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CAPÍTULO 02 – A ESCRITA DO CONTO DE AUTORIA FEMININA:

2.6 As asas de ‘’Duzu-Querença’’: esperanças para reinventar a vida

As narrativas de Conceição Evaristo são marcadas pela desigualdade, principalmente os contos que compõem a obra Olhos d’água. Nestes, a autora apresenta personagens marcados por diferentes desigualdades, dialogando, em sua maioria, com a trajetória do negro na sociedade brasileira. O conto „‟Duzu-Querença‟‟ é um claro exemplo disso.

„‟Duzu-Querença‟‟ narra a história de Duzu, uma mulher negra, pobre e que se encontra nos últimos momentos de sua vida. Essa vida é apresentada aos leitores por um narrador em 3ª pessoa, desde a nova realidade da personagem, relembrando aspectos da sua infância e fase adulta, até o momento de sua morte. No início do conto, Duzu é descrita como uma mulher suja, com aspectos que lembra um mendigo e, de forma imaginária, cata em uma lata restos de comida, fazendo com que um homem passasse e olhasse para ela „‟com uma expressão de asco‟‟ (EVARISTO, 2015, p. 31).

A narrativa é marcada por um tom melancólico, com fortes traços de esperança, sendo este sentimento esperado tanto pelo pai de Duzu quanto por Querença, neta da personagem principal, que, no final da narrativa, decide traçar uma nova história para essa linhagem marcada pelo sofrimento, pela dor e pela desigualdade:

Quando Duzu chegou pela primeira vez na cidade, ela era menina, bem pequena. Viera numa viagem de trem, dias e dias. Atravessara terras e rios. As pontes pareciam frágeis. Ela ficava o tempo todo esperando o trem cair. A

mãe já estava cansada. Queria descer no meio do caminho. O pai queria caminhar para o amanhã. (EVARISTO, 2015, p. 32).

Esse caminhar, esperado pelo pai da protagonista, relaciona-se ao fato de ele desejar que a filha trabalhe e estude, já que ele percebia o quanto „‟Duzu era caprichosa e tinha cabeça para leitura‟‟ (EVARISTO, 2015, p. 32). As marcas de desigualdade são perceptíveis nesse desejo do pai. Enviar Duzu para a cidade é uma das alternativas encontradas para que esta tenha acesso à educação, tanto que, caso isso ocorra, Duzu será um diferencial naquela família marcada pelo sofrimento.

De acordo com Lilia Moritz Schwarcz (2019), a desigualdade é um fenômeno enraizado na história do Brasil, podendo se apresentar das mais diferentes formas: econômica, racial, regional, gênero, geração e social. No conto, essa desigualdade encontra-se marcada nas várias gerações de parentes da personagem principal. Ao chegar à cidade, especificamente na casa de Dona Esmeraldina, Duzu passa a trabalhar, inicialmente, nos afazeres domésticos, claramente uma alusão ao fato de a desigualdade tende a ser mais enfática em países, de acordo com Schwarcz (2019, p. 126), que „‟oferecem poucas oportunidades de empregos‟‟.

Contudo, aos poucos, a personagem percebe que, naquele espaço em que passou a trabalhar, há outras formas de vínculo empregatício: Dona Esmeraldina, na verdade, agencia uma espécie de prostíbulo, em que várias meninas, que Duzu sempre surpreende no „‟entra-entrando‟‟ (EVARISTO, 2015, p. 33), deitam-se com homens em troca de dinheiro. De início, a personagem não liga os fatos, sendo, inclusive, encaminhada para a prostituição: no começo, acha estranho, passa a gostar, de assistir, recebe dinheiro dos homens, encanta-se por um deles, tem o seu corpo tocado, até que, enfim, descobre, de fato, que aquele local se volta para a prostituição, fazendo com que a personagem passe a ganhar dinheiro, o que desperta a raiva de Dona Esmeraldina:

Um dia quem abriu a porta de supetão foi D. Esmeraldina. Estava brava. Se a menina quisesse deitar com homem podia. Só uma coisa ela não ia permitir: mulher deitando com homem, debaixo do teto dela, usando quarto e cama, e ganhando dinheiro sozinha! Se a menina era esperta, ela era mais ainda. Queria todo dinheiro e já! Duzu naquele momento entendeu o porquê do homem lhe dar dinheiro. Entendeu o porquê de tantas mulheres e de tantos quartos ali. Entendeu o porquê de nunca mais ter conseguido ver a sua mãe e o seu pai, e de nunca D. Esmeraldina ter cumprido a promessa de deixa-la estudar (EVARISTO, 2015, p. 34).

A escrita da autora apresenta um tom de denúncia, revelando o seu inconformismo diante da desigualdade que está presente na trajetória da personagem Duzu. Esses tons de denúncia, como a exploração da mão de obra, do corpo e a ausência da escola na vida da personagem, são „‟os remanescentes de escravos‟‟, conforme observação de Eduardo de Assis Duarte (2018, p. 214). Para o pesquisador, a escrita de Conceição Evaristo é marcada não apenas por suas temáticas afro-brasileiras, ganhando destaque, também, a perspectiva estética, em que a linguagem, denominada pela autora de „‟escrevivência‟‟, contribui para que o texto seja „‟ancorado na memória individual e coletiva „‟ (DUARTE, 2014, p. 215).

O processo de „‟escrevivência‟‟, em „‟Duzu-Querença‟‟, destaca-se justamente por trazer, para o texto, um olhar poético sobre a existência do subalternizado. Para Spivak (2010), essa categoria não fala, pois não há valor que se possa atribuir à mulher. No conto de Evaristo, tem-se a preocupação de destacar que Duzu, a partir de delírios, encontra uma saída para fugir das dores da vida, reconhecendo o seu lugar de subalternizada. Após deixar a casa de Dona Esmeraldina e permanecer na prostituição („‟partiu para outras zonas‟‟), Duzu passa a conviver com o medo, a insegurança, a violência, „‟habituou-se à morte como uma forma de vida‟‟ (EVARISTO, 2015, p. 34.). A vida de Duzu na prostituição lhe rendeu fama. No imaginário brasileiro, o estereótipo da mulher negra objetificada e sexualizada permanece vivo. Para Eduardo de Assis Duarte (2018), a desconstrução desse estereótipo está implícito na Literatura afro- brasileira, tendo os contos de Conceição Evaristo a missão de ressignificar a imagem da mulher negra, trazendo uma denúncia das imagens que, na Literatura brasileira, é recorrente, como a própria autora destaca em palestras e entrevistas.

Após abandonar a prostituição, Duzu torna-se mãe de nove filhos („‟Estavam espalhados pelos morros, pelas zonas e pela cidade‟‟) e vários netos („‟nunca menos de dois‟‟). Porém, dessa nova linhagem, três acabam ganhando um espaço especial no coração de Duzu: Angélico, Tático e Querença. O primeiro, que chorava porque não gostava de ser homem, nutre o desejo de ser agente penitenciário. Esse desejo tem o propósito de „‟dar fuga ao pai‟‟ (EVARISTO, 2015, p. 34). Percebe-se, com isso, que o anseio do personagem resulta em um diálogo com a realidade, fornecendo um „‟choro que se remete quase sempre à violência cotidiana em suas manifestações simbólicas e físicas‟‟ (DUARTE, 2018, p. 218). Apesar de estar próximo ao melodrama, o desejo de Angélico consegue se aproximar destes pontos, pois, como aponta Mirian Cristina dos

Santos, a escrita da autora pode parecer despretensiosa ou vazia de significado, porém deixa marcada a denúncia ou a catarse por dias melhores (SANTOS, 2018, p. 112).

Tático, „‟que não queria ser nada‟‟ (EVARISTO, 2018, p. 34), sente na pele a violência que, nas entrelinhas, fica demarcada. Vítima de um grupo inimigo, o personagem tinha treze anos quando foi apanhado de surpresa. Duzu, que guarda um carinho diferenciado pelo neto, passou a sentir uma nova dor em seu peito. Mesmo não almejando nada para sua vida, Tático tentava disfarçar o seu suposto envolvimento com a criminalidade. Contudo, sua avó sabia que ele „‟possuía uma arma e que a cor vermelho-sangue já se derramava em sua vida‟‟ (EVARISTO, p. 35). Com a morte do neto, Duzu passa a ludibriar a dor, vivendo da ilusão e das histórias que cria para, assim, tentar despistar o sofrimento:

Pensando nisto, resolveu voltar ao morro. Lá onde durante anos e anos, depois que ela havia deixado a zona, fora morar com os filhos. Foi retornando ali que Duzu deu de brincar de faz de conta. E foi aprofundando nas raias do delírio que ela se agarrou para viver o tempo de seus últimos dias (EVARISTO, 2015, p. 35.).

Por fim, Querença, neta que, assim como Duzu na sua infância, torna-se a esperança que o pai da protagonista tanto deseja para a família, pois ela, Querença, „‟retomava sonhos e desejos de tantos outros que já tinham ido‟‟ (EVARISTO, 2015, p. 34.).

Querença, cujo nome apresenta uma simbologia claramente identificável, transforma-se na esperança da sua avó para reconstruir a história de uma família marcada pela dor. Em seus delírios e ao preparar um vestido para o carnaval, Duzu deseja que a neta seja uma espécie de nova representante, nova mulher, ligando-se, automaticamente, aos parentes e tradições ancestrais para que esse desejo se concretize. Em um tom de desabafo, a personagem diz que „‟onde ancestrais e vitais sonhos haveriam de florescer e acontecer‟‟ (EVARISTO, 2015, p. 36), prevendo que a neta, finalmente, conseguirá ressignificar a trajetória de tantos que, pelo menos, tentaram modificar a vida de sucessivas linhagens, tendo, inclusive, a própria Duzu como uma das esperanças – sendo este um dos objetivos de seu pai.

Querença passa a frequentar a escola. Com uma realidade diferente das mulheres que a antecederam, a menina descobre que sua avó falecera nas escadarias da igreja que, desde o início da história, é uma espécie de saída encontrada para fugir da realidade que vive:

Subitamente se sentiu assistida e visitada por parentes que ela nem conhecera e de quem só ouvira contar as histórias. Buscou na memória os nomes de alguns. Alafaia, Kiliã, Bambene... Escutou os assobios do primo Tático lá fora chamando por ela. Sorriu pesarosa, havia uns três meses que ele também tinha ido... Querença desceu o morro recordando a história de sua família, de seu povo. Avó Duzu havia ensinado para ela a brincadeira das asas, do voo. E agora estava ali deitada nas escadarias da igreja (EVARISTO, 2015, p. 36.).

É com o desejo de reinventar a vida que Querença passa a pôr em prática os anseios que sua avó tanto almejou para ela. Empoderando-se, a personagem passa a alimentar seus sonhos, cumprindo-os e tornando-os reais. Para Joice Berth (2019), o empoderamento é um fator resultante da junção de indivíduos. Essa junção trabalha com a reconstrução e desconstrução de perspectivas que buscam atingir uma coletividade, como ressignificar os espaços cuja cultura negra ainda não é tão evidente. Querença deseja encontrar novos caminhos, novas soluções e, ao empoderar-se, contrapõem-se ao sistema dominante e, assim, opõe-se à trajetória de outros antepassados. Berth prossegue, enfatizando que o empoderamento não se desassocia da razão coletiva do ser, encarando esse processo como algo „‟gradual‟‟ (BERTH, 2019, p. 55.).

É assumindo esse caráter empoderado que a personagem passa a lutar por uma vida melhor para si e os demais moradores do morro em que vive. Como seu nome já prenuncia, Querença quer um futuro diferente para aqueles que, estigmatizados, sofrem com as mais diferentes formas de desigualdade:

Era preciso reinventar a vida, encontrar novos caminhos. Não sabia como. Estava estudando, ensinava crianças menores da favela, participava do grupo de jovens da Associação de Moradores e do Grêmio da Escola. Intuía que tudo era muito pouco. A luta devia ser maior ainda. Menina Querença tinha treze anos, como seu primo Tático que havia ido por aqueles dias (EVARISTO, 2015, p. 37.).

Diferente de sua avó, cuja fala não foi ouvida, Querença perpetua toda sua carga de conhecimento entre aqueles que, assim como seus semelhantes, não tiveram a oportunidade de adquirir. Para Djamila Ribeiro, esse lugar de fala só é possível por causa das „‟condições sociais que permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania‟‟ (2019, p. 60.). Querença, ao sair da subalternidade e conseguir falar, mostra que é possível ressiginifar a história de vida da sua avó e todos aqueles que, um dia, almejaram uma vida diferente. Assim como os cacos de vidro (ou lixo) que vê brilhando na rua, a menina enxerga um brilho diferente para seu futuro.

2.7 As insubmissas lágrimas de Natalina Soledad, a mulher que escolheu seu