40.000 empregos diretos, vem ano a ano reduzindo sua participação na economia estadual. (FONTELES, 1997:08).

Esta participação vem sendo percebida pela diminuição relativa do volume de exportações e a diminuição crescente nos volumes de captura. Para ilustrar esta constatação, usaremos o quadro elaborado pelo próprio IBAMA no seu Boletim Estatístico de 2000:

Figura 4 – Gráfico demonstrativo da produção pesqueira marítima cearense entre 1991 a 2000.

Fonte: IBAMA/CE - Boletim estatístico da pesca marítima e estuarina do nordeste do Brasil.

As capturas de pescado no estado vêm decaindo ano a ano (FIGURA 3), e os pescadores artesanais e suas famílias são os principais atingidos por esta crise, já que não possuem a mobilidade social e econômica que tem o setor empresarial. Tal mobilidade se materializa no fato destes empresários estarem envolvidos em vários ramos de negócios (exportação de castanha, rede de hotéis, postos de gasolina, depósitos de material de construção, entre outros). Assim, se uma atividade apresenta diminuição dos rendimentos, deslocam-se com facilidade para outro setor que esteja a apresentar maior rentabilidade.

No caso dos pescadores artesanais, essa mobilidade inexiste, dado que se dedicam exclusivamente à pesca — o que não possibilita o acúmulo do capital necessário para tal deslocamento. Quando a pesca entra em crise, o que observamos é

a descapitalização, a desestruturação econômica e, às vezes, a marginalização do pescador artesanal e sua família.