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As consequências do ato de disposição em relação ao titular do direito

3 LIMITES E POSSIBILIDADES DOS ATOS DE DISPOSIÇÃO

3.3 CRITÉRIOS INFORMADORES PARA A ANÁLISE

3.3.6 As consequências do ato de disposição em relação ao titular do direito

O sexto aspecto a ser verificado está relacionado às consequências do ato, ou seja, a análise, no caso concreto, da existência de prejuízo irreversível para a construção da personalidade do titular do direito. Entra em cena, neste aspecto, a licitude do objeto, não relacionada ao objeto da disposição isoladamente considerado, pois, conforme exposto anteriormente, o ordenamento jurídico permite a disposição de produto, parte ou função do corpo. O que aponta para a licitude, ou não, do ato de disposição está mais relacionado à finalidade e consequências do ato do que ao elemento da disposição.

Observe-se, mais uma vez, que conclusão acerca da licitude de um ato de disposição não está atrelada a uma baixa invasão na coleta de determinado atributo de uma pessoa em

favor de outrem. Não é isto que define a possibilidade de dispor ou não de seu atributo pessoal, mas sim se aquele atributo constitui núcleo fundamental da personalidade humana, se a sua disposição causa prejuízo ao desenvolvimento do projeto de vida individual do seu titular e, consequentemente, se pode ser objeto de disposição. Importante observar, portanto, se o ato de disposição pode trazer lesões irreversíveis ao chamado „núcleo duro‟ dos direitos da personalidade, ou seja, ao seu cerne fundamental, aquele que lesionado pode afetar a existência do próprio direito.324

No que se refere às consequências do ato, interessante anotar a questão dos wanabbes, já referida anteriormente. Embora a amputação desejada pela pessoa cause ofensa permanente à sua integridade física, não é exclusivamente por esse fato que se alega a impossibilidade do ato de disposição, pois inúmeros outros atos, com o mesmo resultado, são permitidos pelo ordenamento jurídico. O que ocorre, nesta hipótese, é que não há, ainda, estudos adequados acerca da causa e da origem deste desejo de ter um membro do corpo amputado, tampouco conclusões acerca de qual seria o tratamento adequado. Por isso, no atual estágio da ciência, não se admite a amputação, não por uma restrição ao direito da personalidade, mas porque o atual estado da técnica não permite dizer se a amputação é o procedimento correto para o desenvolvimento da personalidade daquela pessoa.325

Imprescindível analisar se o ato de disposição de um elemento do próprio corpo põe fim ou causa risco à vida da pessoa, se acarreta algum dano à sua saúde ou sensível redução da expectativa de vida, alguma lesão permanente à integridade corporal e, assim, sucessivamente, observando, portanto, sempre, as consequências do ato, o direito a ele relacionado e, também, seu grau de reversibilidade. Entretanto, a análise não pode ficar restrita à questão orgânica, mas, antes disso, deve ser feita tendo em vista a questão existencial da pessoa.

Com efeito, deve ser observado que a inexistência de uma ofensa permanente à integridade física do titular do direito não significa, por si só, a possibilidade de execução do ato, pois, conforme exposto anteriormente, a pessoa é mais do que uma mera realidade biológica. O que deve sempre ser averiguado é se o exercício do direito do direito ao próprio corpo (o ato de disposição a ele relativo) implica o aniquilamento do próprio direito e, por

324 Conforme asseverado por Adriano Marteleto Godinho, (GODINHO, Adriano Marteleto. Direito ao próprio corpo: direitos da personalidade e os atos de limitação voluntária. Curitiba: Juruá, 2014, p. 15). 325 KONDER, Carlos Nelson de Paula. O consentimento no biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, v. 15 (jul./set. 2003), p. 66.

conseguinte, em uma espécie de renúncia àquilo que torna o homem único e o distingue dos demais enquanto ser humano. Conclui-se pela vedação do ato que ao invés de promover a plena personalidade, a suprime.

Por outro vértice, necessário consignar que, por vezes, até mesmo quando há evidente dano à vida, é possível concluir pela possibilidade da disposição, como, por exemplo, na hipótese de suicídio assistido de paciente terminal. Com efeito, a vida não é um dever, é um direito, e esse direito não é absoluto, assim como não o são nenhum dos direitos. Ainda que se afirme que sem vida não há dignidade a se proteger, cumpre anotar que vida não é meramente existir, pois abrange uma significação muito maior do que isso e, ainda depois da morte, há proteção à dignidade da obra daquele que não mais existe.

Neste caso específico, o valor que está em jogo não é a liberdade individual sob a ótica de um direito de propriedade sobre o corpo326, mas, sim, a liberdade individual sob a ótica de eleição de uma forma digna de viver e, também, de morrer, conciliada com valores como a compaixão e a beneficência.

Da mesma forma, os atos que acarretem prejuízo à saúde ou à integridade física de uma pessoa não estão, de imediato, obstados, mas, tão somente, submetem-se à um maior grau de rigor no momento em que é investigada sua motivação. Isto porque, conforme exposto anteriormente, a manifestação de vontade para participar de um experimento científico que busque a cura de uma doença é ato distinto da anuência para participar de um experimento que tenha como objetivo o mero entretenimento do cientista. Da mesma forma, o ato de doação de um órgão para um familiar é hipótese distinta da venda deste mesmo órgão para um desconhecido, a fim de, tão somente, obter um proveito econômico. As consequências do ato devem, portanto, ser cotejadas com o fim que se pretende alcançar.

Possível antever, portanto, que há limites externos em relação ao ato de disposição, pois ele não será reputado lícito quando resultar em ofensa a tudo aquilo que compõe o núcleo inviolável do ser humano. De toda forma, sempre será observado se o ato de disposição do

326 Michael J. Sandel apresenta, como exemplo da impossibilidade de se acolher o direito ao próprio corpo com contornos absolutos, a hipótese de canibalismo consensual. Assevera que: „O canibalismo consensual entre adultos representa o teste definitivo para o princípio libertário da posse de si mesmo pelo indivíduo e da ideia de justiça dele decorrente. É uma forma extrema do suicídio assistido. Visto que não tem nenhuma relação com o alívio da dor de um doente terminal, a única justificativa cabível é que somos os donos de nosso corpo e nossa vida e podemos fazer com eles o que bem entendemos. Se o argumento libertário estiver certo, seria injusto proibir o canibalismo, pois isso violaria o direito à liberdade‟ (SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 94).

direito ao próprio corpo está sendo funcionalizado e, caso afirmativo, se está sendo funcionalizado em favor de um outro direito da personalidade (vida, saúde, integridade, identidade, dentre outros) ou de um outro direito não relacionado às questões existenciais.