• Nenhum resultado encontrado

Vozes contemporâneas: singularidades da voz feminina em dois contos de Lídia Jorge e um romance de Maria Gabriela Llansol

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Vozes contemporâneas: singularidades da voz feminina em dois contos de Lídia Jorge e um romance de Maria Gabriela Llansol"

Copied!
48
0
0

Texto

(1)

INSTITUTO DE LETRAS

COLEGIADO DE LETRAS VERNÁCULAS

TAILANE DE JESUS SOUSA

VOZES CONTEMPORÂNEAS:

SINGULARIDADES DA VOZ

FEMININA EM DOIS CONTOS DE LÍDIA JORGE E UM ROMANCE

DE MARIA GABRIELA LLANSOL

Salvador

2014

(2)

VOZES CONTEMPORÂNEAS:

SINGULARIDADES DA VOZ

FEMININA EM DOIS CONTOS DE LÍDIA JORGE E UM ROMANCE

DE MARIA GABRIELA LLANSOL

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Letras Vernáculas, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Cláudia da Cruz Cerqueira.

Salvador

2014

(3)

VOZES CONTEMPORÂNEAS:

SINGULARIDADES DA VOZ

FEMININA EM DOIS CONTOS DE LÍDIA JORGE E UM ROMANCE

DE MARIA GABRIELA LLANSOL

Monografia apresentada como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Letras, Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 16 de dezembro de 2014.

Banca examinadora

Profa. Dra. Cláudia da Cruz Cerqueira (orientadora) Universidade Federal da Bahia – UFBA

Profa. Dra. Alvanita Almeida Santos Universidade Federal da Bahia – UFBA

Profa. Dra. Nancy Rita Ferreira Vieira Universidade Federal da Bahia – UFBA

(4)

À minha família, aos meus amigos e a todas (e todos) que estiveram presentes neste momento tão precioso da minha vida.

(5)

A todos que contribuíram, direta ou indiretamente, para o cumprimento deste trabalho, em especial:

Aos meus familiares – minha mãe, Rosilene, minhas tias Jucilene e Marilene, meu pai Roberto –, os maiores exemplos da minha vida, por acreditarem em mim em todos os momentos, a minha dívida é eterna....

Aos meus grandes amigos – Tamires Alice, Paulo Henrique, Ansuélen Almeida, Yasmin Meneses –, confesso: faltam-me palavras, neste momento, para falar (ou escrever). Ou, talvez, não seja necessário proferir muita coisa. Já digo (e grito) que amo todo mundo mesmo! Para vocês, meu “muito obrigada!”.

À minha orientadora, Cláudia Cerqueira, agradeço por compartilhar comigo o interesse pela voz feminina. Não só por isso, claro, sobretudo, pelo exemplo de comprometimento com a pesquisa e pela amizade que edificamos ao longo de nossas orientações. Sem dúvida, foi quem esteve comigo ao longo desse gostoso e desgostoso processo de escrever, escrever, escrever...

Ao, meu namorado Edson, amigo fiel, pelo apoio incondicional e ajuda nos momentos cruciais.

À minha professora da sétima série, Manuela, por me indicar o caminho das pedras. Nunca esquecerei da pessoa que me permitiu o acesso ao mundo da literatura.

A todos os mestres que passaram pela minha vida e me ensinaram o valor da educação. E, enfim, à literatura.

(6)

“[...] nada vai mudar – nada nunca vai mudar – a mulher é uma construção”.

FREITAS, Angélica. A mulher é uma construção. In: ______. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 46.

(7)

RESUMO

Neste trabalho, a partir de uma leitura comparada entre dois contos da autora Lídia Jorge (“A Instrumentalina” e “Marido”) e um romance de Maria Gabriela Llansol (“Um beijo dado mais tarde”), discutiremos a construção da representação da voz que procura se expressar à medida que reivindica o feminino como lugar de enunciação. Empregando o recurso da autoconsciência, as autoras inscrevem traços que evidenciam a problemática da representação da voz feminina que busca a legitimidade de seu sujeito e o reconhecimento da sua subjetividade em cada espaço literário. Considerando a voz feminina como um lugar de enunciação a que escritora contemporânea alude para legitimar o seu dizer, podemos inferir particularidades do fazer literário construindo personagens que representam um entre-lugar social tão similar, simbolicamente, ao entre-lugar da voz narrativa. Não é apenas uma voz feminina simulada em um texto literário. A busca peculiar a essas autoras é que elas inserem na sua malha textual questões pertinentes à representação do feminino na contemporaneidade, bem como os discursos sobre esse feminino, a implosão do sujeito e da voz da escrita. Em um momento em que as mudanças de saberes acontecem em intervalos cada vez mais curtos, a representação da voz feminina merece uma atenção especial.

(8)

1 À GUISA DE INTRODUÇÃO ... 08

2 A VOZ NARRATIVA TEM GÊNEROS ...10

2.1 O FEMININO, A CONTEMPORANEIDADE E A LITERATURA...11

2.2 O CORPUS: LÍDIA JORGE E MARIA GABRIELA LLANSOL ... 13

3 “NINGUÉM NASCE MULHER: TORNA-SE MULHER”... 16

3.1 A ESCRITA FEMININA E O PAPEL DA AUTOCRÍTICA ... 18

3.2 A PROBLEMÁTICA DA VOZ FEMININA E O CENÁRIO LITERÁRIO ... 21

4 A VOZ FEMININA NA CONTEMPORANEIDADE OU “[...] O QUE ACONTECE QUANDO O OBJETO COMEÇA A FALAR?” ... 24

4.1 DA MAÇÃ À AUTOCONSCIÊNCIA: A LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA ESCRITA POR MULHERES ... 25

5 REPRESENTAÇÕES AUTOCONSCIENTES NA CONSTRUÇÃO DAS REIVINDICAÇÕES DAS VOZES FEMININAS ... 32

5.1 AS CONSTRUÇÕES DA AUTOCONSCIÊNCIA ... 32

5.2 “POR QUE NUNCA SE DIZ: COMO DIZ A OUTRA? A OUTRA NÃO DIZ NADA, LIMITA-SE A OUVIR O OUTRO, SE É QUE OUVE?” ... 38

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 43

(9)

1 À GUISA DE INTRODUÇÃO

O desejo que orientou este trabalho surgiu da exigência, na contemporaneidade, de analisar os vários discursos produzidos pelo sujeito contemporâneo. Assim, investigar a representação da voz feminina construída nas narrativas contemporâneas ocidentais constitui-se um ato de legitimação desconstitui-se próprio sujeito. Portanto, revela-constitui-se de fundamental importância fazer emergir, no trabalho da crítica literária, algumas singularidades dessa expressão, uma vez que esse assunto representa uma atitude legitimadora na escrita literária de algumas autoras contemporâneas.

A escolha do corpus foi motivada, principalmente, pela necessidade de estudar os discursos das autoras contemporâneas – reconhecidas pela crítica literária e pela recepção – que incluem, no seu projeto estético, uma reivindicação do lugar da escritora na tradição literária portuguesa. À vista disso, alguns questionamentos se mostraram pertinentes à nossa análise: o que é, afinal, a voz feminina? É um artifício apenas da contemporaneidade? Como se constrói a representação dessa voz nas narrativas contemporâneas da literatura portuguesa escrita por mulheres? Que tipo de reivindicação essa voz propõe? Quais as suas singularidades?

Essas questões nos encaminharam à investigação mais detalhada dessa expressão artística, seus traços singulares e sua inserção no campo literário contemporâneo. Contudo, estudar esse aspecto, na literatura portuguesa contemporânea, pode requisitar uma infinidade de produções literárias, entre ensaios, romances, contos, crônicas, assim como, acionar o trabalho de diversas escritoras tanto deste século quanto do século XX. Desse modo, mostrou-se imprescindível restringir o corpus à proposta deste trabalho: uma análimostrou-se, no nível de um trabalho de conclusão de curso, sobre a enunciação de uma voz feminina na literatura portuguesa contemporânea escrita por mulheres.

Logo, dirigimo-nos à experiência poética do texto de Maria Gabriela Llansol e da escrita, por vezes polifônica (CERQUEIRA, 2012), de Lídia Jorge. Assim, visto sua inserção no campo simbólico da contemporaneidade e o diálogo intertextual que mantêm com a tradição, optamos pela análise da criação artística dessas escritoras. Desse modo, em seus projetos literários, Jorge e Llansol constroem narrativas que problematizam a expressão de uma voz que reivindica o lugar do feminino enquanto enunciador de sua própria história. Devido às necessidades do trabalho, optamos pela análise do romance Um beijo dado mais

(10)

tarde, de Llansol(2013)1; e pelos contos Marido e A Instrumentalina, de Lídia (1998), publicados no livro Marido e outros contos. Nessas narrativas, pretendemos descortinar a existência de uma voz feminina, que se constrói através da autoconsciência, propondo, dessa forma, a partir de uma literatura autocrítica, a legitimação desse sujeito.

No decorrer deste texto, esquadrinharemos os percursos que se impuseram à nossa análise e tornaram este estudo possível. Na seção “A voz narrativa tem gêneros”, discorreremos sobre as questões pertinentes ao sujeito contemporâneo, bem como a narrativa produzida por ele. Em seguida, na seção ‘“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher’”, perscrutaremos as reflexões teóricas que abalizam nosso trabalho e o encaminhar metodológico que deu margem às constatações aludidas nesta análise. Logo, investigaremos, nas seções subsequentes –“A Voz feminina na contemporaneidade ou ‘[...] o que acontece quando o objeto começa a falar?’” e “Representações autoconsciente na construção das reivindicações das vozes femininas” –, as singularidades desse artifício literário na escrita contemporânea.

Concluiremos esta análise com as “Considerações finais”. E, em seguida, passaremos às referências. Sendo assim, pretendemos, no decorrer desta análise, discutir a voz feminina na literatura portuguesa contemporânea, como se revela, quais as suas peculiaridades e a importância de seu estudo para a compreensão do sujeito contemporâneo. Em um momento em que as mudanças de saberes acontecem em intervalos cada vez mais curtos, a representação da voz feminina na literatura merece uma atenção especial.

1

Cabe salientar que a primeira edição de Um beijo dado mais tarde data de 1990, contudo, todas as citações desta análise serão da edição de 2013, indicadas, pela autora, data e número da página.

(11)

2 A VOZ NARRATIVA TEM GÊNEROS

A voz narrativa tem gêneros é um título que se justifica, à medida que convida ao diálogo os leitores, quando insinua que há uma representação literária em que “[...] o gênero sexual deixa de ser um acidente biológico e passa a ser uma questão de natureza histórica e social, na teoria dos gêneros” (SILVEIRA, 2013, p.113). Ora, se as sociedades patriarcais, convencionalmente, construíram uma dicção social pautada numa realidade sexualizada, na qual o masculino e o feminino se opunham, apresentando a “[...] necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de posições homólogas [...]” (BOURDIEU, 2014, p. 20), não seria diferente com a expressão literária produzida por esses sujeitos. Portanto, considerando que a voz narrativa tem gêneros, tornar-se necessário identificá-los. De certa forma, a literatura, embora fosse espaço da transgressão da palavra, do “trapacear com a língua”, como diria Barthes (1996 [1977]), conservou um gênero oficial: o masculino. E este aspecto torna-se ainda mais emblemático: autodenominando-se um discurso neutro, seria ele responsável por promover o silenciamento de outras vozes ao longo da tradição literária ocidental.

Essa tradição de criatividade androcêntrica que perpassa as nossas histórias literárias assumiu o paradigma masculino da criação e, concomitantemente, a experiência masculina como paradigma da existência humana nos sistemas simbólicos de representação. Na medida que esse paradigma adquiriu um caráter de universalidade, a diferença da experiência feminina foi neutralizada e sua representação subtraída da importância por não poder ser contextualizada dentro de sistemas de legibilidade que privilegiavam as chamadas “verdades humanas universais” e por não atingir o patamar de “excelência” exigidos por critérios de valorização estética subentendidos na expressão (pouco clara, por sinal) “valor estético intrínseco”, vigente no discurso teórico-crítico da literatura. [...] (SCHMIDT, 1995, p. 184).

Assim, o masculino ou o discurso que engendra uma voz sexualizada masculina se impôs, durante muito tempo, como um discurso neutro na produção literária ocidental: “A voz do narrador tradicional era, de facto, predominantemente uma voz masculina – impositiva, linear, monótona” (BARRENTO, 2009, p.92). Perceber que o discurso literário tem mais de um gênero, além do masculino, e quase nada de neutralidade, quando se trata de voz narrativa, não é uma tarefa fácil e, portanto, requer observar os seus desdobramentos e suas implicações. Na contemporaneidade, a potencial onisciência desse sujeito enunciador é desmitificada com a emergência de um discurso polifônico, heterogêneo, como os próprios sujeitos contemporâneos. Eleva-se, assim, uma enunciação que se propõe uma fala de viés igualitário e é este discurso enunciativo que pretendemos estudar.

(12)

2.1 O FEMININO, A CONTEMPORANEIDADE E A LITERATURA

A questão feminina está em evidência no mundo ocidental, mas não apenas nele. Em diversas sociedades, a condição das mulheres está sendo discutida: seus direitos, suas escolhas e a necessidade de uma política igualitária entre homens e mulheres. É interessante, então, trazer à superfície deste trabalho os traços de uma voz feminina para analisar suas singularidades no âmbito da literatura, uma vez que esse tema constitui uma reivindicação presente na construção literária. Em consonância com tal contexto, podemos dizer que as autoras escolhidas neste corpus – Lídia Jorge e Maria Gabriela Llansol – estão em sintonia com esse tempo, ou melhor, são contemporâneas a ele. Assim, utilizando o conceito de literatura autoconsciente (BAKHTIN, 1981) e pensando a enunciação como parte integrante do enunciado (MAINGUENEAU, 2001), discutiremos essa voz feminina que, ao contrário de se sobrepor à voz masculina, evidencia um traço particular a essa escrita contemporânea.

A definição de feminino está em permanente estado de construção e, assim como tudo que está em processo contínuo, tende a apresentar uma pluralidade de faces. Poderíamos recorrer – para tratar de uma voz feminina na história da literatura ocidental, por exemplo – à poeta Safo, de Lesbos, que preconizava a instrução feminina por meio da literatura(CERQUEIRA, 2012), bem como às cantigas de amigo galego-portuguesas dos séculos XII e XIII que insinuavam uma enunciação feminina naquelas produções. Ou, ainda, ao papel de escritoras como Virgínia Woolf para a formação de uma literatura de voz feminina “reconhecida” no Ocidente. Aliás, o trabalho desenvolvido por Woolf torna-se inaugural quando se trata da reivindicação de uma voz enunciadora na literatura. Como uma das mais notáveis escritoras do início do século XX, apresenta uma polifonia no romance

Orlando (WOOLF, 2013 [1928]), construindo uma voz narrativa que se transmuta de homem

para mulher durante a passagem de um século a outro.

Diante do contexto da contemporaneidade, não seria diferente. O jogo de palavras e a ambiguidade dos sentidos de que a literatura é palco (BARTHES, 1996 [1977]) constituem traços dessa contemporaneidade e se revelam bastante sintomáticos, e o efeito contundente disso é a representação evidente da voz narradora feminina. Ao pensarmos nisso, devemos ter a consciência de que as necessidades de cada período indicam os caminhos e as possibilidades dos modelos representacionais que serão tomados. Sendo assim, nesse contexto plural, a voz

(13)

narrativa torna-se ainda mais complexa ao narrar experiências múltiplas, sugerindo, dessa maneira, a concepção de um sujeito descentrado, de identidades fluidas e não unificadas (HALL, 2006 [1992]). A partir dessa constatação, é importante ressaltar o caráter polifônico em que está inserida a subjetividade deste indivíduo, podendo representar uma multiplicidade de faces.

Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de interpretação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como as de homem, mulher, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentidos [...] Identidades são, pois, identificações em curso (SANTOS, 1993, p.31).

Essas instâncias do sujeito, outrora consideradas sólidas, ganharam fluidez diante do caráter fronteiriço de suas identidades, principalmente, em um universo não mais polarizado e binário – homem ou mulher; bom ou mau; heterossexual ou homossexual. Proveniente desta nova situação, emergiu, por conseguinte, uma produção literária heterogênea e múltipla, sob um rótulo que pouco a caracteriza, mas que abarca um número infindável de diferentes expressões narrativas.

A escrita literária contemporânea é – por analogia – o cenário de um aluvião. Um cenário de empréstimo, contaminações, influências, polêmicas, resistências, distorções, dissidências e por aí vai. Por tanto, cabe considerar a recepção dos leitores do texto ficcional, além de privilegiar o enunciado, a fim de obter da obra as provas de suas qualidades universais, ou de suas “fraquezas”[...] Já reconhece a importância de se ler a enunciação como condição indispensável de uma interpretação(CERQUEIRA, 2012, p.15).

Diante de um texto literário tão profícuo, os leitores precisam participar ativamente do diálogo estabelecido no interior dessa tessitura, visto que “os meus textos supõem um pacto de inconforto” (LLANSOL, 1994 apud BARRENTO, 2009, p. 96). Imbuídos dessa informação, muitos autores(as), apresentam uma produção autoconsciente, fundamentalmente crítica e que requer, por isso, um leitor crítico e menos ingênuo. Cientes disso, textos literários contemporâneos, por exemplo, problematizam, a partir da construção de uma narrativa polifônica, a heterogeneidade de sujeitos e discursos da contemporaneidade. Com o apagamento da figura central de um narrador, emerge uma heterogeneidade narrativa, permeada por uma pluralidade de vozes (às vezes, destoantes), que convida o leitor a desmistificar a unicidade dos discursos em seu entorno.

Também o facto de a pluralidade de vozes se tornar audível e gerar assim uma nova desordem narrativa (e ideológica) me parece corresponder a um importante momento de recusa e de rebelião contra o discurso dominante na ficção portuguesa – naturalmente, um discurso masculino [...](BARRENTO, 2009, p.92).

(14)

A partir da valorização destas outras vozes, torna-se audível, principalmente nas narrativas construídas por mulheres, a enunciação de um feminino requerendo a legitimação do seu discurso. Desse modo, a leitura desses outros discursos se justifica pela necessidade que se faz presente, na contemporaneidade, da leitura de outros discursos que não os cristalizados pelas narrativas da tradição literária. São, então, tais vozes que se erguem num contradiscurso para escrever a história literária.

Na certeza de que a realidade se pode desvendar através da irrealidade ficcional, a literatura portuguesa de hoje, na senda pós-moderna da metaficção, escreve uma nova história e instaura uma outra verdade, contrapondo-se à história veiculada pelos compêndios escolares do Estado Novo [...](ALVES, 2001, p.46).

Assim, algumas autoras contemporâneas, em consonância com os leitores e as urgências desse tempo, engendram, em sua malha textual, reflexões acerca da construção do feminino no universo contemporâneo e suas implicações. E é um aspecto desta produção literária que pretendemos investigar nesta pesquisa: intencionamos estudar a literatura produzida por autoras portuguesas contemporâneas que, através de uma escrita autocrítica, pretendem fomentar discussões em torno da voz feminina na contemporaneidade. Vista, por muitos séculos, como subalterna, “[...] até ao aparecimento de figuras como Agustina Bessa-Luís e, pouco antes, Irene Lisboa, as mulheres estão praticamente ausentes do romance português do século XX” (BARRENTO, 2009, p.92), a construção de um discurso literário legitimador da voz feminina na literatura portuguesa demanda uma atenção particular.

2.2 O CORPUS: LÍDIA JORGE E MARIA GABRIELA LLANSOL

Investigar o discurso desses sujeitos em sua dimensão literária, lugar de transgressão, do aflorar da língua (BARTHES, 1996 [1977]), requer novos modelos de análise e compreensão. A proposta desta pesquisa é analisar, à luz das orientações teóricas dos estudos da linguagem e dos estudos culturais, o processo de construção literária desenvolvido pelas escritoras portuguesas contemporâneas Lídia Jorge e Maria Gabriela Llansol. Essas autoras, ao ensaiarem uma produção literária que dialoga com uma tradição cultural de representação da mulher e da sua voz, sugerem a inevitabilidade do estudo dos discursos que trazem à centralidade do texto literário uma voz feminina enunciada.

(15)

Lídia Jorge, nascida no Algarve, morou em Angola e Moçambique durante o último período da Guerra Colonial, o que lhe possibilitou um olhar particular na literatura portuguesa. Autora de contos, romances, peças de teatro, Jorge tem uma sensibilidade notável para desenvolver alguns temas polêmicos na sua escrita, como, por exemplo, o enlace amoroso entre uma jovem portuguesa de família tradicional e um cabo-verdiano da construção civil, o que acontece em O vento assobiando nas gruas (JORGE, 2002). Já Maria Gabriela Llansol, nascida em Lisboa, em 1931, morreu em 2008, na cidade de Sintra, local no qual, hoje, funciona o Espaço Llansol2. No ano de 1965 abandonou Lisboa e foi morar na Bélgica, traço marcante para sua produção escrita. Segundo Silveira (2013, p. 117),

Do primeiro livro, Os pregos na era, 1962, ao último publicado em vida, Os

cantores de leitura, 2007, há um ritmo concertado de escrita, em que, num total de

25 títulos, Um beijo dado mais tarde é, literal e metaforicamente, o tecido onde se registram os traços daquela que se diz aprazerada por ter “sobrevivido numa rapariga”, cujo nome no registro de textualidade é Témia (SILVEIRA, 2013, p.117). O texto das autoras escolhidas é reivindicador em duas instâncias: primeiro, ao que concerne a uma “responsabilidade da forma”, como disse Barthes (1996 [1977]), a literatura “encena a linguagem, em vez de, simplesmente, utilizá-la, [...] engendra o saber no rolamento da reflexividade infinita: através da escritura o saber reflete incessantemente sobre o saber [...]” (BARTHES, 1996 [1977], p.19); em segundo, pois, através de uma prosa que é extremamente poética, tanto Llansol quanto Jorge buscam alçar a voz feminina à legitimidade. Voz essa que procura se expressar reivindicando o feminino e a existência de um etos da mulher evocado através dessa voz. Neste estudo, propomos,

[...] observar como se constroem as evidências de uma voz narrativa feminina. Explorar, portanto, a condição da intelectual contemporânea que, ao exercitar a escrita, a partir da elaboração autoconsciente (aquela em que a literatura tem como tema a sua própria construção), procura intervir no espaço público da palavra (CERQUEIRA, p.8, 2012).

O romance Um beijo dado mais tarde, de Maria Gabriela Llansol, conta a história do retorno da narradora à casa de sua infância, após a morte da tia velha, Assafora, e seu reencontro com Témia, o eu-criança, e com a serva Maria Adélia. Com expressa delicadeza, a narrativa llansolina reflete sobre a língua (a impostura da língua), a leitura, o processo de escrita e de composição criativa. Uma narrativa metalinguística de rememoração, na qual a

2

O Espaço Llansol dedica-se a tratar, classificar e divulgar o espólio da escritora Maria Gabriela Llansol. Situa-se em Sintra, naquela que foi a última casa da escritora nascida em Lisboa, em 24 de novembro de 1931. O Espaço Llansol é gerido pela Associação de Estudos Llansolianos e surgiu em 2008, quando João Barrento e Maria Etelvina Santos foram incumbidos pela autora para tratar do seu espólio. Informações reproduzidas de: <http://espacollansol.blogspot.com.br/>. Acesso em: 10 ago. 2014.

(16)

protagonista e sua história mantêm uma relação ambígua. O mesmo ocorre em A

Instrumentalina, conto de Lídia Jorge que também será abordado nesta leitura. A narradora

do conto reconstrói, através de um reencontro com uma pessoa de seu passado, o tio Fernando, a memória da sua casa de infância e o despertar do seu desejo sexual.

Lídia Jorge, ao criar uma menina que, provavelmente, ainda no início da puberdade, desenvolve uma paixão incestuosa pelo tio mais moço, o faz sem qualquer “cunho moralizante”: “Pensando nessas tardes, não me lembro de qualquer dor ou qualquer constrangimento. Tudo o que vem comigo é manso e calmo como uma carícia de criança [...]” (JORGE, 1998, p.80). Já em Marido, a personagem Lúcia é porteira e mora com o marido alcoólatra no décimo andar do prédio em que trabalha. Religiosa, roga todos os dias proteção para seu marido que sai da oficina mecânica onde trabalha às 17h, mas só volta para casa depois de passar no bar. Sua rotina é pontuada pela angústia das horas que marcam a saída do marido da oficina e sua chegada tumultuosa em casa. À noite, Lúcia entra em vigília: escondida à espreita, na varanda, aguarda a chegada do marido, que, bêbado, gritará seu nome, ecoando por todo o prédio. No decorrer do conto, é surpreendida pelos inquilinos do prédio que, incomodados, decidem intervir e aconselhar-lhe (ou impor-lhe?) a separação. Contudo, a protagonista rebela-se contra a opressão de sua voz pelos condôminos, pois, segundo a sua ótica, mantém um relacionamento harmonioso com o marido.

As três narrativas percorrem diferentes representações do feminino, distintas entre si, buscando legitimar esses sujeitos e sua voz enunciadora no mundo contemporâneo, sem apagar as singularidades de cada uma delas. E é através do traçado do erotismo feminino que estas singularidades se tornam patentes. A construção do corpo sexuado como espaço de enunciação da voz feminina também será observada em nosso trabalho. Segundo Bourdieu (2014, p. 20), “a constituição da sexualidade enquanto tal (que encontra sua realização no erotismo) [...]” nos mostra a necessidade de se realçar o traço erótico nos textos em que a questão do gênero está em evidência. Assim, este aspecto também será observado, de certo modo, na construção do discurso das autoras em análise.

(17)

3 “NINGUÉM NASCE MULHER: TORNA-SE MULHER”

Ao publicar sua obra O Segundo Sexo, no final da década de 1940, precisamente em 1949, Simone de Beauvoir preconizava o que, mais de meio século depois, despontaria como uma das mais importantes e recorrentes questões da contemporaneidade: o feminino enquanto construção sócio-histórica e cultural (LOURO, 2008).

A emergência dos estudos culturais e, mais especificamente, dos estudos de gênero e sexualidade, levou, à sociedade contemporânea, a discussão sobre a dinâmica das categorias de masculino e feminino, homem e mulher (BOURDIEU, 2014). Sendo assim, a compreensão de gênero enquanto uma categoria de análise dos procedimentos históricos (SCOTT, 1995 [1986]) tornou-se útil, principalmente, pela proposta intrínseca de revisão dos processos da naturalização desses conceitos. A partir desse raciocínio foi possível observar que a naturalização de uma determinada visão dos gêneros, que na verdade era socialmente construída, ignorava a arbitrariedade com que o mundo social constrói os corpos dos sujeitos, produzindo uma experiência que apreende o mundo enquanto realidade sexualizada (BOURDIEU, 2014). Conclui-se, então, que a percepção de tais categorias como um processo contínuo de construção dos sujeitos no âmbito de uma dada cultura faz-se necessária à medida que convoca esses mesmos sujeitos à revisão histórica.

“Nós estamos aprendendo”, escreviam três historiadoras feministas, “que inscrever as mulheres na história implica, necessariamente, na redefinição e no alargamento das noções tradicionais daquilo que é historicamente importante, para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva quanto as atividades públicas e políticas. [...] uma tal metodologia implica não apenas uma nova história das mulheres, mas em uma nova história.” A maneira pela qual esta nova história iria incluir as experiências das mulheres e dela dar conta dependia da medida na qual o gênero podia ser desenvolvido como categoria de análise (SCOTT, 1995 [1986], p.73).

Torna-se imprescindível, portanto, recuperar a importância do feminino na história, evitando a perpetuação de estigmas sociais provenientes da apreensão do simbólico como natural. As construções em torno de masculinidade e de feminilidade, a partir dos séculos das luzes, com as descobertas da biologia (BADINTER, 1993), difundiram as diferenças entre os sexos biológicos como principal argumento para as diferenças entre homens e mulheres. No entanto, “[...], as diferenças visíveis entre os órgãos sexuais [...] são uma construção social que encontra seus princípios no princípio da divisão da razão androcêntrica” (BOURDIEU, 2014, p.30). Esses estudos que envolvem as categorias de gêneros, por conseguinte, inauguram possibilidades de compreensão das relações que se estabelecem entre o masculino e o feminino – na verdade, segundo Louro (2003), masculinos e femininos, no plural – e os

(18)

traços singulares evidenciados nas relações sociais que aí se desenvolvem. Badinter (1993, p. 11), em XY: sobre a identidade masculina, ao analisar a trajetória da construção do masculino, observa, ainda, em relação ao feminino:

A história das sociedades patriarcais prova que são sempre as mulheres, e não os homens, que suscitam os grandes questionamentos. Isso se explica facilmente pelo

status privilegiado que têm os homens neste tipo de sociedade. [...] Ao contrário do

que diz a ideologia do patriarcado, os homens não são os primeiros referenciais da humanidade, e sim as mulheres. É em relação a elas e contra elas que eles se definem.

Ou seja, é na controvérsia do feminino que as transformações ocorrem. Realiza-se, portanto, na contemporaneidade, uma nova ordem de apreensão das relações sociais, o que torna fundamental a investigação dos discursos produzidos por esses sujeitos subalternizados ao longo da história, também a averiguação do uso da linguagem em seus hábitos sócio-históricos, bem como as relações que estabelece com o mundo.

Como mediadora dessas relações, a linguagem adquire a materialidade e reflete as peculiaridades de seu usuário, travestindo-se e acompanhando as mudanças que o delineiam em seu trajeto histórico. A compreensão da linguagem é essencial para o entendimento do mundo, dos homens e das relações que entre eles se estabelecem, por isso importa saber como ela se articula, como é percebida e entendida por quem a utiliza [...] (CARVALHO, 2012, p.15).

Visto a importância do estudo da linguagem para a compreensão das novas relações estabelecidas entre os sujeitos e as marcas dos seus discursos na sociedade contemporânea, propõe-se aqui uma análise da construção dessa linguagem, de seus mecanismos enunciadores e dos seus modos de exposição, observando, objetivamente, a inscrição dessas vozes no espaço literário. Segundo Maingueneau (2001, p. 7), “[...] a literatura não é apenas um meio que a consciência tomaria emprestado para se exprimir, é também um ato que implica instituições, define um regime enunciativo e papéis específicos dentro de uma sociedade”.

Dessa maneira, perceber o espaço literário é também discorrer sobre o espaço social. Contudo, ainda segundo Maingueneau (2001, p. 19),

As obras falam efetivamente do mundo, mas sua enunciação é parte integrante do

mundo que pretensamente representam. [...] A literatura também consiste numa

atividade; não apenas mantém um discurso sobre o mundo, mas gere sua própria

presença nesse mundo. As condições de enunciação do texto literário não são uma

estrutura contingente da qual este poderia se liberar, mas estão indefectivelmente vinculadas a seu sentido (grifos do autor).

Assim, refletir sobre a lógica enunciativa dos discursos femininos presentes nas narrativas da literatura contemporânea e sua construção discursiva suscita, igualmente, uma discussão sobre a própria inserção desse texto na cultura e a sua vocalidade no contexto

(19)

contemporâneo. Além disso, sugere o debate em torno do discurso androcêntrico e como ele se utilizou também da literatura como região mediadora das relações sociais entre homens e mulheres nas sociedades patriarcais. Portanto,

Falar da instituição ‘literatura’ e a presença da mulher no espaço dos discursos e saberes é, pois, um ato político, pois remete às relações de poder inscritos nas práticas sociais e discursivas de uma cultura que se imaginou e se construiu a partir do ponto de vista normativo masculino, projetando o seu outro na imagem negativa do feminino (SCHMIDT, 1995, p. 185).

3.1 A ESCRITA FEMININA E O PAPEL DA AUTOCRÍTICA

A presença de uma voz feminina enunciada distinta da masculina (ARAUJO, 2012) sempre existiu na literatura. Entretanto, graças à construção simbólica de um feminino fragilizado e infantil, houve a negação histórica do seu lugar enunciativo de sujeito do discurso – uma fala imbuída de significação e representação desse sujeito – desqualificando a legitimidade de suas narrativas literárias.

Se, por um lado, sabemos que a patriarquia nunca impediu a mulher de falar (e de escrever), por outro, sabemos que sempre se recusou a ouvi-la quando ela não falou (ou escreveu) do ponto de vista do universal, isto é, do ponto de vista masculino. Falando de uma posição que desconhece a alteridade – a categoria chave para pensar-se a diferença – a crítica literária [...] reforça a firmação dos limites culturais/sociais da mulher pois, ao exercer julgamento de valor referenciado na ordem de um centro monolítico, absoluto e idêntico (o sujeito e a cultura dominante) desqualifica as suas construções de sentido e representação como se o próprio conceito de legitimidade do que é considerado literário ou não-literário pairasse acima e além das práticas sócio-culturais (SCHMIDT, 1995, p. 185).

Historicamente, o discurso androcêntrico produziu um apagamento da figura feminina em diversos aspectos, emudecendo e secundarizando suas produções literárias. Inaudível, a voz feminina – o lugar de enunciação do feminino enquanto sujeito do discurso – permaneceu à margem da historiografia literária. Autoras contemporâneas, propondo alçar essa voz silenciada à legitimidade, escrevem uma literatura particular: a narrativa que elas realizam não solicita a superposição de discursos – o novo pelo velho –, mas a coexistência dessas milhares de vozes subalternizadas pela cultura androcêntrica, sugerindo, dessa maneira, existência da voz feminina enquanto voz da alteridade. Segundo Schmidt (1995, p. 187), “o feminino [...] se desdobra na prática representacional da resistência do sujeito consciente que estilhaça o discurso das exclusões para lançar a pergunta impensada: o que acontece quando o objeto começa a falar?”.

(20)

Essa voz enunciada, apresentada nos textos das autoras trazidas pela nossa análise (Jorge e Llansol), é uma representação do sujeito feminino que rejeita a definição arbitrária ancorada, apenas, na diferença entre os corpos biológicos – percepção radicada pela cultura patriarcal que exclui, peremptoriamente, a noção de corpo social e de construção simbólica da subjetividade dos indivíduos. Esse sujeito do discurso, encenado na escrita contemporânea, tem procurado se compreender enquanto construção sócio-histórica mediada pela linguagem. Sabendo que “[...] a intervenção da palavra escrita como modo de intervir no espaço público e reivindicar seu espaço político e artístico” (CERQUEIRA, 2012, p.21) pode ser temática das narrativas produzidas por esses sujeitos, preocupados em dialogar, no espaço do literário, com diversas concepções críticas, além daquelas cujas perspectivas se debruçam exclusivamente sobre a arte da palavra escrita, propomos observar essas narrativas como conscientes da sua função crítica no campo simbólico da contemporaneidade.

[...] Partindo dessa constatação, quer-se propor que uma das novas problemáticas suscitadas pelo texto escrito da contemporaneidade consiste na dimensão (contemporânea) do viés autocrítico de que articula a representação literária, evidenciando algumas implicações do lugar do intelectual no campo do simbólico (CERQUEIRA, 2012, p.16).

A literatura autocrítica é uma narrativa metaficcional (BARRENTO, 2009, p.95), consciente do seu papel social enquanto texto literário, pois reflete, no próprio ato de narrar, seus meios e processos. Através da busca por alçar à legitimidade suas vozes, essas produções narrativas propõem desautorizar a noção de neutralidade do discurso androcêntrico. Sendo assim, a intelectual contemporânea, atenta às transformações que as categorias de gênero vêm atravessando e às necessidades de discussão do seu papel de mulher na sociedade contemporânea, propõe, no interior de sua escrita literária, questionamentos de diferentes ordens.

Percebe-se, então, a necessidade dessa escritora contemporânea de se posicionar no seu espaço de escrita, considerando a problemática do significado do discurso e suas configurações representativas, como problemática de seu próprio lugar na sociedade (CERQUEIRA, 2012, p. 26).

As autoras em questão neste estudo provocam uma “fala” da mulher para apresentar uma outra emergência desses sujeitos. O discurso dessas autoras está calcado em outros discursos – seja através da apropriação, da ironia, da releitura histórica. A inserção – e até mesmo apropriação – desses discursos em suas narrativas, de certo modo, produz questionamento crítico das imagens discursivas do feminino na história das expressões criativas.

(21)

No conto A Instrumentalina, a instauração de uma cenografia – situação de enunciação da obra que recorda às cantigas de amigo galego-portuguesas do século XII e XIII3 –, insinua um diálogo com a tradição literária portuguesa de enunciação do feminino. Assim sendo, o diálogo que essa escrita contemporânea propõe é com o lugar literário da mulher:

[...] nossos enunciados [...] estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas em graus variáveis pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também, em graus variáveis pelo emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos (BAKHTIN, 1992, p. 314).

Enquanto o discurso que engendra uma voz masculina apresenta-se como neutro (BOURDIEU, 2014), subtraindo a noção de diferença, o discurso que enuncia uma voz feminina realiza um diálogo permanente com a tradição literária para legitimar seu lugar nessa mesma tradição. Em vista disso, a proposta desta análise é desvendar a construção dessa voz, pressupondo sua existência dialógica, “[...] calcada [...] naquilo que Bakhtin chama de

dialogismo, isto é, na relação que todo enunciado mantém com outros enunciados”(COMPAGNON, 2010, p. 109), na literatura portuguesa contemporânea escrita por mulheres. Acreditamos que, através do movimento da autoconsciência como construtora da personagem (BAKHTIN, 1981), as autoras selecionadas reivindicam seu direito à enunciação e à representação do feminino na literatura, revelando uma voz consciente da sua condição feminina na sociedade. É fundamental elucidar o conceito bakhtiniano de autoconsciência, segundo o qual a personagem, construída sob este aspecto, não é uma representação dotada de características típico-sociais definidas, mas, como um sujeito que detém a última palavra sobre si e sobre o mundo. Ao investigar a obra de Dostoiévski, Bakhtin (1981, p. 39) conclui:

A personagem interessa a Dostoiévski enquanto ponto de vista específico sobre o

mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional e valorativa do homem em

relação a si mesmo e à realidade circundante. O importante para Dostoiévski não é o que sua personagem é para o mundo mas, acima de tudo, o que é mundo é para sua personagem e o que ela é para si mesma (grifos do autor).

3

“À noite choravam junto às janelas. Não tinham tido guerra, mas era num estado semelhante ao das abandonadas pela força dum conflito. Liam cartas. Guardavam cartas [...]. Os seus maridos, todos eles, tinham partido” (JORGE, 1998, p. 81).

(22)

3.2 A PROBLEMÁTICA DA VOZ FEMININA NO CENÁRIO LITERÁRIO

A tradição historiográfica da literatura ocidental relegou ao feminino (sua identidade e estética) a condição de mero espectador no contexto da produção artística e cultural: “a mulher, por ser considerada de inteligência fraca, ou mesmo sem inteligência, dom exclusivo dos homens, não servia para dedicar-se aos estudos, às ciências” (CARVALHO, 2012, p.50). Entretanto, apesar de encarnarem sujeitos ausentes de autonomia na produção (e disseminação) de discursos socioculturalmente reconhecidos, as mulheres, no decorrer da história das sociedades patriarcais, não se eximiram da criação artística, participando, portanto, dos períodos de efervescência da produção literária ocidental.

Na impossibilidade de reconhecer-se numa tradição literária, em que as limitações impostas pelas imagens literárias lhe apontavam o papel da musa ou criatura, as escritoras [...] tiveram que lutar contra as incertezas, ansiedades e inseguranças quanto ao seu papel de autora, quanto à sua autoridade discursiva para afirmar e representar determinadas realidades, ausentes ou falseadas no espelho que a cultura lhe apresentava (SCHMIDT, 1995, p.187, grifos da autora).

Logo, a instância que lhe foi negada pela ideologia patriarcal (BOURDIEU, 2014) não diz respeito, necessariamente, a participação no âmbito da escrita criativa, bem como na esfera científica, mas ao direito de ter sua autorrepresentação reconhecida enquanto perspectiva da literatura. Sabedores dessa lógica imposta à escrita das mulheres nos grupos sociais de ordem androcêntrica (tal qual a sociedade portuguesa), principalmente, no que precede a contemporaneidade, propomos uma inquietante consideração: a voz e a representação do feminino que ressoavam no campo do literário configurar-se-iam, portanto, em encenações de uma construção forjada – no canon de literatura em língua portuguesa, inclusive, encontramos figurações de uma voz feminina declarada nas cantigas medievais galego-portuguesas. A existência de um cenário no qual a personagem feminina é a protagonista e seus interlocutores estão imersos no cotidiano da mulher – representação do espaço íntimo reservado ao feminino em oposição ao espaço público destinado ao homem (os salões da corte, presente nas cantigas provençais) – demanda a investigação da cenografia validada por esse discurso.

Deste modo, analisar a poética feminina na literatura contemporânea requer, principalmente, um retorno à problemática da voz feminina no cenário literário. Nesse sentido, pela presente perspectiva, propomos o estudo dessas construções bem como da imagem da mulher e o imaginário que a envolve, interrogando, criticamente, os discursos que atravessam projetos literários. Reconhecendo a necessidade de se apontar para os diferentes

(23)

olhares presentes no escopo da produção contemporânea, cremos que a atividade comparada torna-se essencial para uma análise crítica da narrativa produzida na contemporaneidade. No entanto, distintamente do que se poderia inferir, a perspectiva empregada nesta análise não se aportaria “apenas” a uma atividade comparativa simplesmente, mas consiste em designação metodológica, conforme nos orienta Carvalhal (1998): “[...] quando a comparação é empregada como recurso preferencial no estudo crítico, convertendo-se na operação fundamental da análise, ela passa a tomar ares de método – e começamos a pensar que tal investigação é um ‘estudo comparado’”(CARVALHAL, 1998, p. 7). Sobre o caráter comparado abordado em nossas leituras, é relevante mencionar:

Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe. Em síntese, a comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim(CARVALHAL, 1998, p. 7).

Desse modo, a opção por tal metodologia explica-se: primeiro, por possibilitar a visualização do entrecruzamento de diferentes vozes dentro dos limites dessa análise, realçando o caráter polifônico da produção contemporânea; segundo, por atestar a hipótese de que as autoras escolhidas, através do recurso da autoconsciência, constroem a representação de uma voz feminina.

No decorrer da leitura comparativa entre os dois contos de Lídia Jorge e o romance de Llansol, atentaremos para a representação de uma voz feminina que “reivindica” seu espaço. Nas cantigas de amigo, uma voz feminina aparece relatando o enlace amoroso que viveu e as saudades que sente do “amigo” que se foi. Entretanto, esse etos da voz feminina não nos parece um ato legitimador, já que a voz enunciativa que reivindicava o espaço feminino através da literatura (representação), segundo a tradição, seria masculina, produzindo uma voz feminina forjada.

Quase que exclusivamente, aqueles que escreviam eram homens, e muitos deles religiosos. Assim, o período foi marcado pela influência dos clérigos e pelo espírito cristão, pesando imensamente na elaboração da imagem feminina. A rigor, a literatura pode ser instrumento de análise, fornecedora de modelos idealizados ou não, de certos tipos de mulher, diversificados de acordo com a época e o meio social do autor. Dessa maneira, a obra literária pode revelar o ponto de vista masculino sobre o “outro” feminino numa época em que a mulher tinha sua voz cassada (ARAÚJO, 2011, p.1623).

Quando, na contemporaneidade, Jorge e Llansol “reclamam” para suas poéticas uma voz feminina, podemos perceber que é na tentativa de legitimar essa voz. A partir deste confronto inicial, pretendemos discutir a problemática da construção da voz feminina na

(24)

literatura portuguesa contemporânea escrita por essas autoras portuguesas, como se revela, quais suas peculiaridades e a importância de seu estudo para a compreensão do sujeito contemporâneo. Considerando que “[...] a literatura é daqueles discursos cuja identidade se constitui através da negociação do seu próprio direito de vir ao mundo, de enunciar como o fazem” (MAINGUENEAU, 2001, p.135), investigar o expediente literário servindo-se da inter-relação presente entre os discursos requer a análise perspicaz do trabalho desenvolvido pelos autores na construção do texto literário.

Essa construção da personagem literária evidencia o traço da literatura autoconsciente e pode, em muitos casos, dar a dimensão da consciência da modernidade transformada em discurso autocrítico e nos proporciona, como arquivo, a possibilidade de visualizar o jogo do discurso, mais que um simples controle do narrador objeto, os traços de uma época (CERQUEIRA, 2012, p.53). Utilizando o conceito de autoconsciência desenvolvido por Bakhtin (1981), discutiremos essa voz feminina que, ao contrário do que muitos podem pensar, não se sobrepõem à voz masculina. Ao mapearmos esse processo de construção, buscaremos a confirmação da marca do traço erótico como instrumento constitutivo da (re)afirmação dessa voz feminina na sociedade, principalmente quando esse traço é uma reivindicação para conduzir o enunciado à sua posição autoconsciente.

(25)

4 A VOZ FEMININA NA CONTEMPORANEIDADE OU “[...] O QUE ACONTECE QUANDO O OBJETO COMEÇA A FALAR?” 4

Investigar a representação da voz feminina em produções da literatura portuguesa contemporânea é entrar em contato com um discurso e uma discursividade do sujeito que é atravessado por experiências de significação muito peculiares.

A representação do mundo a partir de uma ótica feminina demonstra uma perspectiva distinta da masculina, uma vez que é marcada pela própria experiência do feminino e por estar voltada para a condição histórica de subjugada da mulher. Neste sentido, observa-se nos textos de autoria feminina uma voz, um estilo, uma linguagem e temática próprias (ARAUJO, 2012, p.15).

A articulação desse artifício literário, longe de empregar qualquer sentido de essência feminina (SCHMIDT, 1995), resulta na compreensão das marcas discursivas (e enunciativas) de um determinado grupo que, assim como tantos outros grupos tradicionalmente subordinados (LOURO, 2008), reage contra as forças de a-historicização imprimidas pelos agentes da lógica dominante (BOURDIEU, 2014). Esses sujeitos, por vezes tanto vítimas quanto algozes – pois podem reproduzir a violência simbólica masculina –, buscam, por intermédio da representação dos vários discursos alheios, seja no espaço da música, da arte, da fala jornalística, das mídias sociais e, claro, da literatura “[...] lugar onde se pode experimentar, descolar, simular, dissimular, fingir” (BELTRÃO, 2011, p.167), erigir uma nova lógica nas relações entre os gêneros. Por isso, torna-se uma condição da percepção contemporânea observar essas vozes sobressalentes no contexto da escrita literária:

O interesse pela produção de autoria feminina não privilegia, contudo somente, as escritoras contemporâneas. [...] estão surgindo outros nomes, silenciados na historiografia oficial e cuja a emergência tem desencadeado uma verdadeira desarticulação da visão canônica de nosso passado literário, especialmente no que se refere a pressupostos holísticos de verdade, significado e valor que a tradição dominante elevou a categoria de universais atemporais e que sustentaram, até hoje, a sua configuração (SCHMIDT, 1995, p.182-183).

Perante essa conjuntura, resgatar arquivos culturais sobre a voz feminina – seja aquela forjada pelo poeta, como nas cantigas de amigo, ou reivindicada por escritoras cujas vozes foram rasuradas pela tradição – surge como exemplo do interesse, na contemporaneidade, por desarticular a visão canônica do passado literário ocidental, ressignificando a participação feminina, suas produções e representações no campo da literatura. Assim, estudar a relevância tanto das escritoras contemporâneas quanto dos discursos sobre a mulher – ora na fala

4

(26)

ocultada de certas autoras, ora nos discursos “autorizados” pela fala “universal” – evidencia mais uma tarefa que se impõe ao pesquisador e/ou crítico contemporâneo.

4.1 DA MAÇÃ À AUTOCONSCIÊNCIA: A LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA ESCRITA POR MULHERES

Como vimos, atentar para as expressões da voz feminina distintas da voz masculina na escrita literária (ARAUJO, 2012) é, também, desestabilizar as construções dos sujeitos – tanto masculinos quanto femininos – no campo simbólico e social. Apreendido como figura subalterna nas sociedades androcêntricas, o sujeito da enunciação feminina propõe, na contemporaneidade, uma escrita na qual o discurso, problematizado no interior da tessitura narrativa, permite revelar a existência de outras vozes, simultâneas e, ao mesmo tempo, dissonantes na produção literária, desmascarando a naturalização da voz tida como “neutra”.

Assim, quando escritoras portuguesas contemporâneas, como Lídia Jorge, Teolinda Gersão, Maria Velho da Costa, Maria Gabriela Llansol, por exemplo, “reclamam” para suas poéticas uma “voz feminina”, assumem, tanto no cerne de suas narrativas quanto no modo como decidem narrá-las, um posicionamento reivindicatório. Essas autoras, de identidades biográficas femininas, propondo um texto metaficcional (BARRENTO, 2009), projetam uma discursividade do feminino que mobiliza diversas instâncias de construção desses sujeitos, escrevendo uma prosa com características muito peculiares: seja na construção de suas personagens, no jogo narrativo empregado nos textos, nos cenários fluidos suscitados pela escrita, no tempo assumido como instância ficcional e memorialística,

No romance português escrito por mulheres, o tempo – sugere ainda Isabel Allegro de Magalhães – é substituído pela fuga para uma permanente viagem dos sentimentos em figuras de mulheres telúricas, solitárias e misteriosas (em Agustina, Lídia Jorge, Hélia Correia), sonhadoras em busca de uma qualquer alteridade para a existência (em Teolinda Gersão ou Teresa Veiga), mergulhadas num presente que quase sempre significa muito pouco para elas e que por isso é recoberto por momentos narrativos emocionalmente tingidos de passado ou de futuros utópicos (BARRENTO, 2009, p.93).

No que tange os estudos de Barrento (2009), essas escritoras contemporâneas problematizam as noções “tradicionais” de tempo-espaço na sua escrita literária, engendrando uma percepção do tempo de forma distinta. No corpus escolhido, os contos de Jorge e o romance llansoliano, as narrativas giram em torno de tempos descontínuos – em Marido, a ação, bem como a linguagem em que ela é representada, ocorre ambiguamente no ritmo

(27)

frenético do fervor sexual ou da dinâmica fervorosa da oração “Salve rainha”. Já em Um

beijo dado mais tarde, o tempo físico é desconstruído ao passo que a memória da

protagonista entra em espiral. No conto A Instrumentalina, torna-se um recurso recorrer à memória de inspiração proustiana, uma vez que está em evidência, nesse texto, que recobrar o passado desejado é reaver essa experiência no presente textual. Ou seja, atualizá-la ao refazê-la. Cientes dessa relação singular estabelecida com o tempo, naquelas narrativas e, em particular, nos textos literários escolhidos para esta análise, apontamos para a existência de uma reivindicação também sendo forjada através desse artifício. Para tal, nos aportamos, novamente, nas concepções de Barrento (2009, p.93):

Este trabalho de superação do tempo histórico (por vezes, como em Teolinda Gersão ou Agustina, sem prescindir de uma fixação temporal precisa, ou mesmo de datas, o que provoca um efeito de surpresa que só reforça a atmosfera atemporal dominante), este propósito de anulação da cronologia pode fazer-se sentir até ao nível da estrutura e do ritmo da linguagem, que alterna entre o fluente e o descontínuo, e que “mente” sempre que pretende organizar-se logicamente.

Assim, autoras como Jorge e Llansol criam vozes narrativas que percebem o tempo de modo distinto do tradicional – do qual foram excluídas historicamente e relegadas, apenas, ao papel de consumidoras de livros que contavam histórias românticas. Especificamente sobre Llansol, Barrento (2009, p. 93) nos informa: “O melhor exemplo para este movimento de sístole e diástole no tratamento do tempo – que torna oscilante e quase irreal o perfil histórico dos sujeitos da narrativa – é sem dúvida o de Maria Gabriela Llansol”. Portanto, seguramente, também é a partir da perversão da lógica temporal exercida em suas narrativas que essas autoras propõem problematizar a inserção do feminino como sujeito de enunciação do discurso literário. Além do tempo, a linguagem falseada no romance e nos contos torna-se sintomática desse tipo de perversão: se, por um lado, Llansol provoca seus leitores ao insistir na radicalização da linguagem, produzindo, em certos momentos, uma ruptura no nível da morfossintaxe, no nível fônico e visual, Jorge encena o enredo como se fosse um ato erótico – em Marido, a respiração aflita de Lúcia denuncia o ritmo do conto: a voz narrativa se expressa na mesma urgência das orações da protagonista, confluindo em parágrafos longos, tumultuados:

Protege-a bem. Protege-a a ela e ao marido dela. Protege o marido da porteira até às sete. Porque ele trabalha na oficina até às cinco, ainda que a oficina só feche às sete, às vezes às dez, por vezes nem feche e muitos fiquem a trabalhar pelo fim da tarde e pela noite dentro. O marido da porteira sempre larga às cinco. Ao quarto para às cinco ele arruma o guardanapo e a marmita dentro da pasta e sai, mas só chega às sete. Claro que ele precisa de proteção, antes, depois e durante, porque sempre se está em perigo numa oficina-auto. [...] Ele faz bem em não continuar depois das cinco, por causa do perigo. Mas deveria vir logo para casa, trabalhar na gaiola dos pombos, folhear uma revista ou seguir uma série. Dormitar no sofá [...] Mas não,

(28)

entre as cinco e as sete o marido prefere passar em sítios que a porteira nem nomeia [...] (JORGE, 1998, p.7).

Segundo Maingueneau (2001, p. 104), “a maneira como a obra gere a língua faz parte do sentido da obra”. Desse modo, a língua, bem como a cenografia que ela instaura, não se condiciona como mero elemento imerso no tecido literário, mas como construto essencial e autorreferente na composição desse texto. Ora, essas autoras criam representações do feminino que permitem entrever nessa criação uma relação peculiar com a língua: enquanto Jorge apropria-se do jogo de vozes e do dialogismo para criar a autoconsciência da personagem Lúcia, em Marido, Llansol faz um experimento radical com a linguagem para mobilizar os sujeitos quanto à sua reivindicação: “Falo ao cordeiro-objecto, cantando estas circunstâncias nascentes que sobreviveram. Na casa não se administrava bem a Justiça da língua” (LLANSOL, 2013, p.7).

Além disso, as relações que as protagonistas estabelecem com a língua são perpassadas, também, pelo aspecto erótico: enquanto a porteira faz as orações em compassos ofegantes no conto de Jorge, no outro extremo há uma sensualidade na inter-relação da protagonista llansoliana com as palavras: “[...]____ a sensualidade propaga-se na linguagem, que se torna lenta e única presença do corpo [...]” (LLANSOL, 2013, p.60). Em uma sociedade em que é velado à mulher o seu direito ao corpo e ao desejo de se realizar sexualmente (BRANCO, 1991), trazer uma escrita em que uma voz feminina emerge pelos traços eróticos resulta em uma problemática. Sendo assim, observa-se que tal traço, revelado no nível da língua em Marido e em Um beijo..., configura-se como tema desenvolvido na prosa de Jorge nos dois contos em análise, A Instrumentalina e Marido. No entanto, esse esboço apresenta um caráter distinto no conto A Instrumentalina: são desenhados de maneira sugestiva, assim como nas cantigas de amigo galego-portuguesas do subgênero “alba”5, como signos que revelam o despertar sexual da protagonista:

Quem diria? Escondida no saco das reservas proibidas, havia anos e anos que não a soltava do seu lugar de abrigo, ainda que por vezes o seu selim, a sua roda pedaleira, ou a imagem caprina do seu retorcido guiador me aparecessem como coisas desgarradas. Era inevitável. Quem uma vez percorreu os caminhos do paraíso num transporte de delícia, jamais pode esquecer a imagem do objecto condutor. [...] Pude então ver que dormia de bruços, e as suas costas nuas saídas do cobertor, musculadas como um escudo, resplandeciam na penumbra do quarto repleto de instrumentos. Era uma honra semelhante a possuir uma coroa de princesa, poder debruçar-se uma sobrinha sobre a orelha do seu tio e acordá-lo, chamando-o de tão perto [...] (JORGE, 1998, p. 78 e 92).

5

Cantiga medieval cuja principal característica é registrar o amanhecer e a separação dos amantes. No entanto, embora as horas que antecedem esse tempo não constem desse registro, tal ausência não impede que saibamos do encontro dos amantes.

(29)

Sendo assim, ao dialogar com uma tradição cultural – nesses casos um diálogo com o tema do erotismo da “alba” –, as autoras em estudo, através de diversos artifícios literários, buscam outorgar à voz feminina um caráter enunciador. Conscientes do papel da atividade literária na constituição do imaginário português, essas autoras envolvem suas personagens numa cenografia própria que lhes permite desenvolver questionamentos pertinentes sobre a condição da mulher no contexto da contemporaneidade. Ora, a escritora contemporânea compreende “[...] a intervenção da palavra escrita como modo de intervir no espaço público e reivindicar seu espaço político e artístico” (CERQUEIRA, 2012, p. 21). Cientes disso, essas autoras criam personagens que, apesar de não serem definidas, explicitamente, sugerem ser intelectuais envolvidas com as questões pertinentes ao seu tempo e problematizam, ainda assim, a condição da intelectual portuguesa contemporânea frente às mudanças de percepção que o mundo vem sofrendo. Assim sendo, escrevem uma poética contemporânea calcada no ato da autocrítica, pois, ao transformar o texto literário em consciente do próprio ato de fazer literatura, propõem um objeto-criação autoconsciente:

Penso que as beguinas sabiam que o amor (a amizade, a paixão, o segredo) têm lugar no corpo, mas muito pouco lugar; ele é uma manifestação do espírito que é tão corpóreo como esta mão que escreve; por isso, quando se diz a alguém<<eu amo-te>>, é para sempre que fica dito. Sei muito pouco sobre o que é ter. Creio que meus textos sabem muito mais; eles não estão atrás, no meu passado autobiográfico; eles estão diante de mim, no meu futuro biográfico; atraem-me tanto a mim quanto a outros que os tocam, pra saber

e não mais(LLANSOL, 2013, p.14).

As autoras, no corpo de suas produções literárias, assumem um projeto de desejo reivindicatório. Pois, “através do modo como gerem sua inserção no campo, os escritores indicam a posição que nele ocupam” (MAINGUENEAU, 2001, p.31), ou seja, elas sugerem um posicionamento reivindicatório que propõe alçar à legitimidade a voz feminina. Cientes da rasura que sofreu a enunciação feminina na tradição literária androcêntrica – na verdade, houve um silenciamento das vozes que ousavam se pronunciar fora da doxa (BOURDIEU, 2014) –, essas escritoras permitem restaurar à voz feminina a atividade de contar histórias, ou melhor, de contar sua própria história. Todavia, cabe ressaltar que o discurso, reivindicado na poética das autoras contemporâneas desta análise, sugere o reconhecimento de uma alteridade dentro do texto literário: “afinal, a elaboração da escrita contemporânea está intimamente relacionada à disputa interna do jogo de vozes no texto, que por sua vez é o recurso a visibilizar tal reflexão artística para os leitores” (CERQUEIRA, 2012, p. 30-31).

(30)

Ao longo desta análise, abalizados nos estudos de gênero e da linguagem, propomos desvendar a construção deste artifício literário que, com o intuito de reivindicar o espaço do feminino enquanto sujeito do discurso na literatura portuguesa contemporânea, propõe uma voz feminina. Desse modo, Llansol e Jorge, ao suscitarem, na escrita dos seus textos literários, representações que discutem as condições do sujeito feminino, criam uma poética metanarrativa de caráter reivindicatório. Ressaltamos, assim, um aspecto peculiar dessa criação: a despeito de representar uma voz assumidamente feminina, não intenciona recobrar uma fala “verdadeira” da mulher – neste caso, homóloga a fala onipresente da voz narrativa masculina –, fala galgada numa suposta essência/pureza do feminino. Pois, o que se verifica é a construção de uma instância narrativa que se propõe resgatar uma enunciação rasurada na história das sociedades ocidentais de ideologia patriarcal. Esse subterfúgio, construído através do recurso da autoconsciência enquanto dominante artístico (BAKHTIN, 1981), revela-se com o intuito de legitimar um etos feminino na contemporaneidade.

A eficácia desse ethé está, precisamente, vinculada ao fato de que de certo modo eles envolvem a enunciação sem serem explicitados no enunciado. O que o orador pretende ser, dá a entender e mostra: não diz que é simples e honesto, mostra-o através de sua maneira de se exprimir. O etos está, dessa maneira, vinculado ao exercício da palavra, ao papel que corresponde a seu discurso [...]: é portanto o sujeito de enunciação enquanto está enunciando que está em jogo aqui (MAINGUENEAU, 2001, p. 137-138, grifos do autor).

A partir da percepção do jogo existente entre enunciado e enunciação, o texto literário que evoca uma reivindicação, efetivada pela voz feminina, se torna possível. Portanto, para que os leitores possam visualizar a autoconsciência é necessário observar como o enunciado é encaminhado, ou seja, a enunciação.

Segundo as colocações de Maingueneau (2001) sobre o etos que caracteriza a enunciação, percebemos que Lídia Jorge movimenta o dito e o modo como esse dito se exprime. Em ambos os contos, as vozes narrativas apresentam elementos dos seus enunciados que são subvertidos pelo ato da enunciação. Em A Instrumentalina, por exemplo, apesar de em nenhum momento do conto o tio Fernando deixar claro que sabe da atração exercida sobre a jovem ou do envolvimento de ambos, após a cena no campo de margaridas, na qual ele a chama de Greta Garbo, deixa-se entrever que o rapaz dedica uma atenção especial à menina.

Saberia meu tio dessa mudança? Certa vez entregou-me o relógio e pediu-me que o acordasse em determinada hora. Pude então ver que dormia de bruços e as suas costas nuas saídas do cobertor, musculadas como um escudo, [...] era uma honra semelhante a possuir uma coroa de princesa, poder debruçar-se uma sobrinha sobre a orelha do tio e acordá-lo, chamando-o de tão perto – Acorde, tio! Querido

Referências

Documentos relacionados

No código abaixo, foi atribuída a string “power” à variável do tipo string my_probe, que será usada como sonda para busca na string atribuída à variável my_string.. O

Este trabalho tem como objetivo contribuir para o estudo de espécies de Myrtaceae, com dados de anatomia e desenvolvimento floral, para fins taxonômicos, filogenéticos e

Então são coisas que a gente vai fazendo, mas vai conversando também, sobre a importância, a gente sempre tem conversas com o grupo, quando a gente sempre faz

O Custeio Baseado em Atividade nas empresas de prestação de serviço, assim como na indústria, envolve os seguintes passos: os recursos consumidos são acumulados por

Trabalhos iniciais mostraram que os fungos que apresentaram maior crescimento em meio contendo tanino como única fonte de carbono são promissores na produção da

MELO NETO e FROES (1999, p.81) transcreveram a opinião de um empresário sobre responsabilidade social: “Há algumas décadas, na Europa, expandiu-se seu uso para fins.. sociais,

O trabalho teve como objetivo avaliar se riqueza e di- versidade da fauna associada ao guano de morcegos hematófagos eram afetadas pela área e forma das manchas dos depósitos, pelo pH

Crisóstomo (2001) apresenta elementos que devem ser considerados em relação a esta decisão. Ao adquirir soluções externas, usualmente, a equipe da empresa ainda tem um árduo