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As diferentes “normas” do português brasileiro e o ensino de língua

LINGUÍSTICAS DE PRESTÍGIO 223 REFERÊNCIAS

5 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO: POR UMA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA DEMOCRÁTICA

5.2 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO: NOS CAMINHOS DO LETRAMENTO

5.2.1 As diferentes “normas” do português brasileiro e o ensino de língua

Faraco (2008) afirma que o conceito de norma culta, ao passar do contexto acadêmico para espaços públicos, tornando-se uma expressão do senso comum, perdeu o pouco da precisão semântica que tinha no interior do discurso técnico. Ao sair do espaço acadêmico, o termo passou a ser empregado em substituição à expressão gramática: diz-se que se ensina norma culta, já que o ensino de gramática passou a ser considerado “politicamente incorreto”.

A fim de estabelecer as divisas entre os diferentes sentidos que o termo foi incorporando, Faraco (2008) faz uma retomada do surgimento do termo norma. De acordo com o autor, o termo, nos estudos linguísticos, foi cunhado para captar a heterogeneidade constitutiva da língua. À perspectiva dicotômica sistema (social)/fala (individual), foi acrescido o termo norma: “Norma nesse sentido se identifica com normalidade, ou seja, com o que é corriqueiro, usual, habitual, recorrente (normal) numa certa comunidade de fala” (FARACO, 2008, p. 37).

Ao olhar para uma comunidade linguística percebe-se que ela não se caracteriza por uma única, mas por várias normas. Uma norma linguística também serve como fator de identificação dos sujeitos, caracterizando os grupos sociais. Falar uma determinada norma também é uma forma de integração dos diferentes grupos:

Como as normas são, em geral, fator de identificação do grupo, podemos afirmar que o senso de pertencimento inclui o uso das formas de falar características das práticas e expectativas lingüísticas do grupo. Nesse sentido, uma norma, qualquer que seja, não pode ser compreendida apenas como um conjunto de formas lingüísticas; ela é também (e principalmente) um agregado de valores socioculturais articulados com aquelas formas. (FARACO, 2008, p. 43).

Nessa perspectiva, a preservação ou mudança linguística por parte dos falantes significa ou a valoração dessa norma pelo grupo, ou a mudança, com a expectativa de aproximação da norma de prestígio social. No caso brasileiro, há uma mistura de normas tão grande quanto o é a existência de diferentes grupos étnicos e socioculturais que constituem a sociedade. Faraco alerta para o perfil altamente urbanizado

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e para a forte influência dos meios de comunicação144, que levam à valorização da norma urbana, em detrimento das demais.

À história do conceito de norma devem ser acrescidas as discussões feitas por Bagno (2003). Assim como o faz Faraco (2008), Bagno também alerta para as alterações semânticas do conceito de norma culta, nos usos que vêm sendo feitos no Brasil. Para o autor, dependendo do ponto de vista que se assume, o termo norma passa do sentido de normalidade (descrição de usos comuns) para o de normatização (prescrição para usos). Da mesma forma, o adjetivo culta, que acompanha o termo, assume sentidos diferentes, dependendo da perspectiva adotada em relação à língua.

Ao tratar desse assunto, Bagno (2003, p. 63-4) aponta diferentes possibilidades para o uso do termo. O primeiro é o de norma culta como sinônimo de norma gramatical, que tenta preservar, por meio da prescrição, um modelo de língua inspirado na modalidade escrita, literária e, sobretudo, na grande literatura do passado. O segundo é o que o autor chama de “norma culta dos pesquisadores”. Nessa perspectiva, é atribuído o conceito de norma culta à língua empregada no falar de sujeitos com escolaridade superior completa e que nasceram e vivem no ambiente urbano.

Aos dois conceitos de norma culta, Bagno (2003) junta, ainda, o conceito de norma popular. Segundo ele, essa é uma expressão usada tanto pelos tradicionalistas quanto pelos linguistas para designar o conjunto das variedades linguísticas com características sintáticas, morfológicas, fonológicas e semânticas que pouco aparecem na fala dos chamados “falantes cultos”. O autor reforça que essa norma aparece geralmente em ambientes rurais e nas periferias das grandes cidades.

Pesquisas recentes desenvolvidas através do Projeto NURC – Norma Linguística Urbana Culta145 evidenciam que a chamada norma

culta brasileira está longe das prescrições da gramática normativa. O

projeto, com mais de 30 anos de pesquisas desenvolvidas, reúne um banco de dados com registros dos “falantes cultos”, sujeitos com

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O número de emissoras de rádio no Brasil cresceu de duas, em 1922, para 1.069 em 1964; 1.550, em 1981; 2.938, em 1995; 2.961 em 1996; e 4.305 em 2003. Com estes números, o país ocupa a segunda posição em termos de emissoras de rádio em todo o mundo. A televisão, porém, é o veículo mais popular. Desde 1995, as emissoras comerciais atingiram 100% da cobertura dos municípios brasileiros; só a Rede Globo cobre 99,84% do território nacional. (MATTOS, 2005, p. 147).

145 O Projeto NURC (Norma Urbana Culta) foi implantado em 1969, envolvendo estudos da

fala da população com grau de escolarização superior, em cinco capitais brasileiras: Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.

escolaridade superior completa. Os resultados dessas pesquisas derrubam muitos mitos acerca do que seja a norma culta:

A realidade, porém, desconcertou o imaginário: a norma culta brasileira falada se identifica, na maioria das vezes, com a linguagem urbana comum, ou seja, com a fala dos falantes que estão fora do grupo dos chamados (tecnicamente) de cultos (cf. Pretti, 1997: 18) e não propriamente com as prescrições da tradição gramatical mais conservadora. (FARACO, 2008, p. 48).

Ainda quanto à utilização do adjetivo culta, Faraco chama a atenção para a possível relação entre norma “culta” e as demais, consideradas, por oposição, de “incultas”. Embora antropologicamente tenhamos a constatação de que não existem sujeitos “sem cultura”, essa interpretação equivocada e largamente difundida leva a manifestações preconceituosas como a de que alguns “não sabem falar”, “falam mal”, “falam errado”, “são incultos” ou “são ignorantes” etc. (cf. FARACO, 2008). Diante disso, o autor afirma que é preciso trabalhar criticamente o sentido do qualitativo culta:

Assim, a expressão norma culta deve ser entendida como designando a norma lingüística praticada, em determinadas situações (aquelas que envolvem certo grau maior de monitoramento), por aqueles grupos sociais que têm estado mais diretamente relacionados com a cultura escrita. (FARACO, 2008, p. 56).

Considerando a histórica exclusão no acesso à escolarização e aos bens culturais associados a ela, Faraco alerta para a necessidade de se analisar, também, a insistente manutenção, no Brasil, de mais de um século de manifestações contrárias à diversidade linguística. Elas podem ser visualizadas em constantes críticas feitas aos chamados “erros gramaticais” e estão presentes tanto na escola quanto na mídia ou em contextos informais. A essas manifestações, Faraco atribui o conceito de norma curta146:

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O autor explica da seguinte forma a substituição do termo norma culta por norma curta: “[...] o que tem predominado e tem servido de referência no nosso sistema escolar, e tem sido reforçado por boa parte dos consultórios gramaticais da mídia, pela ação de revisores das editoras, por manuais de redação dos grandes jornais, por cursinhos pré-vestibulares e por

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Ainda hoje, apesar do que apresentam em contrário os nossos bons instrumentos normativos [fundados em sólida pesquisa filológica e lingüística], é a norma curta que prevalece no discurso da escola, do senso comum e, principalmente, da mídia. E isso certamente porque ela tem lá sua utilidade nos nossos jogos de poder: afinal, é dela que se servem os que, em algum momento, desejam desqualificar os outros. (FARACO, 2008, p. 67).

Embora apresente a classificação norma culta, “contaminada pelo uso no senso comum” (consideração com a qual também compartilha Faraco, 2008), Bagno (2003) propõe que se modifique a terminologia, empregando os termos variedades de prestígio e, em oposição,

variedades estigmatizadas. Desta forma, segundo o autor, a

classificação assume a verdadeira face da diversidade linguística: as diferenças existentes na estrutura social: “[...] prestígio social é uma construção ideológica: por razões históricas, políticas, econômicas é que determinadas classes sociais – e não outras – assumiram o poder, ganharam prestígio ou, melhor, atribuíram prestígio a si mesmas” (BAGNO, 2003, p. 66).

Razões que nada têm de linguísticas atribuem valores diferentes às diferentes variedades da língua. Por isso, afirma Bagno (2002), é preciso deixar claro que:

O “erro” lingüístico, do ponto de vista sociológico e antropológico, se baseia, portanto, numa avaliação negativa que nada tem de lingüística: é uma avaliação estritamente baseada no valor

social atribuído ao falante, em seu poder

aquisitivo, em seu grau de escolarização, em sua renda mensal, em sua origem geográfica, nos postos de comando que lhe são permitidos ou proibidos, na cor de sua pele, em seu sexo e outros critérios e preconceitos estritamente socioeconômicos e culturais. (BAGNO, 2002, p. 73).

elaboradores de questões de concursos públicos é uma norma estreita a que chamamos aqui de norma curta”. (FARACO, 2008, p. 94).

A problemática relação da escola com a questão da diversidade linguística é histórica e resultado de problemas oriundos de diferentes áreas. Vem desde o modelo de ensino implementado historicamente no Brasil, inicialmente voltado apenas à elite (FARACO, 2008). Também passa pela dificuldade de as pesquisas linguísticas chegarem à escola (RAJAGOPALAN, 2003) e pela dificuldade de o professor compreender seu papel diante da diversidade linguística (BAGNO, 2002, BORTONI-RICARDO, 2004, FARACO, 2008).

No caso em análise nesta tese, é preciso, ainda, averiguar a dificuldade de compreensão dos professores quanto à valoração social atribuída às variedades menos prestigiadas e à necessidade de levar essa reflexão aos estudantes. São questões que retomaremos no capítulo 7. Antes disso, apresentamos, no capítulo a seguir, os dados da pesquisa quantitativa que indica os percentuais de variação relacionado ao fenômeno em estudo na fala dos estudantes.

6 SOCIOLINGUÍSTICA E ENSINO: O FENÔMENO EM