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STATUS JURÍDICO

2.3 As Ciências Agrárias: o nascedouro

O curso de Agronomia, das Ciências Agrárias é o mais antigo no Brasil. O primeiro iniciou-se em 1877, na Bahia, atendendo à aristocracia agrária insatisfeita com o declínio da cana-de-açúcar no Nordeste e a pecuária no Sul. Com o fim da escravidão, e o aumento da demanda pela estocagem de alimentos e obtenção de processos agrícolas com retorno rápido, criaram-se condições de surgimento da ciência agronômica no Brasil. A primeira escola se localizou em São Bento das Lages, no interior da Bahia, e a segunda escola foi fundada em 1883, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Mas o grande avanço das Ciências Agrárias no país se deu entre 1960 e 1980, quando foram inauguradas 40 instituições de ensino agrícola (CAPDEVILLE, 1991). A pós-graduação também cresceu espantosamente nesse período. O primeiro curso de pós-graduação do Brasil em Ciências Agrárias foi o de Hortaliça, na Universidade Federal de Viçosa – UFV, em 1961, e depois em Economia Agrícola, também na UFV. Em 1985 eram 98 mestrados e 21 doutorados em Ciências Agrárias. O número impressiona, no entanto, é fácil identificar a causa quando a associamos à estratégia norte-americana de cooptação dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, no intuito de ganhar mercados e conseguir fornecedores de matéria-prima.

O nascedouro da pesquisa agrícola e extensão rural brasileira na década de 60 teve nos Estados Unidos um grande influenciador e patrocinador. O avanço do capitalismo no campo impunha a necessidade de formação de pesquisadores e de mão de obra especializada. Essa relação impõe à área do conhecimento uma herança teórica e material que a tem dominado, e mesmo possuindo correntes teóricas contra hegemônicas, tem permanecido como raiz do pensamento e da ação pedagógica. Diferentemente da ideia moderna de universidade, legitimada pela autonomia do saber em face do mercado, da religião e do Estado, o campo teórico das Ciências Agrárias é guiado por uma lógica particular que afeta a descoberta e também sua transmissão, padecendo de um reducionismo metodológico e filosófico.

A herança identitária profissional das Ciências Agrárias está enraizada em um tecnicismo pouco relacional, e apesar (ou por causa disto) das relações pedagógicas autoritárias construídas durante a formação e prática profissional, os profissionais desse campo receberam do maior educador brasileiro, Paulo Freire, uma análise global sobre o trabalho do chamado “extensionista”. A extensão rural é uma subárea da Agronomia na CAPES e ganha destaque aqui por ser o campo mais relacional das Ciências Agrárias, e é verdadeiramente a área que carece de teoria e prática interdisciplinar, pois diz respeito ao acúmulo de conhecimento técnico aplicado às realidades locais e interações globais. A extensão rural é o elo entre a teoria e a prática nas Ciências Agrárias e se realiza na atuação do profissional no âmbito do desenvolvimento do campo.

O livro de Paulo Freire “Extensão ou Comunicação?” é um alerta sobre os equívocos sacralizados em torno das relações que se travam entre o técnico e o conhecimento; o técnico e os agricultores; e entre os agricultores, os técnicos e o conhecimento. A Extensão é considerada como um processo de educação não formal no meio rural com objetivo de impulsionar o desenvolvimento do campo e tem uma tarefa que se articula e identifica com a ação da educação popular. No entanto, sua materialidade de origem é outra, nasce com o objetivo específico de moldar o homem e a mulher do campo para um tipo de desenvolvimento do campo que atenda aos interesses do capital estrangeiro. Para isso desenvolveu metodologias de propaganda, convencimento, indução/persuasão, formatando a produção e a organização da vida no campo. O marco brasileiro é 1948, com a criação da Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural (ABCAR).

Neste contexto, Paulo Freire se apresenta como o inverso da lógica clássica da extensão rural. A partir das lutas da década de 1960 formula uma pedagogia que parte da realidade brasileira e latino-americana, sendo nosso maior expoente em práticas educativas pedagógicas concretas que ocorriam em diferentes contextos e situações: da alfabetização de adultos, passando pelas escolas, pelas organizações operárias e lutas camponesas por terra, estando presente em processos revolucionários, como as marcantes experiências da Nicarágua e de Cuba (PALUDO, 2016).

No livro “Extensão ou Comunicação? ” Freire utiliza-se de uma análise a partir do campo associativo da palavra extensão para demonstrar sua aplicação equivocada ao trabalho do agrônomo ou do profissional “extensionista”. Afirma enfaticamente que nem camponeses, nem ninguém, se persuade, ou se submete à força mítica da propaganda, quando se tem uma opção libertadora. Como educador, recusa-se à

domesticação dos homens, sua tarefa corresponde ao conceito de comunicação, não ao de extensão. Essa herança teórica da concepção de Freire sobre o trabalho do engenheiro agrônomo tem atravessado décadas como um importante marco teórico, no entanto, no âmbito formativo corresponde mais a uma fala/leitura do que a uma prática, a começar pelo próprio nome (extensão), refutado por ele. O trabalho do profissional de agronomia como um intermediário entre o desenvolvimento da ciência e tecnologia e o limitado acesso aos conhecimentos científicos doshomens e mulheres do campo tem se fortalecido a partir de uma educação servil, em um mecanismo de reprodução capitalista e de manutenção do status quo, que defende um modelo de sociedade urbana industrial, na qual o campo tem papel secundário de fornecedor de matéria-prima.

Neste contexto há um forte vínculo entre a subárea do conhecimento extensão rural e políticas públicas relacionadas ao desenvolvimento do campo a partir de pressupostos da Revolução Verde. Essa herança teórico/prática da extensão se confronta com um conhecimento insurgente referenciado na prática pública, comunitária, no embate com a exclusão do mercado, com a exclusão tecnológica, com a democratização do conhecimento. Esse campo do conhecimento cresce com a chegada das camadas populares à universidade, com a ascensão dos movimentos sociais do campo e da cidade. A extensão rural, a partir de 2004 se fortalece como política pública do campo e como disciplina dos cursos agrários, heterodoxa em várias universidades, por ser densa teoricamente, relacional, prática e engajada. Cria demandas de um docente preparado para sua nova fase, capaz de propiciar nexos entre teoria e prática, atualizado com as dinâmicas sociais no campo e na cidade e com disposição para abandonar manuais e criar vínculos contínuos entre estudantes, comunidades e academia.

A extensão rural é desafiada a se posicionar, atualmente, diante de um leque de novos referenciais, como a reorganização do trabalho e da produção dentro da ótica do associativismo/cooperativismo e da economia solidária; as desigualdades sociais associadas a gênero, etnias e geração; as concepções de desenvolvimento que promovem o empoderamento dos segmentos sociais excluídos, tal como descritas no desenvolvimento local; a expansão das novas tecnologias de comunicação e informação; a perspectiva comunicacional, que considera as populações do meio rural como sujeitos que reagem às políticas governamentais e não governamentais como produtores de sentido; os movimentos sociais pela terra; a agricultura familiar e suas relações com a segurança alimentar; a representatividade das atividades não agrícolas e, mais recentemente, a agroecologia (CALLOU, 2008).

Segundo Bireaud (1990), há um vazio a ser preenchido no que tange aos métodos pedagógicos para o ensino superior. O repensar do modelo clássico de professor universitário em que “quem sabe um determinado conhecimento, automaticamente sabe ensiná-lo”, é uma necessidade já antiga, partilhada por diversos países. Além do conhecimento específico de uma determinada área, o professor deve ter uma formação pedagógica e uma compreensão política condizente com os desafios do processo de ensino-aprendizagem, na sociedade contemporânea.

Callou (2008) atenta para outro aspecto não menos importante, ao se referir ao fato de os professores frequentemente destacarem “a impossibilidade de se construírem relações mais duradouras com os diversos atores sociais”; “a dificuldade de uma inserção mais sistemática do pesquisador nos contextos rurais, em função do descrédito das populações ali envolvidas com as inúmeras promessas e com as poucas realizações”; “a origem urbana dos alunos e a sua inexperiência no campo de trabalho com agricultores”. Diante desse quadro se impõe o desafio da crítica e do diálogo com a realidade.

Sobre a universidade norte-americana, Wolf, (1993) afirma que o assunto das disciplinas é abstrato e impessoal; é determinado por tradições da época dos mandarins, mais com o propósito de fortalecer a supremacia dos professores mais titulados do que iluminar a mente ou alegrar o coração. Ainda sobre a universidade americana, o autor afirma que toda vez que é possível, o mundo real é ignorado. Onde quer que a vida ameace invadir a intelectualidade, ela é enrijecida pela disciplina.

Ironicamente, a cultura e o interesse econômico norte-americano é que moldaram a extensão rural brasileira fundamentada na pedagogia da Revolução Verde, difusionista, tecnicista e que nos levou a um desenvolvimento dependente e contribuiu com uma universidade heterônoma.

A autora bell hooks7, 2019 feminista, negra e importante interlocutora de Paulo Freire afirma ter sentido extremamente incluída no livro Pedagogia do Oprimido mais do que em clássicos feministas de sua época considerando sua experiência como mulher negra de origem rural. Essencialmente porque na obra de Freire há o reconhecimento da subjetividade dos menos privilegiados, dos que têm de carregar a maior parte do peso

7 A autora sempre escreve seu pseudônimo, em letras minúscula, pois, afirma que o racismo e o sexismo nunca a permitiram se escrever em letras maiúsculas na vida.

das forças opressoras (exceto pelo fato de ele nem sempre reconhecer as realidades da opressão e da exploração distinguidas segundo os sexos.)

Freire é um intelectual engajado, escreve na perspectiva dos camponeses, dos pobres e se dirige aos extensionista, criticamente porque sabe que a classe social molda nossa perspectiva da realidade. E que todo conhecimento é forjado em contextos no campo dos antagonismos sociais.

Paulo Freire, intelectual da classe trabalhadora, conhecia o campo, trabalhou junto aos camponeses, alfabetizou-os e os fez amigos. Para ele havia algo extremamente incoerente no trabalho dos agrônomos junto a essa população, a começar pelo nome dado a esse serviço/trabalho – extensão rural, que se relaciona com outras ideias do tipo transmissão, entrega, doação, messianismo, mecanismo, invasão cultural, manipulação. E todas essas ideias, segundo Freire, seguem transformando o homem em quase coisa, negando-o como um ser de transformação do mundo. Enfaticamente, Freire afirma que extensão não corresponde a um que fazer educativo libertador. Com isso Freire não queria negar ao agrônomo o direito de ser um educador-educando, pelo contrário acreditava que este era o seu dever no campo, educar e educar-se e, portanto, seu trabalho não poderia ter um rótulo que negasse esta perspectiva. (FREIRE, 1979)

A ação de persuasão junto aos camponeses não é aceitável em uma perspectiva educativa e libertadora. No entanto, dito com estas palavras, este era o objetivo do extensionista, persuadir e selecionar os mais aptos à adoção das “práticas modernas” dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde.

Na década de 1980, quando as ideias de Paulo Freire retornaram com força no processo de redemocratização do país, a extensão rural no Brasil passou por um período de autocrítica, revisão, inserção de metodologias participativas, crítica às tecnologias empregadas na agricultura. No entanto, não houve mudanças significativas, nem na prática nem na alteração do conceito. Emergiram extensionistas conservadores, formados em velhas bases e com uma visão de campo hierárquica e colonizada.

Nos anos de 2005 a 2012 houve significativos esforços em organizar o coletivo de professores de extensão rural no país. Com o apoio do Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA e algumas universidades foram realizados três seminários nacionais e dois regionais, na certeza freireana que a tomada de consciência não se dá de forma isolada, mas quando travamos, entre nós e o mundo, relações de transformação. Alguns resultados e descobertas regionais brotaram desse diálogo nacional. Muitos gargalos, dificuldades foram explicitados, tanto em relação a

diferentes visões de campo, quanto a diferentes abordagens pedagógicas. Uma delas é a caracterização da extensão como conhecimentos de fronteira e no campo da complexidade.

No entanto, a extrema heterogeneidade do grupo docente faz com que se dispersem em diferentes congressos e associações de pesquisadores, desde educação, economia, sociologia rural, agroecologia e meio ambiente, sem falar nos mais especializados setores da produção. Essa dispersão que traz riqueza aos debates, também é geradora de uma fragilidade perante os cursos e instituições. Frequentemente observam-se situações em que, na ausência do professor da área de extensão (por diferentes motivos), prontamente se apresentam candidatos de todas as outras áreas. Além disso, é pouca a importância dada a essa área do conhecimento, uma vez que no campo das engenharias, as ciências humanas não se encontram nos andares mais elevados da escala hierárquica dos conhecimentos (na lógica positivista). Marilena Chauí (2003) aponta outras questões mais amplas como a visão organizacional da universidade que, produziu aquilo que segundo Freitag, citada por Chauí, pode-se denominar como universidade operacional. A heteronomia da universidade autônoma é visível a olho nu: o aumento insano de horas/aula, a diminuição do tempo para a realização de cursos de mestrados e doutorados, a avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios, dentre outras exigências. Nela, a docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes. O recrutamento de professores para essa área de atuação é feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de conhecimentos de sua disciplina e as relações entre ela e outras afins – ou o professor é contratado, na maioria das vezes, por ser um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação. Em uma empresa não há tempo para a reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos instituídos, sua mudança e sua superação. Se reduzida a uma organização empresarial, a universidade abandona a formação e a pesquisa para se lançar na fragmentação competitiva. E o faz porque vem sendo privatizada por dentro, e a maior parte de suas pesquisas é determinada pelas exigências de mercado, imposta pelos financiadores. Isso significa que a universidade pública vem produzindo um conhecimento, ainda que não só destinado à apropriação privada. Essa apropriação é inseparável da mudança profunda sofrida pelas ciências em relação à sua prática.