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3.4 Nível Enunciativo da reportagem

3.4.1 As vozes que povoam o texto

Com relação à reportagem da Nova Escola, percebe-se que há um conjunto considerável de vozes explícitas e implícitas no texto. A primeira delas é a dos autores (voz do autor), outras são de especialistas da área da Educação (voz do expert), mas há ainda vozes indefinidas. Cumpre destacar que essas categorias de vozes já foram utilizadas em análise de documentos por pesquisadores do grupo ALTER.

A voz do autor, de acordo com Bronckart (1999/2007, p.327), “é a voz que procede diretamente da pessoa que está na origem da produção textual e que intervém, como tal, para comentar ou avaliar alguns aspectos do que é enunciado”. Essa voz aparece já na abertura da reportagem e ao longo de todo o texto, como nesse exemplo: “Por trás desse problema – visto pelos professores como um dos principais entraves da boa educação -, há a falta de conhecimento sobre o tema e de adequação das estratégias de ensino” (RNE, out/2009, p. 79).

A voz do expert, do time de especialistas, é recorrente nessa reportagem e diz respeito a profissionais de diferentes instituições educacionais, como aparece nos trechos abaixo:

“(...) Elas [as crianças] não sentem a necessidade de respeitá-los [regimentos] e acabam até se voltando contra essas normas”, explica Ana Aragão, da Faculdade de

Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (RNE, out/2009, p.79, grigos meus).

“Esperar que os pequenos, de modo espontâneo, saibam se portar perante os colegas e educadores é um engano. É abrir mão de um dever docente”, explica Luciene

Tognetta, do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da Unicamp (Ibidem, p.80).

“Não se trata de destituí-la dessa tarefa, mas é preciso enxergar o espaço escolar como propício para a vivência de relações interpessoais”, pondera Áurea de

Oliveira, do Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista “Julio de

Mesquita Filho” (Unesp), campus de Rio Claro (Ibidem, p. 80).

Erro comum em regimentos escolares é situar regras morais e convencionais num mesmo patamar. “As morais merecem mais atenção”, afirma Telma Vinha, do Gepem da Unicamp (Ibidem, p.83).

“Peça que todos contem como se sentiram e por que discutiram. Isso demonstra respeito pelos valores década um”, sugere Vanessa Vicentin, da Universidade de Franca (Unifran) (Ibidem, p.85).

“O resultado é uma piora nas relações entre alunos e professores e, consequentemente, no comportamento da turma”, acredita Adriana de Melo Ramos, do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação Moral (Gepem), da Unesp, campus de Rio Claro (Ibidem, p.83).

“É preciso diversificar a metodologia, pois interagimos com alunos conectados ao mundo por diferentes redes e ferramentas”, acredita Maria Tereza Trevisol, da Universidade do Oeste de Santa Catarina [Unoesc], campus Joaçaba (Ibidem, p.86).

Com base nesses trechos, percebe-se o empenho dos autores da reportagem (todos eles formados em Jornalismo, portanto, profissionais que estão fora do contexto escolar de ensino básico) em fundamentar suas opiniões no que dizem autoridades da área da Educação, vinculadas a diferentes instituições de ensino superior brasileiras (Unicamp, Unesp, Unifran, Unoesc). Assim, passa-se a ideia de que não são posições isoladas sobre o assunto que estão em jogo, mas, sim, uma visão um pouco mais ampla do problema, tomada de diferentes perspectivas institucionais/acadêmicas. Nesses casos, tem-se a “legitimação da expert”, como identificado por Buttler (2009), nas crônicas da Revista Nova Escola (Mazzillo apud Buttler, 2009, p.67).

Essa técnica consiste em destacar o nome, o sobrenome, o cargo e, nesse caso específico, a instituição de ensino, a qual o profissional está vinculado. Dessa forma, usa-se um argumento de autoridade, vindo da voz do expert que, nesse caso específico, parece se tratar da voz da academia, que tem por função legitimar o discurso da Revista, o que é feito nesse texto através do emprego de duas marcas linguísticas: as aspas, que sinalizam o discurso segundo, e os verbos, que inserem tais vozes (sugere/afirma/acredita/explica/pondera

“fulano de tal”). Isso tudo seguido da apresentação do profissional, o que assegura a “legitimidade” das prescrições, uma vez que vêm de uma expert em Educação. Com isso, evidencia-se outra característica dos textos da Nova Escola: servir de mediador do discurso acadêmico, assim como fazem os documentos oficiais.

Contudo, é preciso lembrar que o emprego da voz do expert já haviam sido apontado no trabalho de Buttler (2009), sobre as crônicas da Revista Nova Escola. Logo, essa parece ser uma marca do discurso dessa publicação. O que parece ser bastante compreensível, tendo em vista que são Jornalistas que escrevem as matérias para a Nova Escola, portanto, eles precisam buscar apoio nos especialistas da área da Educação.

Voltando à análise, percebe-se que, somadas a essas vozes explícitas, há outro tipo de voz menos empregado na reportagem: a voz indefinida/neutra. De acordo com Buttler (2009, p. 40), essa voz é “uma voz implícita, o leitor pode conseguir distinguir sua procedência pelo contexto, mas ela não está expressa claramente no texto”, como nos exemplos que trago abaixo:

Não é fácil distinguir em moralidade e convenção. Frequentemente mistura-se tudo em extensos regimentos que pouco colaboram para manter o bom funcionamento da instituição e o clima necessário à aprendizagem em sala de aula (RNE, out/2009, p. 79).

As questões ligadas à moral e à vida em grupo devem ser tratadas como conteúdos de ensino. Caso contrário, corre-se o risco de permitir que as crianças se tornem adultos autocentrados e indisciplinados em qualquer situação, incapazes de dialogar e cooperar (Ibidem, p. 80).

Procura-se evitar os conflitos, vistos como algo antinatural, que deixa os

educadores assustados e inseguros. Câmeras, inspetores e marcação cerrada são exemplos disso. (...) Com isso, gasta-se tempo tentando impedir ou antecipar qualquer tipo de encrenca (Ibidem, p. 85).

Nesses trechos, a presença de verbos na 3ª pessoa do singular (mistura, corre, procura), acompanhados do pronome “se” que funciona, neste caso, como índice de indeterminação do sujeito, confere ao enunciado um caráter de “verdade absoluta”, como explicado por Buttler (2009, p.40). Além disso, com o emprego dessas marcações, a responsabilização pelo que é enunciado é transferida para uma instância social, que representa “as vozes procedentes de grupos ou instituições sociais que não intervêm como agentes” no

texto (BRONCKART, 1999/2007, p. 327). Com isso, não são, de certa forma, os enunciadores os responsáveis por certas afirmações presentes no texto, tais como a de que os educadores misturam as regras; evitam os conflitos de ordem natural e correm risco de permitir que as crianças se tornem adultos indisciplinados. Posto dessa forma os termos, eles são investidos de valor de verdade, de universalidade, pois denotam um distanciamento do enunciador com relação ao que é dito, uma vez que tal afirmação é feita com base em um “consenso”.

Além dessas vozes, encontram-se no texto várias referências a pesquisas realizadas igualmente por diferentes instituições: Ibope, Nova Escola, Universidade de Barcelona, Organização dos Estados Ibero-Americano, Universidade de São Paulo (USP), Fundação SM. Isso dá ao texto ainda mais “respaldo”, visto que apresenta números, estatísticas referentes à área da Educação, como no trecho abaixo:

Pesquisa realizada por NOVA ESCOLA e Ibope em 2007 com 500 professores de

todo o país revelou que 69% deles apontam a indisciplina e a falta de atenção entre os principais problemas da sala de aula. Doce ilusão! O comportamento do aluno não pode ser considerado impedimento para lecionar. Na verdade, ele é resultado da falta de adequação no processo de ensino (RNE, out/2009,p.79, grifos meus).

Nesse exemplo em especial, chama a atenção a construção discursiva, pois há uma “desautorização” do que é dito pelos professores. A reportagem traz o dado estatístico: “69% deles [dos professores] apontam a indisciplina e a falta de atenção entre os principais problemas da sala de aula”. Mas, imediatamente, esse dado é contestado com a seguinte colocação dos enunciadores: “doce ilusão!”. Ou seja, enganam-se os professores que pensam que o problema é a indisciplina dos alunos. Para os enunciadores, o problema está, “na verdade”, no professor, uma vez que o comportamento do aluno “é resultado da falta de adequação no processo de ensino”, portanto, na visão dos enunciadores, isso tem relação direta (e até exclusiva) com o agir docente.

Apresentadas as múltiplas vozes enunciativas que se fazem presentes na reportagem da Nova Escola, é hora de mostrar outra característica bastante marcante desse texto: o emprego recorrente das modalizações. Bronckart (1999/2007) as classifica em quatro tipos, de acordo com a função que elas desempenham: lógicas, deônticas, apreciativas e pragmáticas.

A análise das inúmeras unidades linguísticas que podem expressar essas funções é de fundamental importância para que se possa interpretar o conteúdo temático de um texto, uma vez que elas traduzem, “a partir de qualquer voz enunciativa, os diversos comentários ou avaliações formulados a respeito de alguns elementos do conteúdo temático” (BRONCKART, 1999/2007, p.331).