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CAPÍTULO 01 – A ESCRITA DE AUTORIA FEMININA NO CONTO

1.4 O conto (afro-)brasileiro: representatividade e resistência

A produção literária afro-brasileira, segundo Alves (2010), é reconhecida desde o século XIX, tendo nomes como Cruz e Sousa, Luiz Gama, Lima Barreto, Machado de Assis e Maria Firmina dos Reis como pioneiros. Com o passar dos tempos, essa produção passou a ter um olhar diferenciado, problematizando as negatividades em torno da palavra negro.

Por essa negatividade, leiam-se as imagens construídas em torno da pessoa negra, tidas como subalternas à figura do colonizador, o que coloca em discussão a formação da identidade e pertencimento etnicorracial. Segundo Evaristo, essa literatura „‟tem como característica principal a escrevivência‟‟ (EVARISTO, 2007, p. 42). A „‟escrevivência‟‟4

, portanto, como o próprio nome já prenuncia, destaca, por meio da escrita, as vivências – resgatando a ancestralidade e reafirmando sua identidade enquanto uma pessoa pertencente a um espaço marcado pelo silenciamento.

Na contemporaneidade, a literatura afro-brasileira volta-se para denunciar as representações que se construíram em torno da população negra. Essas representações, vistas como estereotipadas, fazem com que autores e autoras negras se utilizem da escrita para evidenciar as circunstâncias de poderes hegemônicos – não só o colonial, mas engloba a dominação masculina, as imagens retratadas em livros e na mídia (escravas, empregadas domésticas, traficantes, entre outras), reforçam, segundo Figueiredo (2009), o preconceito e a exclusão.

Diante disso, escritores como Cuti, Miriam Alves, Conceição Evaristo, Allan da Rosa, entre outros, buscam, através de seus textos, abordar de modo diferenciado as imagens construídas e perpetuadas em torno do negro. São esses textos que fazem a produção afro-brasileira se destacar como uma das principais fontes de conhecimento e solidificação de nomes da atual literatura também chamada negra.

A „‟escrevivência‟‟ desses autores expõe as problematizações que sucumbem às denúncias apresentadas em seus textos. Ao se (auto)afirmarem, conseguem se transformar em representatividade, fazendo com que se identifique :

a formação da identidade brasileira e desnuda o mito da democracia racial. (...) o ponto em comum de expressão baseia-se em soltar a voz encarcerada, tocar em assuntos polêmicos e tabus: falar do não dito, pela perspectiva de quem nunca pôde falar (FIGUEIREDO, 2009, p. 43)

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O termo foi criado pela própria autora e se refere ao seu processo de escrita. De acordo com Conceição, os seus textos refletem as vivências do cotidiano da população negra brasileira e, com isso, volta-se para a sua produção literária. Dessa forma, outros escritores negros passaram a utilizar o termo para se referirem à sua escrita.

A produção afro-brasileira de autoria feminina, preocupa-se com a importância de destacar o pouco espaço dado a essas produções nas mais diferentes esferas – do mercado editorial às escolas, por exemplo. É relevante buscar um espaço significativo para essas mulheres que se dedicam à escrita e, assim, dar-lhes um espaço para o debate e a reflexão. A própria trajetória dessas mulheres merece ser destacada, pois, em sua maioria, foi enfrentando preconceitos que elas conseguiram firmar seus nomes na Literatura brasileira. Para Maria Nazareth Soares Fonseca (2015), as vozes femininas são raras, o que significa dizer que, ao se anunciarem, essas vozes têm a tarefa de construir um novo tempo „‟em que a liberdade poderá ser vivida‟‟ (FONSECA, 2015, p. 105). A pesquisadora ainda enfatiza que, em se tratando de textos de autoria feminina de tradição africana, a mulher se coloca como escritora e, concomitantemente, se inscreve nos textos que produz.

Quando há um trabalho com essas produções, não é difícil encontrar, por exemplo, abordagens em que apenas os estereótipos direcionados às mulheres negras – tais como: mulheres submissas, inferiorizadas, prontas para a exploração sexual, objetos de prazer – sejam o pontapé da discussão. Na obra de Conceição Evaristo, por exemplo, percebe- se que, além das representações já mencionadas, ela também busca explorar outras, quebrando, desta forma, as ideias que, normalmente, associam à população feminina negra, contrariando os „‟discursos homogeneizantes da literatura‟‟ (SILVA apud DUARTE, 2011, p. 12).

Em uma construção ideológica, como a do discurso colonial, a ideia de estereótipo torna-se, como se referiu Bhabha (2013), uma „‟fixidez‟‟ (p. 117). Dessa forma, estereótipo se caracteriza como uma forma de conhecimento e identificação, permitindo com que grupos sejam duplamente conhecidos, o que, para o autor, será representado por uma „‟ambivalência‟‟ (p. 117): aquilo que está no lugar (uma forma de identificação imediata ou de associação a imagens socialmente construídas e, sendo assim, enraizadas historicamente) e sua repetibilidade, fazendo com que se explique algumas imagens „‟seja racista ou sexista, periférico ou metropolitano‟‟ (p. 118), tornando-se conhecido empericamente ou, até mesmo, através da lógica. Homi Bhabha (2013, p. 118), ainda enfatiza que esse discurso colonial de certa forma, alimenta a ideia de estereótipo, contribui para que:

Reconhecer o estereótipo como um modo ambivalente de conhecimento e poder exige uma reação teórica e política que desafia os modos deterministas ou funcionalistas de conceber a relação entre o discurso e a política. A

analítica da ambivalência questiona as posições dogmáticas e moralistas diante do significado da opressão e da discriminação.

Não se pretende, com isso, apenas mostrar o outro lado da história, mas, sim, construir caminhos que levem à desconstrução de visões que, provavelmente, já estão „‟solidificadas‟‟ acerca do lugar social em que a mulher-negra está inserida. Muitas produções, cuja autoria pertence a uma mulher-negra, trazem em seu bojo de criação „‟os seus anseios e a sua luta no dia a dia, ao mesmo tempo incorporando „arte e crítica social‟‟‟ (SILVA, 2011, p. 12). Esses anseios e essa luta se tornam necessários, afinal, a recuperação destas histórias passa pelo crivo de quem sentiu, na pele, as dores e as superações de ascender em uma sociedade que, muitas vezes, alimenta aos estereótipos que, ao longo da história, foram enfatizados no que tange o lugar da mulher-negra.

O trabalho com a produção de autoria feminina negra é de combater a invisibilidade, visto que, dentro dos livros didáticos, por exemplo, elas passam praticamente despercebidas. Este trabalho leva a enxergar a contribuição, o caráter de „‟denúncia‟‟ ou de „‟retomada‟‟ que esses escritos possuem. Assim, o trabalho com esses textos leva a uma:

escrita [que] recupera os espólios da escravização, as reminiscências do passado, ao mesmo tempo em que nos permite pensar a condição feminina a partir das suas peculiaridades e especificidades pela subjetividade, convergindo na construção identitária. (...) as personagens tornam-se argumentos representativos de luta e resistência dos segmentos excluídos, sobretudo, da mulher negra que busca sua identidade „‟perdida‟‟ (SILVA, 2011, p. 12)

Conceição Evaristo consta, atualmente, em muitos debates em torno da representatividade da mulher negra na Literatura. A autora (2009) destaca que existe, no Brasil, um desejo de apagar ou ignorar a forte tradição africana presente na formação nacional, contribuindo, dessa forma, com o silenciamento da mulher negra nos mais diferentes espaços.

Publica seus textos, inicialmente, nos Cadernos Negros, estreando em 1990, com poemas e contos. Esses cadernos têm, como principal objetivo, proporcionar a escritores negros um espaço para exporem seus textos, sendo o gênero conto o que mais consta nas edições. A própria Conceição Evaristo reflete sobre a ausência de escritores negros, nos mais diferentes espaços. Para a autora, os motivos que a levam (e outros escritores de descendência africana) ao silenciamento trata-se de

um exemplo do descaso da história oficial, que se fazia sentir até a bem pouco tempo, era – ou é? – a ausência de textos nos livros didáticos sobre os núcleos quilombolas de resistência ao escravismo que se ergueram em todo território nacional. [...] A literatura brasileira é repleta de escritores afro- brasileiros que, no entanto, por vários motivos, permanecem desconhecidos, inclusive nos compêndios escolares. Muitos pesquisadores e críticos literários negam ou ignoram a existência de uma literatura afro-brasileira. (EVARISTO, 2009, p. 24-25)

Em textos de autoria feminina negra, vê-se que, por meio da escrita, consegue-se problematizar os espaços restritos que foram „‟preconcebidos‟‟ a essas mulheres que, dia após dia, lutam para adquirirem o devido reconhecimento.

1.5 A escrita de autoria feminina e o gênero conto: Lília Momplé e Conceição