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Da organização comunitária a organização da produção comunitária

CAPÍTULO IV – DE COMUNIDADES PESQUEIRAS A COMUNIDADES LITORÂNEAS: VELHAS E NOVAS DEMANDAS PARA A EXTENSÃO

MANIFESTO CONTRA EXCLUSÃO DOS PESCADORES ARTESANAIS DA PESCA DA LAGOSTA

4.4. Construindo a sustentabilidade socioambiental: modos de fazer e resistir

4.4.2. Da organização comunitária a organização da produção comunitária

Diante das demandas que estão sendo impostas pelo processo de desenvolvimento das comunidades litorâneas e da atividade pesqueira, as comunidades ficam com o desafio de aumentar sua capacidade crítica e propositiva para influir nas políticas de gestão da zona costeira, bem como para construir formas mais eficientes de produzir e de se organizar coletivamente.

Neste sentido, enquanto pesquisador e assessor temos acompanhado as tentativas das comunidades. Algumas associações de moradores que, no passado, tinham como norte de sua atuação a luta pela terra e por direitos a serviços públicos (como água, estradas e energia elétrica, entre outros, nos meados da década de 1990), passaram a incorporar em suas estratégias de ação aspectos relacionados à gestão do processo produtivo — a exemplo das associações de moradores das seguintes comunidades: Prainha do Canto Verde e Barra da Sucatinga (Beberibe), Redonda (Icapuí), Balbino (Cascavel), entre outras. Ao mesmo tempo, assistimos também ao surgimento de associações de produtores e cooperativas de produção e comercialização — como é o caso de Canto da Barra (Fortim) e Baleia (Itapipoca), respectivamente. Independente da forma como estão organizadas estas comunidades, o principal desafio a ser vencido na gestão da produção refere-se à comercialização da produção e ao abastecimento dos insumos de produção, através de entrepostos de pesca.

A distribuição da produção da pesca artesanal se caracteriza pela presença de comerciantes locais e de atravessadores que compram o pescado (peixe, lagosta, camarão, caraguejo etc.) e o levam para abastecer os mercados mais próximos — ou mesmo o de Fortaleza. Em muitas comunidades, a relação dos atravessadores com os pescadores vai para além da compra e venda de pescado, fornecendo também apoio material ou financeiro através de empréstimos para que o pescador tenha os insumos

necessários14 para efetivar a sua atividade. Porém, esta relação se configura, em muitas praias, como uma maneira de subordinar os pescadores aos interesses dos atravessadores. Estes, em algumas comunidades — devido ao sistema de infra- estrutura de apoio à pesca e à produção ser deficiente, o que é decorrente da ausência de políticas públicas destinadas a este setor —, dominam o processo de comercialização e subordinam os pescadores aos seus interesses de obtenção de lucro fácil, pagando um baixo preço pela produção; em outras comunidades, configuram-se como “um mal necessário”, ou seja, a única possibilidade dos pescadores terem crédito e o mínimo de infra-estrutura de produção para efetuar sua atividade econômica.

Entre as dificuldades na comercialização estão o transporte e a conservação do pescado — que é altamente perecível, necessitando de gelo ou sistema de refrigeração para que se evite o seu apodrecimento. Antes da chegada do gelo, a conservação da produção era feita através da salga ou defumação; na década de 1980, com a chegada da energia elétrica, começaram a aparecer os sistemas de fabricação de gelo e refrigeração nas comunidades litorâneas — e estes passaram a ser os principais meios de conservação do pescado.

Das fábricas de gelo que estão em funcionamento, poucas são as que pertencem às comunidades através de suas associações de moradores e/ou de produtores — o que contribui para a relação de subordinação dos pescadores aos fornecedores de gelo, principalmente nas comunidades que não possuem fábricas e/ou em que as distâncias das fábricas existentes na região são grandes. Como exemplo, podemos citar: Tatajuba (Camocim), Moitas e Caetanos (Amontada), Maceió (Itapipoca), Ponta Grossa (Icapuí), Fontainha (Aracati), entre outras. Já em outras comunidades, existem fábricas, seja de proprietários particulares ou de associação de moradores e/ou de produtores locais; porém, as fábricas que visitamos passam por

14 O dono da embarcação tem a função de armar a embarcação, ou seja, de abastecer a embarcação

para viagem com todos os materiais necessários para a pescaria, como anzóis, linhas, redes, cangainhas, chumbadas e outros matérias, dependendo do tipo de pescaria a ser feita; além do material de pesca, existe também a necessidade de abastecer a embarcação com alimentação, chamada comumente de rancho, para toda a tripulação da embarcação durante os dias de pesca. Em algumas situações, o dinheiro para pagar tais despesas advém de adiantamentos feitos pelos atravessadores.

enormes dificuldades na gestão técnica e organizacional. Como exemplo, podemos citar: Barra da Sucatinga (Beberibe), Barrinha (Acaraú), Paracuru (Paracuru), Flecheiras e Mundaú (Trairi).

A dependência para com os fornecedores de gelo e atravessadores é combatida por algumas comunidades com a aquisição de transporte para facilitar a compra de gelo e a comercialização da produção nas comunidades e/ou cidades mais próximas. A crise na produção de pescado e o custo de manutenção e de amortização do investimento são também elementos que dificultam esta alternativa. Reduzir o tamanho da cadeia de intermediação da produção, e/ou vender seu próprio produto direto ao mercado consumidor, continua sendo um desafio para o pescador artesanal.

Outra dificuldade constatada está na gestão do crédito destinado à produção, onde a participação do Estado é de fundamental importância. São raras as associações de moradores que conseguiram acessar as instituições de créditos oficiais — ou seja, os bancos — nestes últimos dez anos. Dentre essas, podemos incluir, na década de noventa, a Associação de Moradores da Prainha do Canto Verde (Beberibe), a Associação de Moradores da Barra da Sucatinga (Beberibe), a Associação de Moradores de Redonda (Icapuí), a Associação de Moradores de Balbino (Cascavel) e a Associação de Pescadores do Canto Barra (Fortim), entre outras. No entanto, a crise da pesca somada às dificuldades de gestão foram fatores que determinaram a inadimplência destas cinco associações junto ao Banco do Nordeste. As justificavas dos Bancos e das comunidades para tal situação divergem — e o conflito estabelecido está longe de ser equacionado.

Dentre os cinco casos estudados, o que chamou a atenção foi o da comunidade de Balbino — que, segundo relato de um dos seus moradores, se submeteu a um projeto superdimensionado e, ainda por cima, foi enganada com relação à construção das novas embarcações.

A comunidade de Balbino, junto com um técnico projetista, elaborou um projeto que contemplava a compra de três barcos a motor, com a justificativa de que a modernização da frota propiciaria a pesca em águas profundas — possibilitando o aumento de rentabilidade das pescarias de forma imediata. Das três embarcações pagas pela Associação de Moradores, a empresa sediada em Recife (PE) entregou apenas uma — que afundou na primeira operação feita, provocando um prejuízo sem precedentes para a comunidade.

As outras quatro associações também passam por dificuldades semelhantes na gestão de seus empreendimentos, não conseguindo honrar os seus compromissos com o Banco do Nordeste. Esta situação é extremamente constrangedora para as lideranças das comunidades, impedindo que as mesmas acessem outros financiamentos. Outro ponto em comum entre elas relaciona-se à elaboração do projeto, permeada pela falta de reflexão sobre as condições socioambientais em que se inseriram os projetos — e, por último, a deficiência no processo de formação da comunidade para tal empreitada.

Outra agravante para tal realidade é que as reflexões que estavam sendo construídas no Comitê de Pesca do Estado do Ceará — indicando a não ampliação da frota, principalmente a lagosteira, devido à diminuição crescente das pescarias — não foram consideradas.

Os exemplos ilustram a realidade das políticas públicas para a pesca no Brasil, ou seja, demonstram a falta de articulação entre a assistência técnica, as linhas de crédito e a visão estratégica necessárias aos gestores públicos responsáveis pela gestão ambiental e desenvolvimento social.

A superação do quadro de crise e de complexidade apresentado aponta para a construção de espaços de reflexão política e para a capacitação técnica, na perspectiva de promover a formação destes sujeitos sociais na gestão socioambiental dos espaços e das entidades associativas a que pertencem.