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O ARTISTA DO TERCEIRO MUNDO

CAPÍTULO 3 – AS PLUMAS DO PAVÃO

3.3 O ARTISTA DO TERCEIRO MUNDO

A partir da década de 1930, vemos um movimento dentro de nossa literatura em que os escritores se voltam para o drama social. Isso ocorre com Rachel de Queiroz em O Quinze, entre outros romancistas. Nessa vertente, escritores procuram o ser regional, condensando para outra área em que estavam predominantemente os personagens da literatura brasileira, no eixo Rio – São Paulo. Érico Veríssimo (1997) pontua que a literatura brasileira ganha sua maioridade a partir da década de 1930. Reflexo dos modernistas, os escritores dão continuidade a uma escrita que reafirma as brasilidades do povo. Com Macunaíma (1928), Mário de Andrade procurou trazer para dentro da nossa literatura a língua falada pelo povo nas ruas, além de construir um personagem com características das malandragens do brasileiro. Nesse período cresce também um interesse dos escritores pelos problemas sociais e filosóficos do seu tempo: “os horizontes e a crítica se expandiram. A maioria de nossos romancistas agora escreve suas histórias em torno de problemas sociais. E aqueles que pensam não serem capitais os problemas econômicos aderem ao romance psicológico” (VERISSIMO, 1997, p.120).

Candido (1970) afirma que a consciência de sermos um país subdesenvolvido torna- se mais latente a partir dos anos 1930. Antes, o que transparece na literatura é uma exaltação pelo exótico e um sentimento de grandiosidade frente a uma natureza exuberante, estado eufórico herdado por um sentimento de afirmação do nacional. Posteriormente, os escritores voltam o seu olhar para os problemas sociais do país:

a consciência de subdesenvolvimento é posterior à Segunda Guerra Mundial e se manifestou claramente a partir dos anos 1950. Mas desde o decênio de 1930 tinha havido mudança de orientação, sobretudo na ficção regionalista, que pode ser tomada como termômetro, dada a sua generosidade e persistência. Ela abandona, então, a amenidade e curiosidade, pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no cavalheirismo ornamentado, com que

antes se abordava o homem rústico. Não é falso dizer que, sob este aspecto, o romance adquiriu uma força desmistificadora que precede a tomada de consciência dos economistas e políticos (CANDIDO, 1970, p.142).

No romance de Carlinhos, temos o personagem principal nascido dentro dessa situação de pobreza. Ele é um artista que nasce nesse contexto social de terceiro mundo, vivenciando as condições precárias de moradia. Na primeira parte do livro, o narrador informa como se deram as circunstâncias do seu nascimento, na seção intitulada “Nasce um Artista no Terceiro Mundo”. Dessa forma, o leitor é informado que o narrador é alguém que futuramente se tornará um artista:

Quando vi o mundo pela primeira vez eu estava nu, com vermes, com perebas e com fome. Houve um tempo anterior a esse, porventura menos doloroso, conforme atesta uma fotografia minha aos nove meses de vida, nu, mas robusto, e com uma chupeta pendurada no pescoço. Há também uma recordação ou fantasia relativa aos quatorze meses: alguém me largou e rolei uma escadaria, adquirindo em consequência um crânio amassado na nuca. Mas quando vi o mundo pela primeira vez eu estava nu, com vermes, com perebas e com fome. Antes disso, antes de ocupar com palavras a minha consciência, nós morávamos numa casa ao pé da escadaria, mas era agora moldura nossa um morro roído de mato bravo e pontilhado de bananeiras e mamoeiros. Assim, estava eu sentado ao pé do novo lar – uma construção de barro batido coberta de zinco, úmida e fedorenta, e amoldava a bunda à friúra do barro, e coçava com furor o deleite a cabeça formigante de piolhos, e dava petelecos nos percevejos que furavam meu corpo e tinham um cheiro enjoado de almotolia (OLIVEIRA, 1972, p.9).

O relato é do narrador já adulto que se volta para o seu passado, reconstruindo o tempo perdido. Além dessa condição precária, o narrador delimita seu âmbito familiar: contava com muitos irmãos, embora nem sempre eles sobrevivessem. Dos oito, desapareceu misteriosamente a mais velha. Nos primeiros capítulos, o narrador assume uma perspectiva infantil, como na cena em que descreve o deslumbramento de um arco-íris formado por um jato d’água:

Olhei e vi o arco-íris na água aberta em leque sob o céu azul. O sol deveria estar criando uma ilusão, mas o que eu via era o milagre da multiplicação das lágrimas coloridas onde antes só havia lágrimas. Sem prejuízo da limpidez e integridade da água, eram azuis, vermelhas, verdes, rosas, roxas, amarelas, cintilantes, e perduravam ali onde estavam suspensas, embora sob elas fosse sempre outra a água que jorrava da cornucópia azinhavrada (OLIVEIRA, 1972, p.10).

A narrativa ganha neste trecho final uma leveza e um lirismo em oposição às cenas de miséria que circundavam o personagem até então, colorindo-se: “e eu comprovava que mesmo na mais completa miséria este mundo pode ser deslumbrante. Há de parecer absurdo, que não tendo saúde, nem higiene, nem conforto, nem roupa, nem comida, nem consolo, nem amor, alguém possa receber em troca nada menos que o arco-íris; mas foi assim que aconteceu” (OLIVEIRA, 1972, p.10).

A trajetória de Zé Carlos se fará em meio ao relacionamento conflituoso com a mãe e a orfandade paterna. A descoberta do mundo virá primeiro pelo seu bairro e depois pelas pessoas, virão também o despertar da sexualidade e a descoberta da literatura. Em meio a essa infância precária, as recordações do narrador irão se constituir em uma imagem de um certo Brasil.

Para Candido (1970) o analfabetismo e a debilidade cultural são temas que se tornam mais interessantes na consciência e na produção do escritor brasileiro. Essa consciência está presente no romance O pavão desiludido, ao nos mostrar um personagem que mesmo nascido em uma situação de pobreza, torna-se um homem das letras, contrariando todas as expectativas do seu meio social e também da sua progenitora, que valorizava apenas o trabalho e não os estudos, como narrado no capítulo 15, “A mimosa pantera”: “Ela sempre manifestou que o filho era rebelde, preguiçoso e vadio. Pretendia torná-lo submisso, expedito e estudioso. Mas quando ele passava o dia inteiro com um livro nas mãos, até mesmo às refeições trazendo os olhos baixos, aprisionados às peripécias de um romance, declarava ela ter parido um vagabundo, que só sabia ler e mais nada” (OLIVEIRA, 1972, p.63). Nesse capítulo, o narrador descreve o tempo em que recorda as relações traumáticas com a mãe: “Trinta anos depois, sua memória vasculharia o seu coração de criança à procura dos maus sentimentos e péssimas ações que lhe eram atribuídos, e nada encontraria de reprovável, muito menos que merecesse um castigo tão cruel” (OLIVEIRA, 1972, p.64).

Na concepção de Edward Said (1999), sempre existiu uma resistência cultural em relação aos povos dominados. Ele acredita que uma das manifestações culturais mais significativas para se analisar e buscar essas marcas seria o romance. Para ele, o romance é o método usado pelos povos colonizados para afirmar a sua identidade e a existência de uma história própria deles. O poder de narrar (ou impedir que formem e surjam outras narrativas) é muito importante para a cultura. Ao enfatizar esta circunstância (a da pobreza no terceiro mundo) como o lugar de nascimento do narrador, José Carlos Oliveira pretende relacionar uma infância sem glória a uma vocação artística.