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No conto Marido, de Jorge, Lúcia é uma porteira e mora com o marido alcoólatra no décimo andar do prédio onde trabalha. Ao chegar em casa, bêbado, ele grita por ela e, às vezes, lhe assusta com o constante estado de embriaguez. Ao longo do conto, a porteira é surpreendida pelos inquilinos do prédio que, incomodados com a situação, decidem intervir e aconselhar-lhe a separação, mas Lúcia não aceita que lhe separem do marido.

No decorrer dessa narrativa, a protagonista aparece silenciada pelos moradores do prédio. Obrigada a rezar em silêncio – “Ela não vai, por sua causa particular, incomodar tanta gente que logo abriria a janela reclamando o chamamento da porteira ao invocar as roupagens da Regina, doce, dulceo” (JORGE, 1998, p. 15-16) –, Lúcia parece acatar esse lugar de submissão perante os condôminos. Este silêncio dela é simbólico: impedir que ela reze à sua Regina é, de certo modo, lhe sufocar a fala e ocultar seu desejo. Assim, a supressão física da palavra, no conto de Jorge, representa o cerceamento do sujeito em relação à sua própria enunciação que, não é validada e nem reconhecida pelo conjunto social – os moradores do prédio. Já no romance de Llansol, a ocultação de determinadas palavras acontece, todavia, como recurso de radicalização estética – “[...] silêncio é nada escrever quando há ainda texto [...]”(LLANSOL, 2013, p.98) – e da reivindicação do direito à fala. O signo “___” seria o momento de intersecção entre as duas línguas, uma que lhes foi ocultada e a outra, inventiva,

criada por Infausta, na qual a palavra escrita não pode se revelar senão como uma forma de rasurá-la:

Esta manhã, lavei a roupa suja de Assafora que sob sua forma de ______ já não existe; a palavra que falta é a vossa palavra, e vossa está também sob o traço vazio; e assim indo, sucessivamente, cheguei à planície da língua ______ que Mar morto, pensei; onde está a jovem mulher verde, desenhada a clorofila, que tem forma de cabeça (LLANSOL, 2013, p.12, grifo da autora).

Ocultar a voz da porteira é velar-lhe o direito de representação da sua enunciação, obrigando-a a continuar submissa e invisível diante daquela sociedade. No entanto, quando os condôminos decidem intervir no seu relacionamento com o marido, a porteira analisa, à luz da sua consciência e do conhecimento das afirmações das outras personagens (advogado, médico, assistente social), sua condição de subalterna.

Mas há dias, toda essa gente que tanto precisa dormir e vigilar em sossego, sem jamais se entender nem ver nem precisar de se reconhecer, parece ter-se entendido e combinado. A porteira não pode esquecer. Primeiro foi o advogado. O advogado do quinto, simulando um recibo perdido chamou-lhe para lhe dizer que, se ela desejasse, ele mesmo asseguraria a papelada da separação. [...] Bastavam umas testemunhas, mas segundo o advogado do quinto, em cada andar do prédio haviam duas pessoas dispostas a testemunhar pela porteira e pela lei. Também o médico [...] Contudo, mais esclarecedora tinha sido a assistente social do terceiro, naquele mesmo dia. Chamou-a para lhe falar de direitos, com a veemência com que habitualmente se fala em deveres. Tudo isso, desabridamente, entre portas. [...] Com o balde entre as pernas, nessa hora do dia, a porteira perdeu a doçura sem o mostrar, exatamente porque era doce. Era, e pôs-se a pensar sentada na cama, diante da vela por ascender, que os habitantes daquele prédio de que era porteira lhe estendiam um tapete de negrume e solidão (JORGE, 1998, p.16-17).

A partir da confluência dos discursos das diferentes personagens sobre ela, a protagonista descobre, então, uma força inimaginável e reveladora: “É como se de repente sentisse uma força sobre-humana vir de dentro dela, sem precisar do auxílio da própria Regina” (JORGE, 1998, p.21). Decidida, a porteira constrói uma opinião parcial, não concluída, sobre si mesma: a enunciação que assume revela uma força natural, uma força feminina própria; na porteira, que antes parecia tão frágil e manipulável, rebelando-se, inclusive, ironicamente, contra a voz narradora que tentava defini-la. Sentada na cama diante da vela apagada, Lúcia examina, cuidadosamente, cada cena do seu dia e os “impropérios” proferidos pelos condôminos: “A vida apareceu-lhe completamente absurda, como se todos tivessem combinado para lhe arrancarem a metade do corpo” (JORGE, 1998, p.18). Assim, ela decide como agir. Observando as transformações ocorridas na atitude da porteira, podemos inferir, segundo a perspectiva disposta em Carvalho (2012, p. 112), que

[...] o sujeito em Bakhtin manifesta, “em graus variáveis”, consciências ao emitir seus enunciados, uma consciência, em certa medida, estruturada pela palavra do outro, pois, segundo ele próprio diz, “a consciência só se torna consciência quando

se impregna do conteúdo ideológico e, consequentemente, somente no processo de interação social” (BAKHTIN, 1988, p.34). O discurso do outro, apreendido pela consciência, provoca um diálogo interior, através do qual o indivíduo desenvolve uma apreciação de uma crítica, e ambos os discursos, interior e exterior, se fundem para produzir um novo discurso, em que as marcas do outro deixam vestígios. Logo, quando a porteira entra em contato com os discursos dos condôminos e o desejo de lhe impor a separação, ela reage a tais estratégias e projeta sua própria voz. Contudo, segundo a acepção bakhtiniana de discurso dialógico, seu enunciado estaria infiltrado de outros vários, revelando a construção autoconsciente:

[...] a porteira sabe, nunca dará um passo para se separar do marido. Pensando nisso, chega a sentir um sentimento incristão. Apetece-lhe cuspir contra o coluio dessa agente. Quanta conversa não terão feito sobre sua vida para terem ido tão longe, sobre ela, que nunca se mete na vida de ninguém [...]. E assim, chegue ele quando chegar, ela estará numa espécie de paz. Ninguém ouvirá, ninguém correrá persianas pela sua chegada, ninguém mais se meterá na sua vida. Que mudança! Que doce mudança! (JORGE, 1998, p.20-21).

Acerca das personagens delineadas nos romances de Dostoiévski, Bakhtin percebe a evidência de uma autoconsciência como recurso dominante na construção das personagens. Referindo-se à personagem-título do livro Memórias do Subsolo (DOSTOIÉVSKI, 2006 [1864]), o autor discorre sobre a construção de uma narrativa polifônica, com diversas vozes emergentes do discurso literário. A partir do diálogo que a protagonista mantém com as consciências das outras personagens sobre si mesmo, constrói seu discurso.

O herói do subsolo dá ouvido a cada palavra dos outros sobre si mesmo, olha-se aparentemente em todos os espelhos das consciências dos outros, conhece todas as possíveis refrações de sua imagem nessas consciências; conhece até sua definição objetiva [...]. Mas sabe também que todas essas definições, sejam parciais ou objetivas, estão em suas mãos e não lhe concluem a imagem justamente porque está consciente delas; pode ultrapassar-lhes os limites e torná-las inadequadas. Sabe que lhe cabe a última palavra [...] A sua autoconsciência vive da sua inconclusibilidade, de seu caráter não-fechado e de sua insolubilidade (BAKHTIN, 1981, p.44-45, grifos do autor).

Ora, é à porteira que cabe a última palavra. Assim como n’Um beijo dado mais

tarde, é no diálogo constante com Témia, a figura de Maria Adélia, os objetos da casa, a

lembrança de Aôsse e do irmão “sacrificado” que a protagonista do romance vai se revelando.Em ambas as narrativas, as protagonistas são personagens construídas não a partir de imagem rígida, caracterizadas por traços objetivos estáveis, mas, de “tudo de que se serve o autor para criar uma imagem rígida e estável da personagem [...], torna-se objeto de reflexão da própria personagem e objeto de sua autoconsciência” (BAKHTIN, 1981, p.40). Na construção autoconsciente empregada pelas autoras, “nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma consciência de si mesma.” (BAKHTIN, 1981, p. 40-41, grifos do autor). Assim, em Marido:

Apetece-lhe cuspir contra o conluio dessa gente. [...] Ainda por cima, tinham-lhe falado como quem concede e dá uma prenda, ou faz surpresa. Não, na verdade não queriam ajudar a porteira. Esse sentimento diante da vela é tão esclarecido que ela experimenta uma nova coragem (JORGE, 1998, p.20).

N’A Instrumentalina, a protagonista admite, em determinado momento, seu sentimento pelo tio: “[...] sim, eu gostava do tio, e também das máquinas, a de escrever e a de fotografar, mas sobretudo da Instrumentalina. Confessava-me ao avô por amor do tio” (JORGE, 1998, p. 92). Em outro momento, suas atitudes evidenciam um projeto de se aproximar do tio e da Instrumentalina:

Porém, devagar, no interior da esperança, eu ia inventando uma outra forma de me aproximar da instrumentalina.Era uma forma limitada. Esperava que o tio se sentasse à porta, debaixo das parreiras, e sendo por sistema relegada para a periferia do grupo, podia ir buscar, antes de todos os outros, os objectos de que necessitava [...]. Aliás, não era preciso esconder-me, pois a certa altura eu tinha sido tomada da certeza de que o tio Fernando, mesmo que se esforçasse e me quisesse recompensar com uma palavra que fosse, não poderia fazê-lo, porque não me via. A minha dúvida consistia apenas em saber se lhe era opaca como a porta ou transparente como o ar.

Pensava eu, depois dos meus invisíveis gestos serviçais (JORGE, 1998, p.87-88,

grifos nossos).

Desse modo, no romance Um beijo..., por exemplo, a história nos é apresentada sem revelar, contudo, o nome da protagonista, sua profissão ou qualquer característica física. Sendo assim, percebemos que as características da personagem estão no plano da consciência da própria personagem e não apenas no horizonte de criação da escritora: “além da realidade da própria personagem, o mundo exterior que a rodeia e os costumes se inserem no processo da autoconsciência, transferem-se do campo de visão do autor para o campo de visão da personagem” (BAKHTIN, 1981, p.41). Assim, os leitores podem acompanhar sua jornada de autoconsciência:

Será uma profanação fazer diligência por encontrar a arte nos restos humanos? Será errado encontrar-me com o sagrado neste quarto, a olhar a forma sentimental destas figuras acompanhantes, e destes móveis? O que é meu não é meu, estou na parte do templo destinada aos que vivem envoltos em mistério. Assafora jacente é o fim de que nasce um ser e faço-lhe uma festa tímida [...] Será realmente infinita ou engano- me nas palavras, manchando o canto com que entrei? [...] Eu penso, e este eu não pode perder-se, nem destacar-se da toalha. Eu penso, e eu penso que o absorvo, ao seu arco de violoncelo, à sua posição de pé, e sobretudo, aos seus enigmas; quando a música circula, a mudez circula igual para todos [...] (LLANSOL, 2013, p. 10 e 76, grifos da autora).

No romance escrito por Llansol, a autoconsciência da personagem revela-se por intermédio do seu embate dialógico com Témia, o eu-criança: “[...] não atravesso o corredor; Témia entra imediatamente na sala de jantar através da luz que se acende. Pousa na mesa, e olha as duas cadeiras, uma ao lado da outra – uma para a escrita, outra pra quem escreve” (LLANSOL, 2013, p. 13). No conto Marido, a característica fundadora da personagem,

realçada pelas opiniões dos condôminos, na verdade, não condiz com atos revelados pela sua enunciação. Embora todos concordem em separá-la do marido, a doce (e submissa) porteira não aceita e quer fazer-se ouvir. Assim, na narrativa de Jorge, o jogo de vozes proposto e a ironia enunciada pela rasura entre enunciado (extrema doçura da porteira) e enunciação é o aspecto que revela a autoconsciência. Mas, no caso da protagonista de Um beijo..., a autoconsciência aparece em “menor” escala no jogo de vozes de um duplo narrativo – “Subo,

sobe o primeiro lance de escadas [...]” (LLANSOL, 2013, p.8, grifos nosso) –, e também, em

maior grau, no horizonte de consciência da personagem sobre si e o mundo a sua volta. Já n’A

Instrumentalina, a autoconsciência da personagem faz-se presente pelo traço enunciador da

memória:

Meu Deus! Essa tinha sido uma manhã estranha. Nunca havia falado nela a ninguém, não porque a desejasse morta, mas porque ela me levava para uma região difícil de explicar. Tanto o meu tio como a Instrumentalina e eu tínhamo-nos encontrado na margem dum outro tempo, embora naquele instante, em frente a porta do bar Royal York, de repente, a nossa actualidade, como num rápido se unificasse com o rodar do Mundo (JORGE, 1998, p.79).

Ainda segundo Bakhtin (1981, p. 54),

A autoconsciência enquanto dominante artístico da construção da imagem do herói requer a criação de um clima artístico que permita à sua palavra revelar-se e auto- elucidar-se. Nenhum elemento de semelhante clima pode ser neutro: tudo deve atingir o herói em cheio, provocá-lo, interrogá-lo, até polemizar com ele [...], tudo deve ser sentido como discurso acerca de um presente [...].

Assumindo esse aspecto na construção autoconsciente da personagem, revelamos esse artifício em ambas as autoras. N’A Instrumentalina, temos:

Mas nesse dia, precisamente na tarde desse dia, como se uma curva ascendente tivesse atingido o seu limite, o avô bradou por mim de forma desusada, e depois de pousar o púcaro, segurou-me pelas costas.

<<Gostas muito do teu tio, não gostas, pequena?>> - perguntou-me. (JORGE, 1998, p.92)

No que tange à narrativa de Um beijo..., a protagonista, última de sua linhagem, atravessa a morte de sua tia Assáfora e a partida de Maria Adélia: “tenho assistido a algumas mortes __________ e a pergunta cresce” (LLANSOL, 2013, p.25). No conto Marido, a partir daquela noite, Lúcia muda radicalmente sua conduta e, ao invés de se esconder, decide ficar na sala para recebê-lo: o tocará com carinho e silenciará seus passos; lavará seus pés e massageará suas pernas com imensa doçura: “porque não a comoveram. De facto, todos os inquilinos [...] podem dormir descansados. Não a demoveram” (JORGE, 1998, p.23). Revelando a força da sua voz, a condição da porteira deixa entrever uma reivindicação

proposta pela autora do conto, muito similar, também, à proposta por Llansol: as autoras, ao construírem vozes autoconscientes no seu texto literário, pretendem revelar a voz feminina como a voz da alteridade e, com isso, reivindicar a condição da mulher escritora na contemporaneidade. Contudo, precisamos deixar claro uma importante noção:

Torna-se importante frisar que a voz da autoconsciência e a voz narrativa são distintas. A voz da enunciação, todo o jogo de vozes que resulta disso coincide com a voz autoral; já a voz da narrativa é uma das personagens femininas (CERQUEIRA, 2012, p.65).

Enquanto a narradora do romance de Llansol e do conto A Instrumentalina são, assumidamente, representações de uma narradora-personagem, a voz narrativa de Marido suprime essa informação. A voz feminina reivindicadora aparece, neste conto, através da implosão do desejo da porteira Lúcia de ter sua voz ouvida não apenas pelo marido, mas na polifonia do texto: “[...] ela que o vestia, ela é que determinava a comida, ela que mandava pôr os pregos, ir buscar os pombos, alimentar os pombos. E ele calado. Os inquilinos não viam isso. E podia entregar-se à devoção” (JORGE, 1998, p. 19). Portanto, ao contrário dos condôminos, que silenciavam sua voz subalterna, o marido era o único a deixá-la falar. No que concerne a protagonista llansoliana, essa reivindicação surge através da metalinguagem e autorreferencialidade inserida no nível do conhecimento da personagem e expressa, no texto, por uma voz narrativa que se identifica com a voz feminina. Um beijo... apresenta, além da autorreferencialidade enquanto produção literária, também, uma referência com a própria escritora do romance: O livro das comunidades(1999), que a protagonista lê para Témia, foi escrito pela própria autora em 1977: “Sentei-me junto dela, a ler-lhe O livro das Comunidades que principiava a encarnar num corpo humano naquela noite de vigília [...]” (LLANSOL, 2013, p.11). A respeito desse traço, presente na poética desenvolvida por Llansol, Barrento (2009, p. 95), afirma ser:

[...]a mais coerente e radical expressão deste trabalho do texto e da quase obsessão da textualidade e da auto-referencialidade da escrita encontra-se na Obra de Maria Gabriela Llansol: aí, o romance transforma-se numa paisagem textual totalmente livre, fragmentária, labiríntica e poetizada.

No conto A Instrumentalina, essa metalinguagem autorreferencial toma outro viés: utilizando-se da cenografia instaurada nas cantigas de amigo galego-portuguesas, faz uma referência às cenas das cantigas de amigo:

Não que as raparigas que eram por essa altura a minha mãe e as minhas tias não cantassem. Elas cantavam. Ouviam a grafanola e retiravam as letras que elas mesmas recompunham e a respiração dos seus suspiros em conjunto constituía música muito mais atraente do que o rouco som que a manivela dava. Aliás, formando dois pares, agarradas pelos ombros, umas às outras, dançavam. [...] Outras

vezes, debruçadas sobre os panos, cosiam e passajavam, como se as horas tivessem sido criadas para se aniquilarem sob os seus dedos. Vendo-as à distância, e sabendo o que se passava então na Terra, percebo como eram seres parados, objectos encantados pelo tempo. [...] A parte feminina naquela casa estava intacta [...]. À noite choravam junto à janela. [...] os seus maridos, todos eles, tinham partido (JORGE, 1998, p.81).

Ora, não é por acaso que essa rasura, figurada nos textos, aparece sob a forma uma personagem feminina: o sujeito feminino da enunciação, na contemporaneidade, busca outorgar seu discurso e validá-lo, bem como a sua autorrepresentação. Apesar de ser a representação de um artifício literário, a voz feminina forjada nos textos dessas escritoras, visível através da autoconsciência, atende a propósito particular: revelando-se a voz da alteridade, pretende problematizar a questão do lugar da escrita e a exclusão do sujeito feminino do campo literário.

Como tema da poética da modernidade está a condição do intelectual, silenciosa ou sutil, veemente ou apaixonada, ensaística ou retórica, que orienta a problemática do discurso artístico de um século inteiro: por meio do uso de recurso metalinguístico ou autoconsciente da linguagem, na elaboração literária (CERQUEIRA, 2012, p.54).

5.2“POR QUE NUNCA SE DIZ: COMO DIZ A OUTRA? A OUTRA NÃO DIZ NADA,

LIMITA-SE A OUVIR O OUTRO, SE É QUE OUVE?”6

A escritora contemporânea, graças à sua condição de sujeito resistente do apagamento histórico, vive numa situação bastante complicada de desestabilização no campo literário e se propõe construir uma personagem em que essa rasura é discutida.

É sob a ótica dessa economia que, coercivamente, reduz o feminino ao silêncio, que se pode explicar a constituição do discurso hegemônico de nossa cultura. [...] Conjugado pela visão etnocêntrica e patriarcal cuja estratégia sempre foi a redução da diferença à força do mesmo, a nossa cultura projetou a ilusão de homogeneidade graças à ação de um violento processo de repressão, uma recusa em aceitar as marcas significantes do outro, porque tais marcas representavam uma ameaça à visão metafísica e idealizada do sujeito (SCHMIDT,1995, p.186).

Assim, a partir da compreensão do caráter dialógico dos enunciados, considerando que todo discurso é constituído pelo princípio da outridade – “Ser a língua na estátua de um outro [...]”(LLANSOL, 2013, p.49) –, percebemos que uma das funções da voz feminina construída pelas autoras é deixar entrever outras vozes que foram silenciadas do campo literário. De acordo com Bakhtin (1992), apesar de todo enunciado ser gerido pelo princípio da alteridade,

6

“[...] - Com diz o outro... Que outro? E desde quando ele se chama Outro? Estranho nome, este, que não identifica, não responsabiliza, não consta de nenhum registro civil: Outro, nascido em tal data, em tal lugar, do sexo masculino. Por que nunca se diz: Como diz a outra? A outra não diz nada, limite-se a ouvir o Outro, se é que ouve?” (ANDRADE, 1979).

“as palavras do outro” podem ser assimiladas, reestruturadas, modificadas. Portanto, enquanto a voz autoral marcada pelo masculino, ao longo de uma tradição literária ocidental, promoveu uma (falsa) homogeneização do discurso literário, sobre a falácia de uma voz “neutra”, a voz feminina emerge na produção literária com o intuito de provocar uma rasura no discurso social naturalizado por aquela noção. Assim, sugerimos que, a partir da recuperação do lugar do feminino enquanto enunciador de uma tradição, também, emerge a valorização de outras vozes, até então caladas em favor da voz autorizada. Sendo assim, a voz feminina apresenta- se como a voz da alteridade: em Marido, a fala feminina questiona, também, a condição de subalternização socioeconômica daquele sujeito, o que, de certa forma, induziria à condição subalterna da própria voz feminina.

Já n’A Instrumentalina, a autora recorre a voz de uma menina, provavelmente, no início da puberdade, para discutir a situação política do campo no Estado português, o alto índice de desemprego, bem como a decadência das famílias tradicionais. A partir disso, recorda: “[...] como nós três [...] havíamos sido os últimos a chegar, tínhamos ocupado o quarto da abóbada [...]. Mas havia quem dormisse nos corredores e sítios desvãos duma casa grande de mais para se viver” (JORGE, 1998, p.82). Assim como a diáspora que se deu entre os homens da família que partiram em busca de emprego: “[...] todos, sim, mas não ao mesmo tempo. Primeiro havia abalado um, depois outro, e por fim os últimos [...]. Eles mesmos

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