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AS CARTAS: UM DESAFIO COMPARTILHADO

2 OS CAMINHOS PERCORRIDOS

2.4 AS CARTAS: UM DESAFIO COMPARTILHADO

Durante o desenrolar da pesquisa, mantive correspondência com as professoras e com a equipe pedagógica da escola, através de cartas. Estas permitiram a abertura ao diálogo, através do qual fomos nos desafiando a pensar nossas histórias para melhor compreendê-las e reinventá-las. Esse movimento permitiu superar alguns saberes que se mostraram insuficientes e tecer outros.

Ao propor a idéia às minhas parceiras, fiquei na dúvida se daria certo. Sei o quanto é difícil arrumar tempo para sentar, organizar o pensamento e colocar algumas idéias no papel,

mas resolvi tentar e ver o que aconteceria. Fiquei muito feliz ao receber a resposta da primeira carta enviada poucos dias antes e perceber que o grupo estava comprometido com a pesquisa e procurando teorizar sobre a própria prática. Isso pode ser constatado no trecho inicial da primeira carta que recebi de Vaneza: “[...] acho interessante este tipo de correspondência. Há muito tempo não escrevo cartas. Acho que é uma oportunidade de retomar o hábito de escrever melhor. Passei a limpo, mas tem vários erros de Português. Você está nos fazendo pensar muito sobre como conseguimos dar a virada na escola. É que tudo foi acontecendo na caminhada e até então não tínhamos parado para pensar como se deu o processo. Na segunda-feira passada, começamos a discutir, mas não escrevemos nada. A discussão ficou bem animada”.

Vaneza demonstra a vontade de aprofundar a compreensão dos movimentos de ruptura e de mudança que ocorreram na escola, dos quais fez parte. Quando iniciamos a pesquisa, essa trajetória não estava suficientemente clara para as professoras. Elas percebiam que muitas mudanças haviam ocorrido na escola, mas não conseguiam justificar como nem por que ocorreram. Nesse sentido, a reflexão e o diálogo nos quais nos envolvemos através da pesquisa parecem ter contribuído para a tessitura de alguns conhecimentos e de novas compreensões, avançando na superação do senso comum.

Para Freire (2000, p.16), a curiosidade ingênua de que resulta um saber é a que caracteriza o senso comum, cuja superação se dá na medida em que ela se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se curiosidade epistemológica, confere a seus achados maior exatidão.

De fato, ao longo do estudo, pude perceber que os movimentos de mudança da escola, que antes eram apenas percebidos, passaram a ser justificados pelas professoras, graças à reflexão crítica, individual e coletiva. A história da escola, ao ser narrada, passou a ser interpretada e reinterpretada pelas professoras, num movimento de reinvenção da realidade vivenciada. Ao se assumirem como pesquisadoras da sua própria prática, foram tecendo conhecimentos entrelaçados com um referencial teórico e, com isso, foram ampliando sua compreensão.

Fiquei feliz, também, ao receber cartas de professoras da escola, as quais não conhecia pessoalmente, pois não estiveram presentes nas oportunidades em que visitei a escola. Pude perceber o envolvimento delas com a proposta da pesquisa, como é possível constatar no trecho abaixo, retirado de uma das cartas de Leoni:

“Querida colega Rosana!

Espero que esteja tudo bem por aí. Aqui o calor é muito intenso, que às vezes nem tenho vontade de sair de casa. Adorei a idéia das cartas. É importante que esses momentos de

alegria, ansiedade e às vezes de angústia não fiquem apenas registrados na nossa mente, mas que também possam ser divididos e compartilhados com pessoas que se interessam por esse tipo de abordagem. Já faz algum tempo em que eu já vinha pensando em começar a fazer alguns registros sobre experiências da minha prática pedagógica e essa idéia das cartas veio bem ao encontro do que eu estava pensando e, agora melhor ainda porque esses registros não vão ficar guardados no fundo de uma gaveta. Acho que vou enviar muitas cartas...”.

O tratamento utilizado por Leoni para se referir à minha pessoa, chamando-me de colega, mesmo eu não a conhecendo pessoalmente, passa a idéia de que não existe distância nem hierarquia entre pesquisadora e participantes da pesquisa. De fato, somos todas colegas com o objetivo comum de narrar a história da Escola Dora Abreu, cada uma dando a sua contribuição como se fôssemos fios de diferentes cores, texturas e espessuras, que irão trançar uma rede. Esse sentimento de colaboração vem ao encontro do que dizem Connelly e Clandinin (1995), ao destacar a relevância de que os participantes se vejam como membros de uma comunidade na qual todos têm voz, estabelecendo-se um sentimento de conexão e atenção mútua.

Ao longo do trabalho, algumas cartas foram transcritas na íntegra e de outras foram destacados alguns trechos. Recorrendo à metáfora da rede, procuro trançar os diferentes fios que obtive através dos relatos feitos pelas professoras, inserindo nessa rede o fio da minha maneira de compreender e contar a história, puxando o fio de alguns teóricos que me ajudam nessa tessitura.

A metáfora do conhecimento em rede, segundo Moraes (2003), permite superar a idéia do conhecimento como blocos fixos e mutáveis e entendê-lo como uma teia, onde tudo está interligado, não existindo nada que seja primordial, fundamental, primário ou secundário, uma vez que já não existe mais nenhum alicerce fixo e imutável. Assim, a metáfora da rede permite uma aproximação não mais linear e dogmática da realidade, pois conforme Manhães (2001, p.71):

A tessitura do conhecimento em rede reconhece que nenhuma análise pode espelhar a realidade, nem é produto de um sujeito radicalmente separado da natureza. O observador é participante e criador de conhecimento, sendo cada um responsável pela inclusão de novos nós na própria rede. O conhecimento que se faz a partir das relações que se enredam ultrapassa a busca de certezas e aceita a incerteza para também superá-la.

Ao utilizar a narrativa, pretendi dar voz às professoras, reconhecendo-as como protagonistas do estudo, trazendo-as ao texto como co-autoras dos conhecimentos que foram sendo tecidos. Conto a história junto com as professoras. Elas estão presentes ao longo do

texto, através de trechos das cartas que me enviaram ou através do relato das histórias que me contaram nos nossos encontros.