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1 APRESENTAÇÃO E DELIMITAÇÃO DO CORPUS

1.2 AS CANTIGAS RELIGIOSAS

1.2.1 Afonso X, o Sábio

Se o seu autor non fosse rei, as Cantigas nunca chegariam a existir, polo menos hoxe as coñecemos.

(FIDALGO, 2002, p.93)

Para compreendermos a importância que as CSM apresentam para estudos que envolvem períodos passados da língua, é necessário antes conhecermos um pouco a biografia de um de seus copiladores e a quem atribuímos a autoria das cantigas: o rei Afonso X.

Filgueira Valverde (1985, p.11) afirma que Afonso X nasceu em Toledo em 22 de novembro de 1221 e faleceu em Sevilha em 4 de abril de 1284. Passou sua infância na Galiza e anos mais tarde casou-se com a princesa Violante ou Yolanda, filha de Jaime I de Aragão.

Tornou-se rei em 1252 e, como político, Afonso X foi hábil e arrojado condutor de campanhas bélicas. Apresentava excepcional disposição para seu governo e o realizava de maneira muito direta. Porém, isso “não significa que não tenha enfrentado problemas e cometido erros no exercício do reinado” (FILGUEIRA VALVERDE, 1985, p.12).

De acordo com Leão (2007, p.18), o rei dominava um território muito vasto, maior do que os dos reinos de Castela e Leão. De acordo com a autora, seu domínio territorial ia de Galiza até Aragão, passando por toda a faixa Norte e da Galiza até o Sul. Afonso X impulsionou a economia e reconquistou territórios que haviam sido tomados pelos mulçumanos.

A autora ainda declara que o trono ocupado pelo Rei Sábio sempre lhe pesou como um fardo. Leão (2007, p.19) afirma que não tanto pelas lutas e guerras contra seus inimigos políticos, mas pelas dissensões familiares e pelas intrigas da corte. De acordo com a autora,

As próprias andanças de Dom Afonso, ou melhor, suas ausências [...] estimulavam as pretensões dos infantes ao poder, assim como as ambições dos nobres, comparados por ele, numa [...] cantiga de escárnio. Trata-se da cantiga Non me posso pagar tanto, em que o Monarca, num auto escárnio quase patético, abomina a sua condição de rei, que ele trocaria de bom grado pela de um mercador que navegasse modestamente pela costa, vendendo azeite e farinha. (LEÃO, 2007, p.19)

Para Leão (2007, p.20), o consolo e o refúgio do Monarca era seu scriptorium, onde se abrigavam poetas de todo ocidente, em especial aqueles vindos da região da Provença. Além de poetas, também se reuniam desenhistas, miniaturistas, músicos, tradutores e mestres em todas as artes liberais.

Figura 3. Retrato de Alfonso X de Leão e Castela no Libro de retratos de los Reyes.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_X_de_Le%C3%A3o_e_Castela.

Acesso em 26/08/2012.

Sobre a produção poética ibérica, Borges (2008, p.43) afirma que a figura de Afonso X é extremamente evidenciada e sua corte foi um espaço de grande efervescência cultural. “A sua corte foi o lugar de encontro de um grande número dos poetas galego-portugueses mais representativos e de muitos trovadores provençais, que encontraram em Afonso X não só o patrono como também o inteligente e interessado interlocutor” (BERTOLUCCI PIZZORUSSO, 1993a, p.36).

A língua utilizada por Afonso X para compor suas obras, de acordo com Rübecamp (1932, p.280), foi o galego-português. O castelhano (sua língua materna) era usado apenas para trabalhos em prosa. De acordo Leão (2002, p.2), isso ocorreu devido ao fascínio exercido por uma língua que se afirmava como apta, ou até ideal, para a poesia:

O seu prestígio era tão amplamente reconhecido, que muitos trovadores, no ato de trovar, deixavam de lado a respectiva língua materna e adotavam uma das três grandes línguas poéticas de então. Foi o que ocorreu com D. Afonso X. Compôs suas próprias cantigas e dirigiu ou supervisionou a composição de outras pelos seus colaboradores, utilizando o galego-português.

Ainda, segundo a autora, a língua presente na composição das cantigas não deve ser confundida com o galego-português oral, que como toda e qualquer língua passa por um constante processo de variação. Porém, embora essa preocupação de distinção entre linguagem literária e linguagem oral deva existir, o galego-português da população, ou seja, do povo, não está totalmente ausente nas cantigas e isso é visível nos diálogos encontrados nos textos. Sobre este assunto, Filgueira Valverde (1985, p.39) afirma reconhecer um tom mais popular na linguagem das CSM:13

La lengua de los trovadores no era algo artificial, sino un producto artístico, sincero, inspirado muy de cerca en el gallego vulgar, que hoy perdura con muchas características de aquélla, inmediata en las Cantigas a la lengua hablada [...].

É a presença dessa marca da oralidade e de interação entre as personagens que nos possibilitou estudar e mapear a presença de formas imperativas variantes nas CSM.

Outro aspecto em relação à linguagem das cantigas observado por Leão (2002) é o fato de a língua materna do trovador ser o castelhano, o que segundo a autora torna inevitável a interferência dessa língua no galego-português. Ressaltamos que Afonso X viveu parte de sua infância na Galiza, sendo criado por Garcia Fernández de Villaldemiro, tornando-se, provavelmente, falante nativo também do galego-português.

Sobre a riqueza do vocabulário e do estilo em geral das CSM, Leão (2002, p.3) nos chama atenção para uma diversidade muito grande de tema, não retratando apenas a vida

13 “A língua dos trovadores não era algo artificial, mas sim um produto artístico, sincero e inspirado no galego vulgar, que hoje perdura com muitas características daquela época, próximas à língua falada apresentada nas Cantigas”. Esta e as demais traduções apresentadas neste trabalho são de responsabilidade da autora desta tese.

religiosa, e sim também a vida em toda sua complexidade. Segundo a autora, essa complexidade teve repercussão na linguagem.

Filgueira Valverde (1985, p.21), também se referindo à escolha reflexiva de cada vocábulo usado por Afonso X, afirma que havia uma busca constante de novos assuntos e fórmulas rítmicas para expressá-los, e certa preocupação com cada detalhe da narração poética ou histórica.

Leão (2002, p.3) ainda afirma que o galego-português literário do século XIII apresentava uma unidade, mas certamente já começava a fragmentar-se na língua oral, e isso já era percebido na linguagem literária. Para a autora, uma prova disso é que a linguagem utilizada nos cancioneiros profanos se encaminha para o português, enquanto que a linguagem das CSM, no que diz respeito à morfologia e à fonologia, tende mais para o padrão galego.

Porém, alguns autores, no que diz respeito a esse aspecto, discordam de Leão (2002). Gonçalves (1985) afirmam que a linguagem dos cancioneiros e das CSM é a mesma, o galego-português. As autoras entendem por lírica galego-portuguesa um grupo de 1980 textos de assunto profano, que foram transmitidos por três cancioneiros, e 420 textos religiosos, as chamadas Cantigas de Santa Maria. Para Gonçalves (1985, p.18-19), todos esses textos foram escritos numa língua com características bastante uniformes, o galego-português, em um período que vai de finais do século XII à segunda metade do século XIV.

De acordo com Massini-Cagliari (2005), as diferenças fonológicas encontradas entre esses dois tipos de discurso não são de tipologia dos fenômenos, mas de frequência. A autora ainda ressalta que as CSM possuem um nível de formalidade de expressão muito maior do que as cantigas profanas, “dada a tendência mais latinizante do discurso religioso, que, embora composto em galego-português, se refere a um universo em que dominava o latim, língua oficial da Igreja” (MASSINI-CAGLIARI, 2007, p.113). E conclui dizendo que “não havendo distinção tipológica, não há diferença de sistema, em outras palavras, trata-se de uma mesma língua” (MASSINI-CAGLIARI, 2007, p.122).

Filgueira Valverde (1985, p.19) ressalta que Afonso X alcança indiscutida soberania, dominando diversos campos, entre eles o das narrativas e louvores religiosos até a lírica profana. Leão (2007, p.19) também afirma que, além de ter escrito obras com o próprio punho, ainda traduziu diversas obras pessoalmente e planejou, supervisionou e revisou tantas outras através de um trabalho cooperativo sob sua direção.

Para Leão (2007, p.21), são atribuídas a Afonso X obras de cunho jurídico, histórico, científico, escritas em prosa e em castelhano, além das obras poéticas, escritas em galego- português, divididas nas vertentes profana, da qual fazem parte as suas cantigas de amor, de

escárnio e de mal dizer, e religiosa, da qual fazem parte as CSM, objeto de estudo desta tese. Sobre as principais obras atribuídas a Afonso X, podemos mencionar:

 Afonso X dirige e elabora duas obras importantes na historiografia medieval:

Estória de España e Grande e General Estória.

 No aspecto jurídico, as suas Partidas ou Fuero de Las Leyes são os mais importantes códigos da Idade Média, pois disciplinaram e ajudaram os juristas a conhecer seus direitos e obrigações.

 As obras científicas foram realizadas também com a ajuda de humanistas e de sábios, usando textos traduzidos ou construindo aparatos astronômicos. São alguns desses textos: Libros del saber de Astronomía, El libro de las cruces,

Lapidario, Setenario.

 O Libro del açedrex, dados e tablas trata do lúdico como descanso do trabalho; é um valioso tratado sobre o tema nessa época.

 Afonso X nos lega também uma copiosa obra lírica galego-portuguesa que abarca todos os gêneros, com 44 cantigas profanas e 420 cantigas religiosas, mais um fragmento incluindo as de amor.