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As “Artes de Governar” e o Processo de Governamentalização do Estado

CAPÍTULO II: Entre o Risco e a Governamentalização: A Regulação das

2.1. As “Artes de Governar” e o Processo de Governamentalização do Estado

Sem a pretensão de construir uma reflexão exaustiva da noção de governamentalidade, limitamo-nos a descrever brevemente o argumento foucaultiano de que a ação estatal estaria sendo progressivamente governamentalizada, para daí extrair implicações pertinentes ao nosso objeto de estudo 23. No entanto, a noção de governamentalidade não é invocada com o objetivo de “explicar” todos os fenômenos relativos à realidade social e política brasileira. A pretensão consiste apenas em mobilizar essa categoria para aprofundar o processo de problematização do nosso presente, sobretudo no que se refere às formas de tematização política da juventude.

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Ao mesmo tempo, também temos clareza de que os processos de regulação das populações, cuja emergência foi identificada por Foucault, têm-se transformado, ao longo dos últimos anos, assumindo novas características e disposições (Lazzarato, 2006; Virno, 2008; Hardt e Negri, 2005).

Nesse percurso, Foucault (2008b) apoiado em dicionários históricos na língua francesa nos séculos XIII, XIV e XV, lembra que a palavra governar abrangia um amplo campo semântico, referindo-se ao deslocamento no espaço, subsistência material, cuidados que se pode dispensar a um indivíduo ou a si mesmo. Porém, em todos os sentidos do termo empregados até o século XV, o que se governava nunca era o Estado ou uma estrutura política. Os homens é que eram governados. Essa idéia de um “governo dos homens” tem suas origens num Oriente pré-cristão e cristão sob a forma da organização de um poder pastoral. Tal poder designaria uma relação entre o soberano e seu Deus, ambos apreendidos como pastores de homens. Esse poder do pastor presente no Oriente Mediterrâneo, principalmente entre os hebreus, caracteriza-se por ser um poder que se exerce sobre um rebanho em movimento.

Primeiro, porque o deus-pastor sabe onde ficam as campinas férteis, os bons caminhos para chegar lá e os lugares de repouso seguros 24. Segundo, trata-se fundamentalmente de um poder benfazejo no sentido de assegurar a salvação do rebanho ao garantir os meios de subsistência. Um poder, portanto, que se manifesta pelo zelo e dedicação do pastor no sentido de vigilância ao afastar tudo que pode ocorrer de nefasto ao rebanho. Por fim, refere-se a um poder totalizante e individualizante em que o pastor tem de observar todas e cada uma das ovelhas. Para Foucault (2008b, p. 175) é justamente em torno dessa dupla forma de poder pastoral (individualizante e massificante) que vai se constituir “o grande problema tanto das técnicas de poder do pastorado cristão, como das técnicas de poder, digamos, modernas, tais como foram introduzidas nas tecnologias da população”. Em suma,

a idéia de um poder pastoral é a idéia de um poder que se exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território. É um poder que guia para um objetivo e serve de intermediário rumo a esse objetivo. É, portanto, um poder finalizado, um poder finalizado sobre aqueles mesmos sobre os quais se exerce, e não sobre uma unidade de tipo, de certo modo, superior, seja ela a cidade, o território, o Estado , o soberano. É, enfim, um poder que visa ao mesmo tempo todos e cada um em sua paradoxal equivalência, e não a unidade superior formada pelo todo (FOUCAULT, 2008b, p. 173).

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Por exemplo, no Êxodo 15, 13 diz Jeová “Tu conduziste com fidelidade esse povo que resgataste, tu o levas com tua força aos pastos da tua santidade” (FOUCAULT, 2008b, p.169).

Como observa Foucault essa idéia de poder pastoral, alheia ao pensamento grego e romano, foi introduzida no Ocidente por intermédio da Igreja cristã através de mecanismos precisos e instituições definidas no interior do Império Romano. Contudo, o pastorado cristão tal como se institucionalizou e se desenvolveu a partir do século III é bem diferente daquele desenvolvido no Oriente, pois, caracteriza-se pela incorporação de uma arte de conduzir os homens. Assim,

[...] parece-me que o pastorado esboça, constitui o prelúdio do que chamei de governamentalidade, tal como esta vai se desenvolver a partir do século XVI. Ele preludia a governamentalidade de duas maneiras. Pelos procedimentos próprios do pastorado, por essa maneira, no fundo, de não fazer agir pura e simplesmente o princípio da salvação, o princípio da lei e o princípio da verdade, por todas as espécies de diagonais que instauram sob a lei, sob a salvação, sob a verdade, outros tipos de relações. É por aí portanto que o pastorado preludia a governamentalidade. E preludia também a governamentalidade pela constituição de um sujeito, de um sujeito cujos méritos são identificados de maneira analítica, de um sujeito que é sujeitado em redes contínuas de obediência, de um sujeito que é subjetivado pela extração de verdade que lhe é imposta. Pois bem, é isso, ao meu ver, essa constituição típica do sujeito ocidental moderno, que faz que o pastorado seja sem dúvida um dos momentos decisivos na história do poder nas sociedades ocidentais [...] é portanto toda a história dos procedimentos da individualização humana no Ocidente que está envolvida na história do pastorado (FOUCAULT, 2008b, p. 243 e 244).

Com base em alguns textos antigos 25, Foucault (2008b) assinala alguns traços que acompanharam a reflexão e a prática pastoral do século III ao século XVII. Nesses textos, o pastorado se apresenta relacionado, simultaneamente, à salvação, à lei e à verdade modificadas pelo cristianismo de forma a caracterizar modos específicos de individualização utilizados pela pastorado cristão e suas instituições correlatas. O pastorado configura-se como um poder que se dá por objeto a conduta dos homens.

Correlativamente, no próprio campo do pastorado, aparecem movimentos específicos de resistência ou revoltas de conduta 26. São movimentos que propõe como objetivo um “querer ser conduzido de outro modo, por outros condutores e por outros

25

De sacerdotio de são João Crisóstomo, as Cartas de são Cipriano, De officiis ministrorum de santo Ambrósio, Liber pastoralis de Gregório, as Conferências de Cassiano, as Cartas de São Jerônimo e as

Regras de são Bento.

26

A idéia de contra-conduta representa uma etapa essencial no pensamento de Foucault, entre a análise das técnicas de sujeição e a análise, desenvolvida a partir de 1980, das práticas de subjetivação.

pastores, para outros objetivos e para outras formas de salvação, por meio de outros procedimentos e de outros métodos” (FOUCAULT, 2008b, p. 257). Nesse sentido, uma crise interna do pastorado teria sido aberta, já na Idade Média, pelo desenvolvimento de cinco formas principais de contracondutas: o ascetismo 27, as comunidades 28, a mística 29

, a escritura 30 e a crença escatológica 31.

Mas é no decorrer do século XVI que a crise do pastorado religioso se intensifica, tanto em suas dimensões espirituais quanto temporais, fazendo reaparecer como problema o desenvolvimento da condução dos homens fora da autoridade eclesiástica. Nesse momento, entra em cena a tematização do Estado no campo da prática e do pensamento político (FOUCAULT, 2008b, p.331). Esboça-se uma nova arte de governar que tem no Estado seu principal princípio de inteligibilidade.

Nos termos de Senellart (2006, p. 47), uma crise sem precedentes faz com que o Estado se imponha, simultaneamente, como o fundamento da ordem civil e como princípios das práticas governamentais, o que reorganiza o regime de visibilidade política e impulsiona uma racionalização crescente das várias dimensões que constituem a vida social. Essa nova arte de governar carrega sua própria racionalidade, uma vez que a razão governamental apresenta como seu fundamento o próprio Estado, ou, melhor dizendo uma natureza própria ao Estado. Como ressalta Foucault (2008b), “o Estado é o que deve estar no fim do processo de operacionalização da arte de governar” (p. 385). Estamos diante da emergência de uma Razão de Estado, ou seja, diante da idéia de que é possível governar racionalmente um Estado em função da própria natureza do Estado.