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LÍNGUA E IDENTIDADE: A VARIAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

LINGUÍSTICAS DE PRESTÍGIO 223 REFERÊNCIAS

3 A HISTÓRIA DA IMIGRAÇÃO ITALIANA E DA PRESENÇA DO DIALETO VÊNETO NO SUL DO BRASIL

4.2 LÍNGUA E IDENTIDADE: A VARIAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

Em análise da comunidade de descendentes de italianos (netos) da Região de Colonização Italiana do Rio Grande do Sul, Frosi e Mioranza (1983) observam que, entre esses falantes, a língua portuguesa é usada alternadamente com vários dialetos italianos, havendo nos centros urbanos o predomínio do português. Os autores observam ainda que os vários dialetos são considerados como “um sistema lingüístico uno opondo-se à língua portuguesa” (FROSI; MIORANZA, 1983, p. 329). A análise das interferências da língua portuguesa quando do uso dos dialetos mostrou que eles se caracterizam tanto como empréstimos lexicais quanto de segmentos fônicos. Esses empréstimos foram sendo usados pelo falante de forma tão automática, levados pelos contextos sociais de uso, que ele, segundo os autores:

[...] tinha certeza de que determinados léxicos da língua portuguesa, por ele utilizados em sua fala dialetal italiana, não eram empréstimos do sistema lingüístico português, com os quais se familiarizara pelo uso dialetal italiano, através do tempo; exteriorizava, sim, a convicção de que tais palavras sempre haviam pertencido à sua língua de origem (FROSI; MIORANZA, 1983, p. 331). Os empréstimos lexicais da língua portuguesa na fala dialetal italiana foram incorporados pela necessidade de designar coisas novas, correspondentes à realidade brasileira, como “gaúcho”, “chimarrão”, “churrasco” e “tatu”. Ainda, foram incorporados termos para designar coisas novas, não existentes na época da imigração, como “televisão” (televisore), pronunciada pelo bilíngue como [televi'sõ] e pelo monolíngue como [televi'sãu].

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Por outro lado, os empréstimos da coiné aparecem na fala em português. Em meio a uma manifestação em português, o bilíngue usa morfemas do vocabulário vêneto, combinando-os com morfemas portugueses. Por exemplo, os radicais dos verbos italianos recebem, na fala, complementação das flexões de tempo e modo, número e pessoa do português. Como resultado, há formas verbais mistas:

- “Eu me empisolei um pouco” (Eu cochilei um pouco/ Mi me son spisolà un poco)

- “Eu scartossei o milho” (Eu descasquei o milho/

Mi go scartossà il mais) (FROSI; MIORANZA,

1983).

Cria-se, assim, um uso lexical misto, como ocorre nos registros abaixo, coletados em pesquisa realizada na comunidade de Guararapes (Xavantina), no oeste de Santa Catarina:

- Perché [porque] conta que lá se ghea [tinha]

bastante terra.

- Segon, diz i taliani [os italianos], mas era o

serrote, né? No caso, o serrote.

- Tem muita gente que não se respeita, é de ti

avanti [referindo-se ao emprego dos pronomes]

(SPESSATTO, 2006, p. 32)106.

Em relação às interferências fônicas geradas pelo contato dos dialetos italianos, especialmente o vêneto, com o português brasileiro, Frosi e Mioranza (1983) afirmam que as mais expressivas interferências fônicas na fala dos ítalo-brasileiros representados na amostra correspondem aos pontos de contraste entre os fonemas dos dois sistemas linguísticos. Os autores citam Lado, para quem:

[...] quando a língua estrangeira usar um fonema que não existe na língua materna do aprendiz, isto é, quando não há nenhum fonema na língua nativa que possa ser transferido para a língua estrangeira e funcionar realmente como o fonema em questão, o aluno não consegue produzir esse fonema prontamente ao aprender a língua estrangeira. Irá substituí-lo por algum outro fonema do seu

106 Registros mistos também aparecem na fala dos informantes que constituem o corpus desta

sotaque nativo”.(LADO, 1972, p. 29 apud FROSI; MIORANZA, 1983, p. 333).

Entre as interferências fônicas investigadas pelos autores está especialmente um aspecto relacionado ao presente estudo, que é a neutralização da consoante vibrante múltipla, substituída pelo uso do tepe (FROSI; MIORANZA, 1983, p. 334).

Estudos desenvolvidos por Gerhard Rohlfs, na década de 1960, revelam que os dialetos do Norte da Itália não possuem a vibrante geminada. “Conforme as características gerais do desenvolvimento fonético setentrional, em toda a Itália setentrional rr sofre a lenização em r (tèra, guèra)107. (ROHFS, 1966, p. 336, apud FROSI; MIORANZA, 1983, p. 347). E ainda, em um estudo sobre os dialetos vênetos, Zamboni (1974) afirma que: “No que diz respeito, enfim, a /r/, tem-se, em geral, uma vibrante simples apicodental, enquanto o standard possui uma vibrante múltipla”108. (ZAMBONI, 1974, p. 14 apud FROSI; MIORANZA, 1983, p. 347).

A inexistência da vibrante múltipla como fonema do dialeto e, por outro lado, a existência da mesma no sistema fonológico da língua portuguesa, estabelecendo oposição distintiva com a vibrante simples, acarreta, do ponto de vista fonêmico, o uso inadequado das duas vibrantes nos empréstimos do português. Tomando-se os empréstimos garrafa e cerração, observa-se que a vibrante múltipla foi sistematicamente substituída, quer pela vibrante simples, quer pela vibrante que se caracteriza como um tipo intermediário entre a múltipla e a simples. (FROSI; MIORANZA, 1983, p. 347).

Os autores explicam, ainda, que a vibrante múltipla inexiste como fonema, no dialeto italiano, mas é, às vezes, realizada pelo falante (muitas das quais em contextos em que se espera, pelo padrão fonológico culto da língua portuguesa, a realização do tepe). Isso

107 Conformemente alle generali caratteristiche dello sviluppo fonetico settentrionale, in tutta

l'Italia settentrionale rr sibisce la degeminazione in r (tèra, guèra, venez. Torè) (ROHFS, 1966, p. 336, apud FROSI e MIORANZA, 1983, p. 347).

108 Per quanto riguarda infine /r/, si ha di solito un'apico-dentale monovibrante, mentre lo

'standard' ha una plurivibrante”(ZAMBONI, 1974, p. 14 apud FROSI e MIORANZA, 1983, p. 347).

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mostra, em uma das perspectivas apresentadas pelos autores e que é a defendida neste estudo, que o falante não possui o domínio desejado do fonema e o aplica de forma aleatória, sempre que se depara com palavra que exija o uso da vibrante, levando ao que os autores chamam de:

[...] processo de neutralização entre as duas vibrantes do sistema lingüístico português; suspende-se a oposição distintiva entre os dois fonemas e a unidade que aparece é, ou o termo da oposição menos complexo, a vibrante simples, ou um elemento intermediário, conforme o locutor. (FROSI; MIORANZA, 1983, p. 349).

Margotti (2004) também indica como uma das características da interferência dos dialetos italianos na fala em português dos descendentes que vivem no Sul do Brasil a não produção do /R/ em contextos esperados no português brasileiro. O autor cita essa característica como um dos estereótipos mais comuns do contato do português com o italiano:

Como na coiné vêneta inexiste o [r] forte, a influência do italiano no português faz com que os falantes bilíngües português-italiano, ou mesmo falantes monolíngües nas áreas de contato do português com o italiano, usem [r] fraco (tepe) em lugar de [r] forte (vibrante ou fricativa). (MARGOTTI, 2004, p. 10).

E é sobre esse fenômeno de variação fonológica que nos atemos na presente pesquisa. A seleção foi feita porque constatamos ser esse um fenômeno recorrente entre pessoas de diferentes faixas etárias e, até, de diferentes níveis de escolarização. Embora presente de forma significativa, é a que sofre mais estigma social.

Em estudo desenvolvido com descendentes de italianos Spessatto, (2001, 2003), foi constatada a presença significativa desse fenômeno em variação. Do total de ocorrências em contextos de vibrante múltipla (início de palavra e posição intervocálica) registradas e analisadas pela

pesquisa, 46% foram de tepe, 35% de intermediária109 e apenas 19% foram de vibrante múltipla em contextos esperados.

Os resultados da pesquisa Spessatto (2001) indicam a interferência de variáveis sociais na produção da vibrante. Em relação à escolarização, quanto mais escolarizados, mais os informantes inibem a produção do tepe em contextos de vibrante múltipla. No grupo constituído por sujeitos com 11 anos de escolarização (denominado de Colegial), 23% do total das produções do fonema vibrante em contextos de vibrante múltipla foram de tepe, 26% foram de vibrante múltipla e 51% de “intermediária”, o que releva a preocupação dos informantes em se aproximar do padrão fonológico do português brasileiro.

Porém, embora os dados estatísticos indiquem um avanço em direção ao emprego da variante de prestígio entre os mais escolarizados, é preciso considerar que a pesquisa citada considerou apenas informantes urbanos, o que não é o caso da maioria dos sujeitos do nosso corpus atual. Ainda, outras pesquisas por nós realizadas indicam a presença do fenômeno em variação linguística em estudo entre estudantes universitários. Em pesquisa realizada com quinze professores universitários da comunidade em estudo Spessatto (2007), perguntou-se se percebiam a presença da variação linguística em análise entre os estudantes que chegam à universidade, ou seja, que passam pela Educação Básica e, em sua maioria, pertencem a uma faixa etária mais jovem. Todos os professores afirmaram que percebem atualmente ou já identificaram a existência do fenômeno em variação no contexto universitário. Porém, as formas de perceber essa presença e lidar com ela se diferenciam.

Seis dos professores disseram que essa variação é bastante comum entre as turmas. Eles afirmam que questões como a região de procedência dos alunos e a cultura local são fortes na preservação dessas características linguísticas. Uma das entrevistadas disse que, embora bem comum, o fenômeno enfrenta um certo tipo de “autopoliciamento”: “o predominante seria que todos fizessem [o uso da vibrante múltipla em contexto esperado] e dentro da sala de aula já tem essa, não chega a

109 A produção do fonema foi assim classificada por não se tratar nem da realização de um tepe

e nem de uma vibrante múltipla, mas uma produção “intermediária”. A classificação foi feita após comprovação em laboratório de fonética, aplicação de testes qualitativos com um grupo de dez pessoas. Expostos a produções em contextos de vibrante múltipla, os sujeitos que constituíram o grupo de teste ficaram em dúvida quanto a como classificar a produção dos informantes. Também nos apoiamos, hoje, nas afirmações feitas por Frosi, que identificou a presença de um fonema “intermediária” em pesquisas com falantes do grupo étnico analisado, na RCI do Rio Grande do Sul (FROSI; MIORANZA, 1983).

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ser uma discriminação, mas eles já foram induzidos a não fazerem, pelo que eu percebo” (professora 14, entrevista gravada em 09/07/2008). Também encontramos entre o grupo de professores aqueles que intervêm, quando percebem a presença dessa variação: “A minha preocupação, inclusive, de tentar de forma sutil corrigir, certo? Procurando repetir a palavra de forma correta, certo?” (SPESSATTO, 2007, p. 24).

Apenas uma das professoras disse que, atualmente, não encontra essa variação, por trabalhar nos cursos X e XX110, nos quais, segundo ela, essas variações praticamente não aparecem: “Isso talvez se justifique também pela própria condição preparatória dos alunos que vêm, que leem bastante, que estudam bastante, inclusive para disputar as vagas do vestibular que são muito concorridas” (professora 5, entrevista gravada em 15/12/2008). É necessário observar que a análise feita pela professora não condiz com a de outros que atuam em um dos cursos por ela citados. Por outro lado, também é preciso atentar que a variação a que se refere provém de intervenções de características étnicas e, não necessariamente, pode ser relacionada a “ler mais ou estudar bastante”, em uma paráfrase ao depoimento coletado. Ainda, como se trata de um fenômeno em variação fonológica, não pode ser “resolvido” com a leitura.

Em um contexto em que a presença do fenômeno em variação linguística mostra-se tão efetivamente presente em diferentes perfis populacionais, é preciso avaliar o valor social a ele atribuído. É o que faremos na seção a seguir.

4.3 IDENTIDADE MACULADA: O PRECONCEITO EM RELAÇÃO