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O IMPERATIVO NO PORTUGUÊS DEPOIS DO PERÍODO MEDIEVAL

Ocorrência dos dados

6 O IMPERATIVO NO PORTUGUÊS DEPOIS DO PERÍODO MEDIEVAL

Após a realização da análise dos dados coletados nas CSM, julgamos ser pertinente esboçar o perfil morfológico das formas verbais imperativas depois do período medieval, com o intuito de mostrar que o modo imperativo, hoje, apresenta dois tipos de flexões para a 2ª pessoa: a) uma originária a partir da 2ª pessoa e extraída do presente do indicativo, sem o morfema -s de NP, e b) outra originária historicamente da 3ªps, com o surgimento da forma pronominal você, em meados do século XVIII.

Nesta seção discorreremos, a partir de uma perspectiva diacrônica, sobre os fatores de natureza linguística e social que interferiram e continuam interferindo no processo de surgimento da forma pronominal de tratamento você, em PB, e como esse fenômeno está associado à provável perda da morfologia flexional do modo imperativo.

6.1 O SURGIMENTO DA FORMA PRONOMINAL “VOCÊ” E AS MUDANÇAS ESTRUTURAIS DO SISTEMA DE CONJUGAÇÃO VERBAL

De acordo com os estudos de Cintra (1972), os primeiros registros da forma vossa

mercê, que anos mais tarde deu origem à forma você, tal como conhecemos nos dias atuais,

datam de 1331 e vão até meados de 1490. Segundo o autor, era o tratamento usado neste período para duques e infantes, passando, mais tarde, já no início do século XVI, para patrões burgueses a quem se dirigiam seus escravos. Para o autor, esse processo de mudança está relacionado a um processo de hierarquização cada vez maior da sociedade.

Em estudos anteriores, Amaral (1955) declara que, a partir do final do século XV, em Portugal, há um uso generalizado da expressão de tratamento vossa mercê e de suas variantes pela população não aristocrática, inclusive pessoas que se estabeleceram no Brasil através do processo de colonização, por volta do século XIV. De acordo com o autor, neste período, a forma de tratamento vós já estava em desuso e era possível identificar o processo de simplificação da forma vossa mercê em um estágio avançado.

Por sua vez, Nascentes (2003 [1949-1950], p.114) havia afirmado que a expressão

vossa mercê não chegou a se cristalizar no século XIV e que, somente a partir do século

XVIII, a mercê passou a ser utilizada pelos burgueses, classe social, cujos membros não possuíam título de nobreza.

Para o autor, o uso de vossa mercê apresentava um caráter dúbio: a) ela poderia ser marcada por uma estratégia argumentativa utilizada pelos súditos ao pedirem algo para o Rei, formando a forma de tratamento vossa mercê, que “afagava a vaidade e o amor próprio do soberano” (NASCENTES, 1956, p.114); e b) atribuía-se a noção de efeito à expressão, quando possuía o sentido semântico de recompensa, passando de vossa mercê a mercê, que era dada pelos reinantes aos súditos em troca de favores.

Biderman (1972), a respeito das formas de tratamento, baseada nos estudos de Brown e Gilman (1960), afirma que, no período medieval, são encontrados os fundamentos de uma sociedade fechada que imperou na Europa. De acordo com a autora, “na escala do poder o rei e o líder religioso encontram-se no topo da hierarquia social. Eles receberão sempre um tratamento de respeito e a sua relação com outro indivíduo será sempre assimétrica” (BIDERMAN, 1972, p.340).

Biderman (1972) lembra que, na época da România medieval, quando se constituíram os padrões literários e normativos das línguas românicas modernas, a sociedade possuía três “status” bem demarcados: a nobreza, o clero e o povo. O relacionamento entre essas classes sociais era assimétrico, estando “as duas primeiras no topo da sociedade, a elas era devido o respeito e elas exerciam autoridade. Outra forma de relação assimétrica é a então existente entre os dois sexos e, no interior da família patriarcal, entre pais e filhos” (BIDERMAN, 1972, p.341).

Para compreendermos melhor a situação exposta no parágrafo anterior, a autora nos apresenta um esquema, no qual o membro de cada díade que está no alto representa o princípio de supremacia e poder:

Figura 12. Relação de tratamento entre as classes sociais no período da România medieval

.

Biderman (1972) declara que a estrutura social e os padrões de comportamento trazidos para a América Latina foram, de modo geral, os mesmos existentes na Península Ibérica ao tempo da colonização. Para a autora,

Naquelas sociedades européias o poder era uma coordenada básica das relações entre os cidadãos. Assim ele também figurará como uma força polarizadora na organização das relações. No Novo Mundo, porém, a forma de dominação que se estabeleceu foi ainda mais extremada: a escravidão de fato, ou de direito. Talvez porque os colonos portugueses e espanhóis que imigraram, fossem indivíduos da classe média inferior, da classe baixa e muitos deles marginais indesejados nas suas pátrias de origem; talvez por isso as relações de poder aqui tenham sido mais extremas. Uma vez que um indivíduo nunca teve poder, quando o tem é mais arbitrário do que quem sempre o teve. Por outro lado, a população dominada e escravizada eram povos alienígenas para o colono europeu: o índio e o negro africano. (BIDERMAN, 1972, p.350)

De acordo com a autora, a maioria dos colonos europeus que vieram para o Brasil proveio das zonas rurais Ibéricas e trouxe consigo as antigas formas medievais de relação, “dominando outros indivíduos, o imigrante europeu pobre repetiu o esquema que sofrera [...], donde se estabeleceram relações assimétricas na sociedade colonial latino-americana” (BIDERMAN, 1972, p.350). O esquema abaixo demonstra a relação entre os indivíduos nesse período:

Figura 13. Relação de tratamento entre as classes sociais no período da colonização.

Para a autora, o modo de estruturação do poder na América Latina fez com que existissem, nessas sociedades, formas de tratamento dependentes das relações assimétricas. Biderman (1972) criou uma série de quadros que exemplificam as formas pronominais utilizadas no período desde a Idade Média, passando pelo período colonial, até chegar no século XIX. Tais quadros nos auxiliam a compreender um pouco mais a evolução dos pronomes de tratamento em língua portuguesa, tanto no Brasil quanto em Portugal.

Na Idade Média, período que compreende o corpus em estudo nesta tese, segundo Biderman (1972, p.359), era possível encontrar a seguinte situação pronominal no que se refere às formas de tratamento:102

Quadro 10. Relação de tratamento entre as classes sociais na Idade Média.103

Fonte: Biderman (1972, p.359).

Observando o quadro acima, podemos afirmar que, no PA, as relações sociais de tratamento eram bem demarcadas, como já havia afirmado a autora. Biderman (1972) menciona que os indivíduos da plebe, que tinham contato com os nobres, eram, de modo geral, criados muito chegados, tais como aios104 ou amas, com os quais era possível identificar, através dos documentos que chegaram até nós, uma relação afetuosa.

102O quadro dever ser lido com um cruzamento das informações presentes nas linhas e nas colunas. Assim temos a seguinte representação na linha 1: as formas pronominais de tratamento utilizadas entre os reis, entre o reis e os nobres e entre o reis e o povo".

103Lê-se nos quadros: IG (igual), S (superior), I (inferior), D (desconhecidos).

104De acordo com o dicionário Aulete Digital (2014), a palavra aio apresenta os seguintes significados: