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CRONISTA DE UM EU INSTÁVEL

CAPÍTULO 1 ANTECEDENTES E DEFINIÇÃO DA AUTOFICÇÃO

1.8 CRONISTA DE UM EU INSTÁVEL

Procuramos aqui analisar algumas crônicas de José Carlos Oliveira e explorar a daquele que talvez tenha fixado o gênero de autoficção entre nós. As crônicas publicadas no Jornal do Brasil (de 1961 a 1983) mostram uma presença do “eu” e um forte traço da escrita de si.

Aos 17 anos, Carlinhos já trabalhava como repórter e cronista, revelando um comportamento sarcástico que marcou suas obras. Tornou-se ainda um dos mais importantes cronistas do século XX pela dedicação quase integral ao gênero, o que o aproxima muito de

Rubem Braga. Podemos notar que quase todas as crônicas de Carlinhos Oliveira são pautadas pela experiência, pelo cotidiano de sua rotina de cronista: bares, praias, restaurantes, pessoas do bairro de Ipanema e o convívio com intelectuais e artistas de seu tempo, que lhe forneceram assuntos para suas crônicas. Todo o painel cultural da vida urbana carioca da segunda metade do século XX pode ser encontrado neste seu legado jornalístico.

Nesta produção, podemos encontrar os primeiros traços que marcariam mais tarde o seu primeiro romance, O pavão desiludido, no qual haverá também um uso desinibido da primeira pessoa do singular e relatos de episódios pretensamente vividos por José Carlos Oliveira.

Ou seja, o escritor é conscientemente devedor de sua atividade de cronista, pois em ambos os papéis ele desenvolve ficcionalmente a sua biografia apresentando-se como personagem.

Na crônica publicada no Jornal do Brasil, em 29/11/1964, o cronista faz uso da primeira pessoa e leva a si mesmo, com nome e sobrenome, para dentro do texto, criando um diálogo entre os dois eus, encerrados na mesma pessoa. Uma identidade duplicada, em que cada um dos eus possui autonomia de fala:

Acordei cedo no sábado e continuei a escrever sobre a minha vida particular – meus devaneios surrealistas, minha solidão musicalizada. Fui ao espelho e, ali, José Carlos Oliveira me deu um sorriso grave. “Vamos andando para a rua”, disse ele, “porque mais cedo ou mais tarde você morre e eles te põem numa gaveta e acabou-se o que era doce” (OLIVEIRA, 2004, p.95).

Klinger (2006) define que a autoficção se insere no universo do romance valendo-se do uso da primeira pessoa do singular e do tempo presente, mostrando uma nova perspectiva da possibilidade da criação de um romance em que se privilegia a primeira pessoa em detrimento de uma terceira pessoa, subvertendo a própria constituição romanesca. Era exatamente isto que estava em curso nesta crônica de Carlinhos, em que ele se revela para o leitor como um eu que se apresenta como personagem de ficção, um personagem que vai sobreviver ao eu real, que está sujeito a uma morte breve. Há uma sobreposição de nomes, mas uma separação destes dois eus: um feito para durar, no campo da linguagem, e outro consciente de sua brevidade carnal.

Em outra crônica, publicada em 4/3/1969, Carlinhos é personagem, mas se coloca na terceira pessoa, mostrando justamente a fronteira entre dois seres que são a mesma pessoa e que, no entanto, guardam autonomia: “A realidade bruta é a seguinte – Carlinhos Oliveira e seus companheiros começaram a beber no Veloso e estão esticando no Antonio’s (...). Como é

que Carlinhos poderia imaginar que aquele casalzinho estava ali por causa dele” (OLIVEIRA, 2004, p.172).

O contraponto na utilização da terceira pessoa, segundo Barthes (1971) o uso do ele, fortalece um pacto ficcional com o leitor, assim como o tempo verbal do passado simples no idioma francês. A terceira pessoa usada tradicionalmente criaria uma máscara ficcional, que denuncia o personagem, a literatura, a ficção, a invenção. Mas Barthes (1971) destacou que a primeira pessoa ou uma terceira pessoa que lhe equivale (como no discurso indireto livre) aproxima o texto das tensões existenciais, tornando-o menos ambíguo. Já a terceira pessoa torna o texto impessoal. O uso da terceira pessoa é a convenção-tipo do Romance, pois cria uma distância em relação aos fatos, forjando uma ilusão de objetividade. O uso do eu é menos ambíguo, por isso, em sua concepção seria menos romanesco. Nas crônicas em questão, e no romance autoficcional, estas diferenças perdem o seu caráter didático, de separação de gêneros, criando um jogo de papéis, uma máscara de eus em que o ser ficcional tem o mesmo rosto e perfil do real. É neste sentido de embaralhamento que esta tendência atua para questionar verdades arraigadas.

Em várias de suas crônicas, Carlinhos fala de si mesmo, ora colocando-se em primeira, ora colocando-se na terceira pessoa, em uma prática daquilo que Ivan Lessa (1999) chamou de “autobustificação”, pois a crônica como gênero moderno reflete uma escrita de si contemporânea, pós-moderna, de mobilidade líquida do eu (Bauman), na contemplação de um busto daquele que a escreve e que se vê como personagem.

Veremos outra crônica (publicada em 7/10/1970) em que Carlinhos se coloca novamente na terceira pessoa, propondo assim um distanciamento de si mesmo. Nesse texto, o autor constrói uma imagem de Carlinhos Oliveira como um personagem boêmio e duplo de si mesmo:

Carlinhos, não o comediante que protagoniza esta série, mas o ser humano, é de tal forma conhecido na Zona Sul que, certa noite, colhido nas malhas de uma batida policial com fins políticos, e devidamente revistado, ouviu a seguinte pergunta e deu a seguinte resposta:

- Documentos?

-Não tenho. (OLIVEIRA, 2004, p.190).

Ou seja: este eu que aparece no texto é tão ficcional que nem dispõe de documentos de registro. Só pode ser encontrado no campo movediço da ficção. Observamos aqui um caso exemplar da máscara ficcional criada pelo cronista.

Em sua coluna de 28/8/1969, o nome de Carlinhos Oliveira aparece já no título demonstrando sobre quem trata a crônica intitulada “A volta de Carlinhos Oliveira”. Nela, o autor faz uso da primeira pessoa: “Acordo de um sonho. Sonhei a contemplação objetiva dos acontecimentos. A mim mesmo sonhei, sonhando; empurrei-me para a terceira pessoa e me vi de longe, desfigurado, generoso. Hoje volto a ser quem sou. Tumulto, rancor, melancolia, escândalo”. Nesta crônica, Carlinhos discorre sobre o próprio fazer poético, sobre sua relação com a escrita, sua vida tumultuada pela bebida, e se vê cindido entre o homem que vive sua circunstância e o personagem que vive uma aventura como linguagem. Ele diz que pode escrever um romance autobiográfico de 500 páginas só com essa frase: “Ontem dormi tarde, bebi muito”. Carlinhos cifra em seus textos de imprensa esta duplicidade, preparando-se para assumir o papel de romancista com a mesma liberdade ao tratar de sua história pessoal e ao usar seu próprio nome, sempre em situação de mutação.