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1.3 A Teoria das Representações Sociais (TRS)

1.3.2 As bases epistemológicas de uma nova teoria das representações

A teoria original de Moscovici, de acordo com Pereira de Sá (2001), sofreu desdobramentos que resultaram em três correntes teóricas complementares. Isso se deve ao fato de que, sob a influência e liderança de pesquisadores diferentes, as representações sociais passaram a ser abordadas a partir de três perspectivas: a etnográfica, a sociológica e a cognitivo-estrutural. Com relação a essa questão, Pereira de Sá faz os seguintes comentários:

(...) à perspectiva de Jodelet correspondem os métodos ditos quantitativos; à perspectiva de Doise, os tratamentos estatísticos correlacionais; à de Abric, o método experimental. Mas, embora essas preferências possam ser originalmente verdadeiras, observa-se hoje uma importante interpenetração entre elas (PEREIRA DE SÁ, 1998, p. 81).

A primeira dessas correntes, mais fiel à teoria original e associada a uma perspectiva etnográfica, deve-se à influência de Denise Jodelet, em Paris. A segunda se propõe a articular a teoria das representações sociais com uma perspectiva mais sociológica e é liderada por Willen Doise, em Genebra. A terceira, que enfatiza a dimensão cognitivo-estrutural das representações, tem em Jean- Claude Abric seu principal representante (...) (PEREIRA DE SÁ, 2001, p. 9).

Partindo dessas três possibilidades, para a elaboração dessa pesquisa, optei pela abordagem proposta por Denise Jodelet (2001), por esta assumir uma abordagem mais voltada para questões culturais, ou seja, etnográficas. Essa autora, como destaca Pereira de Sá, é responsável pelo intercâmbio entre a Europa e a América Latina, no que se refere à teoria das representações sociais e, além disso, deve-se a ela a introdução desses estudos no cenário brasileiro.

A vertente psicossociológica, da qual Moscovici participa, como explica Farr (1995), tem seu berço na Europa, opondo-se à tradição norte-americana, fundamentada basicamente

nos processos psicológicos individuais. Além disso, vale salientar que a proposta de Moscovici difere fortemente das formas psicológicas de Psicologia Social, predominantemente presentes nos Estados Unidos da América e, desde o início, constituiu-se numa importante crítica sobre a natureza da pesquisa em Psicologia Social na América do Norte.

A Psicologia Social, de acordo com Moscovici (2001), depara-se com o problema da revolução provocada pelo surgimento dos meios de comunicação de massa e a difusão dos saberes científicos e técnicos, que têm o poder tanto de transformar como o de criar modos de pensamento. Como afirma o autor, esse conhecimento é partilhado e é especialmente concebido com o propósito de moldar a visão e constituir a realidade na qual se vive e, aos poucos, ele passa a fazer parte das relações e dos comportamentos de cada indivíduo.

Dessa perspectiva é que Moscovici propõe mudanças no estudo das representações. Guareschi (1995, p.192) ressalta que esse autor, ao criticar o modelo de abordagem das representações proposto pela teoria positivista e funcionalista, tinha em mente tentar mostrar que a visão de realidade, como pressuposta por essas correntes, “era parcial e não dava conta de explicar as múltiplas dimensões da realidade, em especial a histórico-crítica”. Guareschi acrescenta que a realidade a qual Moscovici se refere, e da qual o conceito de representações sociais deveria dar conta, é uma realidade multidimensional, pois abarca as dimensões físicas, sociais e culturais, logo, o conceito por ele proposto deveria abranger “a dimensão cultural e cognitiva; a dimensão dos meios de comunicação e das mentes das pessoas; a dimensão objetiva e subjetiva” (Guareschi, Ibidem, p.193).

Essa mudança de perspectiva teve por base os estudos empreendidos por três pesquisadores, nos quais Moscovici foi buscar apoio para compreender melhor o alcance sociológico desses conceitos, a saber: Lévy-Bruhl, Piaget e Freud. No primeiro pesquisador, da área da Antropologia, ele apoiou-se para entender o exame dos mecanismos psíquicos e lógicos que levam a uma ordem mental. A Piaget, Moscovici atribui o legado de uma análise que estabelece a especificidade das representações em termos de composição psíquica, visto que ele mostra as grandes formas que assumem os modos de raciocínio (classificar, explicar etc.), na visão da Psicologia do Desenvolvimento. Por fim, nos estudos de Freud, dentro da Psicanálise, ele buscou compreender o trabalho de interiorização das representações sociais. Processo esse que Freud mostrou que se dá na passagem e transformação das representações

presentes na vida de todos para a de cada indivíduo, ou seja, do nível consciente ao inconsciente.

Esse percurso de formação das representações de cada indivíduo descrito por Freud muito faz lembrar a tese vygotskyana, na qual o ISD se apoia para compreender o desenvolvimento humano. Para Vygotsky, o homem fundamenta-se a partir de um processo histórico, num trajeto que vai do social para o individual, ou seja, é na relação com o outro e com o contexto social que se dá o desenvolvimento e a formação da consciência humana. Movimento semelhante é admitido por Volochinov/Bakhtin, outra importante referência do ISD e da própria TRS, como será visto a seguir. Para a abordagem dos fatos linguageiros, esses autores colocam em primeiro plano a dimensão praxiológica das condutas humanas em geral e das verbais em particular. Logo, essa é uma abordagem descendente, que também vai do social para o individual, que parte do “geral para o localizado, ou da unidade globalizadora ‘texto’ para as unidades de nível inferior” (BULEA, 2010, p.64). Nessa perspectiva, a concepção de linguagem constrói-se a partir do conceito de dialogismo, o que significa entender que a linguagem, enquanto mediadora da interação, pressupõe o outro, o social. Sendo assim, fica evidente o papel fundamental atribuído às interações sociais tanto para o desenvolvimento e formação da consciência humana, quanto para a efetivação dos fatos linguageiros e para os processos de interiorização e transmissão das representações que os indivíduos constroem sobre si mesmos, o mundo que os cerca e outro.

Moscovici (2001) parte do pressuposto de que as representações são, de fato, adquiridas/interiorizadas, mas, por outro lado, entende que essas são também construídas. Isso porque os indivíduos adquirem suas representações através das interações sociais estabelecidas com os demais membros dos grupos dos quais faz parte e das próprias intervenções sobre o meio em que está inserido. Contudo, uma vez adquiridas essas representações, essas passam a integrar um sistema maior e complexo de conhecimentos anteriormente adquiridos. É da fusão que se dá entre conhecimentos novos (vindos do contexto social) e os já adquiridos (interiorizados e apropriados por um indivíduo singular) que se constroem novas representações. Logo, essas são elaboradas e transmitidas a partir de uma dinâmica entre aspectos sociais e individuais, uma vez que o indivíduo passa a ter um papel ativo nesses processos que se estabelecem no curso das interações e trocas sociais. Essa ideia vem ao encontro do que afirma Farr (1995, p.51): “O individuo tanto é agente de mudança da sociedade como é produto dessa sociedade”. E isso fica mais evidente, como

exemplifica o autor, quando nos reportamos aos estudos de Saussure e Barthes que mostraram como o ser humano é tanto senhor como escravo da linguagem.

É importante lembrar que Saussure, no Curso de Linguística Geral10 (1916/2006), ao se referir à relação arbitraria entre significante e significado dos signos linguísticos, afirma que “um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em qualquer ponto a escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra” (p.85). Além disso, o autor acrescenta que “o signo linguístico escapa à nossa vontade” (p.85), pois ele é “um produto herdado de gerações anteriores” (p.86), ou seja, “é um produto de forças sociais” (p.88). No entanto, Saussure esclarece que, em relação à língua, “situada, simultaneamente, na massa social e no tempo, ninguém lhe pode alterar nada e, de outro lado, a arbitrariedade de seus signos implica, teoricamente, a liberdade de estabelecer não importa que relação entre matéria fônica e as ideias” (p.90), assim, conclui o autor que “a língua se altera ou, melhor, evolui, sob a influência de todos os agentes que possam atingir quer os sons, quer os significados” (p.91).

Dessa forma, como afirma Moscovici (2001, p.62), “as representações passam a ser entendidas como uma ponte entre os mundos individuais e o social”. Tendo em vista, então, essa nova perspectiva, a preocupação de Moscovici é “compreender não mais a tradição, mas a inovação; não mais uma vida social já feita, mas uma vida social em via de se fazer”.