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As diretrizes do tratamento da cliticização

No documento Universidade Federal do Rio de Janeiro (páginas 55-60)

3. FUNDAMENTOS TEÓRICOS

3.1 As diretrizes do tratamento da cliticização

Preliminarmente, convém tratar do conceito de cliticização usualmente empregado, tendo em vista que a presente pesquisa se vale da ordem de elementos considerados clíticos na Língua Portuguesa, ou seja, os pronomes átonos.

O vocábulo clítico, de origem grega, significa, em dicionários gerais do Português (cf. Aurélio, 1986: 418), “qualquer monossílabo átono subordinado, por meio de elemento prosódico, ao vocábulo que o precede, ou que o segue, ou no qual se acha inserido”.

Em dicionários especializados em Lingüística, o termo cliticização também é definido considerando-se sua natureza fonética. A esse respeito, observe-se a definição de clítico proposta por Crystal (2000), em seu Dicionário de Lingüística e Fonética:

Termo usado na gramática com referência a uma forma que se assemelha a uma palavra, mas não pode aparecer sozinha em um enunciado normal, sendo estruturalmente dependente da palavra vizinha na construção. (CRYSTAL, 2000: 49)

Conforme se observou na revisão da literatura acerca da colocação, diversos estudos priorizam a natureza átona dos clíticos para postular hipóteses interpretativas acerca do comportamento da ordem dos pronomes átonos, bem como acerca das diferenças entre variedades do Português. Ressalte-se, a esse respeito, a consideração hipotética de que a pauta acentual produtiva da Língua Portuguesa, a paroxítona, constituiria motivação para a próclise, já que a ênclise daria origem a um vocábulo proparoxítono.

Em seu Dicionário de Lingüística e Gramática, Câmara Jr. (1997) considera próclise o fato de uma forma dependente unir-se ao vocábulo que o segue, configurando um caso de “inclinação para frente”. Contemplando-se graus de tonicidade, postula que a forma átona, que constitui sílaba que inicia o vocábulo fonológico, apresenta atonicidade mínima (grau 1), enquanto a forma átona que se liga ao fim do vocábulo, em ênclise, assume atonicidade máxima (grau 0).

Embora as definições pautadas no comportamento fonético-fonológico sejam assumidas como verdadeiras em diversas abordagens do fenômeno, os clíticos de natureza pronominal costumam ser classificados como proclíticos, enclíticos ou mesoclíticos, em função unicamente da posição em relação à palavra de que dependem sintaticamente, ou seja, a forma verbal.

Em consideração às características definidoras dos clíticos ora apresentadas, pode-se perceber que essa categoria se constitui a partir da interface dos níveis gramaticais. Definido foneticamente como partícula átona, o clítico insere-se numa categoria morfológica formal entre o afixo e a palavra – do tipo “forma dependente” – que depende de outro constituinte no nível sintático.

Em função desse caráter de interface gramatical – que abarca os componentes fonético, morfológico e sintático –, é oportuno sublinhar que a Lingüística moderna, no que concerne, especificamente, à orientação investigativa de cunho formalista, vem

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deliberando acerca da natureza dos pronomes átonos com o intuito de estabelecer uma possível tipologia de clíticos nas línguas do mundo.

Aronoff (1994:12), ao tratar dessa interface no tratamento do fenômeno, considera que, sendo o clítico um elemento constitutivo de uma instância sintática no que respeita à ordem de palavras, é também um item morfológico, visto que se revela como categoria pronominal que exibe, em determinados casos, características semelhantes às de um afixo, por ser concebido como uma forma dependente.

A propósito do âmbito fonológico, Vieira (2002: 382), com base em bibliografia especializada, também salienta que os pronomes átonos não apresentam força acentual própria e, por essa razão, tornam-se dependentes de outro vocábulo, o que os torna deficientes no que toca ao aspecto prosódico. Desse modo, possuiriam os clíticos a natureza sintática das palavras e as características fonológicas dos afixos.

Estudos realizados acerca dos átonos pronominais das línguas românicas advogam que os clíticos apresentam comportamento que os aproxima de um afixo (cf. KLAVANS, 1985). Em contrapartida, buscando caracterizar especificamente os pronomes átonos do Português Europeu, determinados trabalhos, tais como o de Vigário (1999), defendem que eles se inserem na estrutura gramatical, após o componente lexical, e que seu caráter de mobilidade no enunciado constitui evidência suficiente para que eles não sejam tidos como afixos (Cf. DUARTE, I. et alii, 2001).

Spencer (1991) postula que clíticos e afixos, por apresentarem determinadas propriedades, se aproximam e se distanciam por vezes. Sublinha o autor que a principal semelhança entre ambos os elementos pode ser observada pelo fato de serem concebidos como “morfemas dependentes”. Ademais, ressalta o estudioso a importância do posicionamento do hospedeiro do clítico na sentença, o que lhe confere estatuto próprio em termos sintáticos.

Nesse sentido, alguns estudos priorizam o exame do tema dos átonos pronominais, buscando postular tendências sintáticas, como, por exemplo, as relacionadas à posição do hospedeiro verbal na frase. Assim, postula-se, como fenômeno geral, o pressuposto identificado como “fenômeno de segunda posição”– compreendido como a Lei de Wackernagel –, segundo o qual os clíticos não iniciam sentenças, figurando, mais comumente, após o primeiro constituinte da oração.

Ainda no que tange à ordem do pronome átono em segunda posição, tomem-se antigas referências, como as de Tobler (1875) e Mussafia (1886, 1898), que confirmam, em certa medida, tal tendência, propondo, entretanto, que não se determine a segunda

posição como lugar exato de ocorrência do clítico, mas que se recuse a posição do clítico como primeiro elemento da oração (Lei de Tobler-Mussafia). Corrobora-se, assim, a premissa de que “pronomes objetos átonos não figuram em posição inicial absoluta na sentença” (FONTANA, 1993: 28).

No que concerne à natureza dos clíticos em geral, destaque-se o trabalho de Zwicky & Pullum (1983) – no qual os autores apresentam alguns critérios pelos quais, possivelmente, se podem distinguir as categorias de clíticos e afixos – bem como o de Zwicky (1985) – em que se discute a separação entre clíticos e palavras.

A propósito das observações efetuadas por Zwicky & Pullum (1983), estipulam- se seis critérios de modo a evidenciar as características particulares de clíticos e afixos: (i) grau de seleção do morfema dependente em relação ao seu hospedeiro; (ii) lacunas lexicais arbitrárias; (iii) idiossincrasias fonológicas; (iv) idiossincrasias semânticas; (v) operações sintáticas que afetam possíveis combinações; (vi) restrições na combinação de clíticos e afixos.

Com base em tais critérios, Vieira (2002) apresenta reflexões acerca da natureza dos clíticos em Português. A autora postula, então, duas propriedades dos pronomes portugueses que os aproximam da categoria de afixos: (i) eles posicionam-se adjacentes ao verbo, assim como um afixo se encontra adjacente à raiz que o hospeda; e (ii) semelhantemente aos afixos flexionais, os pronomes átonos integram um inventário relativamente pequeno e fechado, contrapondo-se às classes abertas, como nome, adjetivo e verbo. Duas outras propriedades dos clíticos pronominais do Português, apresentadas pela autora, impossibilitam, entretanto, o tratamento desses elementos como afixos, no sentido estrito da palavra: (i) eles ligam-se a uma instância sintática, e não a raízes vocabulares; e (ii) apresentam relativa mobilidade, podendo figurar antes ou depois do verbo, já que não se comportam como formas presas.

Em face das proposta de Zwicky (1985), Vieira elucida as características sintáticas que favorecem a consideração dos pronomes átonos na categoria de palavras. Sistematizando os testes sintáticos para a diferenciação de clíticos e palavras propostos pelo autor, a autora tece as seguintes considerações:

(i) o pronome do Português está sujeito ao apagamento quando idêntico (p. ex.: <eu oi vi

e Øi admirei>); (ii) sendo o próprio clítico uma proforma de um referente representável

por um SN, pode vir retomado, por ele próprio, numa espécie de proforma por substituição repetitiva (cf. KOCH, 1990), como em <eu o vi e o admirei>; e (iii) está sujeito à regra de movimento, podendo antepor-se ou pospor-se ao verbo. (VIEIRA, 2002: 392)

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De modo genérico, por toda a interface dos níveis gramaticais revelada na delimitação dos clíticos, em função de eles apresentarem algumas propriedades mais afixais e outras mais de palavra, essa categoria chega a ser tratada como um “afixo sintagmático”. Fontana (1993: 24 apud VIEIRA, 2002) afirma:

Clíticos são definidos como elementos que, ao mesmo tempo em que se ligam fonologicamente a palavras, se ligam sintaticamente a sintagmas. Para Klavans, a ligação sintagmática é uma propriedade inerente dos clíticos, e, conseqüentemente, uma característica que os define universalmente: ela define clíticos especificamente como afixos sintagmáticos.

A presente investigação, considerando a interface dos níveis gramaticais na caracterização do fenômeno da colocação pronominal, lança mão de parte da proposta de Klavans (1985), que objetiva caracterizar as línguas do mundo em função de parâmetros de cliticização. A autora advoga que a sintaxe e a fonologia podem atuar de forma independente no tocante ao evento da cliticização, postulando que os clíticos podem estar ligados, a um só tempo, sintaticamente a um hospedeiro e fonologicamente a outro.

Partindo do pressuposto de que as formas clíticas ocorrem ligadas a um elemento sintático específico (seu hospedeiro), a estudiosa propõe que as línguas do mundo podem ser caracterizadas quanto à posição dos clíticos – antes ou depois – em relação a esse elemento sintático. Em termos fonéticos, eles podem figurar apoiados em qualquer forma precedente ou subseqüente a ele. A fim de observar a formulação desses parâmetros, apresentam-se as definições a seguir, preconizadas pela autora:

(i) Parâmetro 1, o da dominância (inicial/ final): exprime a possibilidade de que o clítico esteja ligado ao constituinte inicial ou final dominado por um sintagma específico.

(ii) Parâmetro 2, o da precedência (antes/ depois): examina-se se o clítico se posiciona antes ou depois do hospedeiro sintático escolhido no primeiro parâmetro.

(iii) Parâmetro 3, o da ligação fonológica (enclítico/proclítico): exibe a ligação do clítico ao seu hospedeiro fonológico

O exame aqui efetuado, no que se refere aos três parâmetros, parte da proposta da independência entre eles para propor uma pesquisa específica do parâmetro 2, ou seja, o da precedência. Investiga-se, especificamente, se o clítico elege, em relação às lexias verbais simples, a posição pré-verbal / proclítica (cl v) ou pós-verbal / enclítica (v cl); e, no que tange às lexias verbais complexas, a posição anterior (cl v1 v2), posterior

(v1 v2-cl), interveniente com hífen (v1-cl v2), ou sem hífen (vl cl v2) na modalidade escrita literária brasileira e européia. Uma vez os pronomes átonos do Português apresentando o verbo como hospedeiro sintático (determinação específica do âmbito do primeiro parâmetro), postula-se, então, a precedência (P2) do clítico a essa forma verbal, selecionada em P1.

No que concerne ao terceiro parâmetro, acredita-se que apenas uma investigação de natureza fonético-fonológica com dados da modalidade oral tornaria viáveis conclusões cientificamente fundamentadas. Pontue-se que, neste trabalho, o componente rítmico-acentual – especialmente no que se refere ao padrão de tonicidade do vocábulo fonológico que se constitui com a adjunção do clítico às formas verbais simples – é considerado apenas na qualidade de variável independente como possível condicionamento estrutural da ordem.

Feitas as considerações acerca do fenômeno que integra a base da regra variável em estudo, ou seja, a cliticização, passa-se a expor a fundamentação relacionada ao aporte que permitirá o tratamento específico das questões concernentes à variação e à mudança lingüísticas.

No documento Universidade Federal do Rio de Janeiro (páginas 55-60)