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CAPÍTULO 3: LIMITES DO PBF NO RECONHECIMENTO DA SEGURANÇA DE

3.1 As condicionalidades do programa Bolsa Família

O Programa Bolsa Família foi criado no âmbito da Presidência da República, sendo destinado às ações de transferência de renda com condicionalidades; sua atuação é focalizada nas famílias brasileiras com renda per capita entre zero e R$ 70 reais, consideradas miseráveis, e de R$ 70 a R$ 140, consideradas pobres65. O Programa é gerenciado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e tem como principais objetivos o alívio imediato da pobreza, a ruptura do ciclo intergeracional da pobreza e o desenvolvimento das famílias por meio da transferência direta de renda. Sua estrutura apresenta os seguintes eixos: transferência de renda, que promove o alívio imediato da pobreza; as condicionalidades, que visam reforçar o

65 Estimativas oficiais apresentadas por Lavinas (2011), no seminário internacional Proteção Social e Cidadania, sob o título Status e direitos para galvanizar oportunidades: desafios do combate à miséria frente às incertezas da conjuntura econômica, promovido pelo Ministério de Desenvolvimento Social e combate à fome (MDS), revelam que o país tem uma população estimada de 192 milhões de habitantes, dos quais 18,691 milhões são pobres (renda per capita inferior à R$140,00) e 10,065 são indigentes (renda per capita inferior a R$70,00), totalizando um valor de 28,757 milhões de pessoas, o que equivale à 15,5% da população vivendo com menos de R$140 ao mês, portanto elegíveis ao PBF.

acesso aos direitos sociais básicos nas áreas de Educação, Saúde e Assistência Social; e os programas complementares, que objetivam o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários consigam superar a situação de vulnerabilidade que estão expostos (BRASIL, 2004).

Segundo o Relatório de Informações Sociais da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI), disponível na página eletrônica oficial do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à fome (MDS), a transferência de renda objetivada pelo PBF benefíciou em maio de 2013 um número de 13.773.316 famílias, cerca de 50 milhões de pessoas em todo território nacional, tornando-se o maior programa social brasileiro focalizado, ainda que sua abrangência tenha um caráter massivo.

As famílias beneficiárias do PBF recebem uma transferência de renda mensal, cujo valor varia entre R$ 32 a R$ 30666, de acordo com a quantidade de seus membros, e de acordo com a sua condição sócio-economica (pobre ou extremamente pobre). O MDS trabalha com cinco tipos de benefícios, que variam em valores e também em função da característica da família67, no entanto, segundo o Relatório de Informações Sociais, a média deste valor recebido pelas famílias atualmente é de R$ 151,09, sendo o valor total transferido pelo governo federal em benefícios às famílias atendidas estimado em R$ 2.080.949.976 no mês. Sobre a variabilidade do valor do benefício, Lavinas (2012, p. 5) explana:

ao se estabelecer um básico ou mínimo indefinido, fere-se o princípio da universalidade, pois cada status se faz acompanhar de um conjunto de benefícios específicos. É a volta a um padrão de atendimento estratificado em função do status. É o retorno ao passado. Em lugar da inserção ocupacional que distinguia merecedores de não merecedores, agora a clivagem é ainda

66 O valor máximo que pode ser recebido por uma família é de R$ 306 (R$ 242 + R$ 32 + R$ 32 = R$ 306). Esse cálculo considera uma família extremamente pobre (renda por pessoa de R$ 70 reais) que recebe um benefício básico, cinco benefícios variáveis e dois variáveis jovens (relativo a jovens de 16 e 17 anos).

67Benefício Básico: o valor repassado mensalmente é de R$ 70,00 e é concedido às famílias com renda mensal de até R$ 70 per capita, mesmo não tendo crianças, adolescentes, jovens, gestantes ou nutrizes; Benefício Variável: o valor é de R$ 32,00 e é concedido às famílias com renda mensal de até R$ 140,00 per capita, desde que tenham crianças, adolescentes de até 15 anos, gestantes e/ou nutrizes. Cada família pode receber até cinco Benefícios Variáveis, ou seja, até R$ 160,00; Benefício Variável Vinculado ao Adolescente (BVJ): é concedido valor de R$ 38,00 a todas as famílias que tenham adolescentes de 16 e 17 anos frequentando a escola. Cada família pode receber até dois BVJs; Benefício Variável de Caráter Extraordinário (BVCE): pago às famílias dos Programas Auxílio-Gás, Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação, cuja migração para o Bolsa Família causou perdas financeiras; Benefício para Superação da Extrema Pobreza na Primeira Infância (BSP): pago às famílias com crianças de zero a seis anos, que mesmo recebendo os benefícios financeiros do PBF continuam em situação de pobreza extrema (renda per capita mensal de até R$ 70,00). O valor do benefício é correspondente ao necessário para que a família supere os R$ 70,00 mensais por pessoa.

mais dramática, ter ou não ter renda. É a cidadania agora regulada não pela via da institucionalidade das relações de produção, mas diretamente por valores de mercado.

Entende-se nesse estudo que o critério de renda do PBF imposto para o acesso ao benefício é arbitrário, pois define a pobreza privilegiando a renda como critério de inclusão e elegibilidade, em detrimento de outros critérios, também necessários para delimitar a pobreza dos cidadãos brasileiros. Ademais, a focalização imposta direcionada aos mais pobres e necessitados não condiz com os preceitos universais postos pela Seguridade Social brasileira, incorporados pelas políticas sociais de Assistência Social, Saúde e Educação. Segundo Britto (2010, p.16):

a concepção de condicionalidades adotada pelo Bolsa Família, pode ser entendida como uma espécie de “contrato” entre as famílias e o Poder Público, pautado por três tipos de responsabilidades complementares. A primeira delas seria a responsabilidade da família na garantia da freqüência escolar e no acompanhamento de saúde. A segunda seria o compromisso do Estado na provisão dos direitos universais de educação e saúde e na garantia do acesso a eles. O terceiro ponto seria o acompanhamento das condicionalidades, propriamente dito, não de maneira punitiva, voltada à suspensão dos benefícios (última etapa de um longo processo de advertências e bloqueios temporários), mas de modo a identificar as causas do eventual descumprimento e, assim, priorizar o acompanhamento sócio-assistencial das famílias que nele incorrem (P. 16 BRITTO, 2010).

As responsabilidades apontadas acima pelo autor dialogam com as variáveis de análise que buscamos apreender no estudo da lógica contratual da gestão das condicionalidades do PBF. Neste sentido, os pontos levantados suscitam questões capazes de revelar algumas dimensões da natureza das condicionalidades do Programa, evidenciando sua faceta coercitiva, controladora, individualizante, moralizante, punitiva, estigmatizadora, autoritária, fiscalizadora e meritocrática.

Reiteramos que a relação decorrente da gestão e cumprimento das condicionalidades é institucionalizada por um contrato estabelecido entre o Poder Executivo Federal e as famílias beneficiárias. O vínculo jurídico instituído nesse acordo condiciona as famílias a acessarem o direito à transferência de renda, mediante o cumprimento das condicionalidades, expresso pela comprovação/justificativa de “estarem ou não” frequentando os serviços básicos das políticas sociais de Saúde, Educação e Assistência Social. Destaca-se que os serviços sócio-assistenciais são acessados nos casos específicos de trabalho infantil e no acompanhamento das famílias descumpridoras das condicionalidades, a exemplo da obrigatoriedade da participação

em reuniões socioeducativas das famílias que não cumprem as exigências do Programa, nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).

No caso de descumprimento das condicionalidades, as famílias beneficiárias estão sujeitas às seguintes sanções: no primeiro registro de descumprimento, a família recebe uma advertência, no segundo, sofre um bloqueio do benefício por um mês; a partir do terceiro registro de descumprimento, a suspensão do benefício é por dois meses, e, reiteradamente, a partir da ocorrência de novos registros de descumprimento; só há cancelamento do benefício após o registro no Sistema de Condicionalidades (SICON) de que a família foi inserida em serviço sócio-assistencial de acompanhamento familiar do município e, cumulativamente: a) permaneça em situação de suspensão durante 12 meses, contados a partir da data de coexistência do acompanhamento familiar e da fase de suspensão; e b) se, após 12 meses, apresentou novo descumprimento com efeito no benefício nas repercussões posteriores, respeitando os 6 meses para reinício dos efeitos gradativos.

Ora, os termos grifados claramente conotam a dimensão coercitiva e punitiva do PBF. Ademais, é importante constatar, sobretudo face aos objetivos desta dissertação, que o nível mais severo da punição do PBF, representado pelo cancelamento do benefício, cruel por se remeter a uma família em situação de insegurança de renda, é somente executado após o acesso das famílias beneficiárias aos serviços sócio- assistenciais, especialmente os CRASs. Portanto, ressalta-se que, na temporalidade da execução dos processos de advertência e bloqueio das condicionalidades do PBF, cabe à Política de Assistência Social ser responsável por operacionalizar a faceta mais perversa da gestão das condicionalidades do PBF.

Considerando os pontos acima colocados, e frente à responsabilidade da família na garantia da frequência escolar e do acompanhamento da saúde, entende-se necessário aqui reconhecer, sobretudo quando se trata do modus operandi da gestão das condicionalidades do PBF, as condições objetivas que afetam a população, sobretudo a partir de sua morada e do lugar onde vive.

No âmbito das relações sociais das famílias, as implicações do processo de cumprimento das condicionalidades evidenciam que o formato condicionado dos PTR conduz à feminilização do social e à familiarização da pobreza (SPOSATI, 2011), pois aumenta-se a carga da mulher em cumprir as condicionalidades, sobretudo diante todo o

longo processo burocrático68 envolvido na comprovação de cumprimento das exigências estabelecidas pela lógica contratual e condicionada do Programa.

A crítica aqui desenvolvida, direcionada a este modus operandi da gestão das condicionalidades do PBF, à feminilização da pobreza e a auto-responsabilização da família por sua situação de pobreza e miserabilidade, se sustenta a partir de uma leitura pautada em uma análise territorial; em nosso entendimento, esta análise deve enfocar as pré-condições de cumprimento e/ou não das condicionalidades.

O território é o principal lócus onde emergem as dificuldades cotidianas das famílias beneficiárias para o cumprimento das condicionalidades; no entanto, essa leitura não é incorporada pela lógica de gestão do Programa, que se pauta no comportamento do beneficiário, sem considerar as condições objetivas da oferta de serviços de saúde, educação e Assistência Social no território onde vivem as famílias beneficiárias do PBF.

As possibilidades reais de oferta para o cumprimento das condicionalidades, a partir da leitura territorial, rechaça a perspectiva individualista de combate à pobreza, cuja pobreza dos beneficiários é sempre percebida como contingente e fortuita, sendo facilmente reversível e passível de ser superada quando acompanhada do cumprimento das exigências do Programa.

Portanto, afirma-se que as pré-condições de cumprimento ou não das condicionalidades se objetivam na realidade local das famílias beneficiárias do PBF, pois que o território incide e impacta na capacidade protetiva das famílias em atender as exigências postas para a efetivação da transferência de renda.

Por essa perspectiva, para avaliar as condicionalidades do PBF, sobretudo quanto à sua capacidade de ampliar e reforçar o acesso aos direitos sociais básicos nos serviços públicos de saúde e educação, é necessário considerar as pré-condições que as famílias pobres dispõem para atender às requisições impostas por estas

68 Devido à recorrência dos termos burocracia e/ou burocráticos utilizados nessa dissertação, cabe elucidar que seu uso é guiado pela compreensão que a entende como prática de gestão pública caracterizada pelo excesso de divisões, regras, controles e procedimentos redundantes e desnecessários ao funcionamento do sistema. Nota-se que essa compreensão adotada no desenvolvimento deste estudo não apresenta um rigor cientifico, visto que se assenta no entendimento pejorativo, disseminado pelo senso comum, ao contrário da concepção cientifica que a concebe como uma organização ou estrutura organizativa caracterizada por regras e procedimentos explícitos e regularizados, divisão de responsabilidades e especialização do trabalho, hierarquia e relações impessoais.

condicionalidade, tendo em vista que as dificuldades de sobrevivência são reais e responsáveis pela ausência dessas pré-condições. Assim sendo,

Não basta a educação propor a escola, a condição do docente ou a disponibilidade de vagas em salas de aulas. É preciso afiançar condições para que se dê a presença do aluno. É preciso construir o acesso a transporte escolar, alimentação, material escolar, uniforme, pois o baixo poder aquisitivo das famílias não possibilita essas (pré) condições. Torna-se necessário desmercadorizar condições que permitam a frequência à escola, isto, todavia, não pode significar uma ação discriminatória da política setorial direcionada aos mais pobres. O mesmo ocorre na saúde. Não basta ter a Unidade Básica de Saúde ou ter a presença do médico. É preciso ter o acesso a medicamentos, a nutrição e a próteses. Isto é, a operação da política precisa atentar para as condições objetivas de vida dos usuários dos serviços para que possam de fato, contar com os procedimentos desses serviços [...] ( SPOSATI, 2011, p. 109, grifo nosso).

Neste aspecto, a crítica se direciona à gestão das condicionalidades do PBF que, ao não considerar a realidade social objetiva das famílias beneficiárias, desconsidera a análise territorial na materialidade das pré-condições de cumprimento/descumprimento das condicionalidades.

O desprezo da análise territorial favorece a legitimidade da adoção de práticas punitivas ao sancionar as famílias descumpridoras das exigências postas pelo Programa, pois se desconsideram os aspectos reais, justificadores do não cumprimento das condicionalidades.

A postura que legitima a presença das condicionalidades nos PTR encara o descumprimento das condicionalidades enquanto uma situação, exclusivamente, decorrente de comportamentos individuais dos beneficiários, consequência de escolhas racionais e não como efeito de uma condição de vida que não oferece as condições sociais objetivas para o sucesso da vida escolar (SOUZA, 2011).

Nesse contexto, constata-se que o cumprimento de exigências do PBF se materializa numa situação em que os potenciais beneficiários já estão em situação bastante vulnerável (LAVINAS, 2004). Tal situação se configura em mais um dos motivos que confirmam o posicionamento aqui adotado, que concebe a presença das condicionalidades como um dos eixos dos PTR que reforçam uma cobrança indevida, visto que fere o direito dos cidadãos brasileiros à proteção social, mais específicamente à segurança de renda, independente da sua capacidade laboral e dos vínculos empregatícios formais.

A gestão do PBF e a legislação que o regulamenta indicam a inexistência de procedimentos ou dispositivos direcionados para considerar as condições objetivas de vida dos usuários dos serviços, questão fundamental posta pela análise territorial, que permite identificar a relação entre demanda e oferta de serviços públicos de políticas sociais, atendendo, portanto, necessidades específicas que traduzem as condições de acesso a tais serviços. Ao contrário desta lógica territorial, os documentos legais/jurídicos aqui consultados evidenciam a carga punitiva direcionada às famílias descumpridoras de condicionalidades e não ao Poder Executivo Municipal, responsável por prover tais serviços públicos.

Ademais, a análise territorial das condicionalidades revela a fragilidade da institucionalidade pública no âmbito do Poder Executivo Municipal em acompanhar o cumprimento das condicionalidades e/ou garantir a presença dos serviços de saúde (Unidade Básica de Saúde – UBS), educação (escola) e Assistência Social (CRAS – Centro de Referência de Assistência Social); não cumpre-se, dessa maneira, um dos objetivos do PBF, referente à promoção da intersetorialidade69 entre as áreas envolvidas na gestão das condicionalidades.

A perspectiva crítica que hoje orbita a questão da intersetorialidade mencionada pelo PBF oculta a gênese da configuração da pobreza no território brasileiro, visto que reforça a equivocada compreensão da realidade social que associa pobreza com níveis baixos de escolaridade; desconsidera, dessa forma, os determinantes sócio-econômicos estruturais da configuração da sociedade capitalista e os elementos imateriais70 de reprodução das desigualdades sociais (SOUZA, 2009), também responsáveis pela condições de pobreza e miserabilidade que experienciam milhões de brasileiros.

69 Segundo a portaria nº 251, de 12 de dezembro de 2012, que regulamenta a gestão das condicionalidades do Programa Bolsa Família, revoga a portaria GM/MDS nº 321, de 29 de setembro de 2008, e dá outras providências: “o Programa Bolsa Família, criado pela Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e regulamentado pelo Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004, tem por objetivos básicos promover o acesso à rede de serviços públicos, em especial de educação, saúde e Assistência Social; combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional; estimular o desenvolvimento das capacidades das famílias que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza; combater a pobreza; e promover a intersetorialidade, a complementariedade e a sinergia das ações sociais do Poder Público; [...] ( BRASIL, 2012, p.1, grifo nosso).

70Segundo Jessé Souza (2009), a legitimação da desigualdade no Brasil contemporâneo é reproduzida cotidianamente por meios “modernos” e “simbólicos” que legitimam a dominação cotidiana e injusta dessa sociedade. Os elementos imateriais da reprodução das desigualdades representam os seus fatores não econômicos e se referem às precondições sociais, emocionais, morais e culturais constitutivas da diferenciação da renda.

Por fim, destaca-se que as condicionalidades no discurso oficial do PBF, embora justificadas por favorecerem o acesso aos serviços de saúde e educação e contribuírem com o rompimento do ciclo intergeracional da pobreza, são reguladas por legislações complementares que apresentam uma natureza coercitiva, em discordância com o discurso protetivo apresentado. Desse modo, a constatação da presença de elementos punitivos na gestão das condicionalidades revela um distanciando entre a operacionalização do PBF e o alcance dos seus objetivos oficiais comprometidos com o alívio da pobreza, tema a ser discutido a seguir.

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