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As experiências impostas pelas situações de vida têm reflexos no sistema nervoso que podem ser descritas, pelo menos é esta a pretensão, em função do aumento e diminuição dos níveis de excitação. Todas estas situações são organizadas psiquicamente

e se estruturam assentadas em duas vivências fundamentais: a vivência de satisfação – modelo da noção de desejo – e a vivência de dor – protótipo da noção de repressão.

Estando expostos a estímulos internos, os neurônios nucleares são incitados a descarregá-los pela via motora e assim restabelecer o equilíbrio do sistema. Como este acúmulo de Q nos neurônios nucleares e a conseqüente sensação de desprazer não podem ser aliviados com uma mera descarga motora – gritos, inervação vascular – devido à origem interna do estímulo, o desinvestimento de Q depende de uma ação específica no mundo externo. São as exigências de vida, das quais a fome é paradigmática, que somente com uma modificação no mundo exterior terão uma solução definitiva para o estado de tensão que geram. Como o infante não dispõe de recursos para tanto, esta realização depende de uma ação prestadora de um terceiro. A barreira de contato entre Ψ e o interior do corpo não é restabelecida sem que uma ação prestativa complete o circuito de eliminação de Q.

A totalidade desse circuito, que se denomina de vivência de satisfação, se constitui em pelo menos três momentos: acúmulo de tensão e a conseqüente sensação consciente de desprazer; descarga de Q acompanhada da sensação consciente de prazer; e, articulando estes dois extremos do circuito, a ação prestativa externa.

Enquanto a ação específica não se completa, a inervação lingüística, da qual o grito é a mais primitiva, em seu papel de neurônio motor, atua primeiramente como uma válvula que permite uma tênue eliminação de Q, a única até que o agente prestativo interceda. Mas a sua maior relevância para o restabelecimento do equilíbrio do sistema está em seu papel de chamar a atenção do agente prestativo para o estado desiderativo do agente.

O resultado de tudo isso, quando a ação prestativa se concretiza, é a constituição de um complexo ideativo, com uma forte tendência a ser reocupado, em que o grito é um de seus elementos e que determinará o curso dos processos psíquicos daí em diante.

É este o caminho de eliminação, denominado de desejo, que tende a ser repetido sempre que o estado de tensão se estabelecer:

“Não tenho dúvidas de que essa animação desiderativa resulte em primeiro lugar em no mesmo que a percepção, ou seja, em alucinação.

Se em conseqüência disso a ação reflexa for iniciada, não há como não faltar desilusão”. 153

Assim, a recordação primária deste traço mnêmico é alucinatória. 154 O sistema nervoso terá que se valer de uma indicação de realidade que alerte para que esta forma de ocupação do circuito desiderativo seja abandonada. Antes de expor este mecanismo, que supõe a introdução do ‘eu’, vejamos o que é definido como vivência de dor.

Além dos estímulos endógenos, o sistema nervoso é investido por estímulos externos. São estímulos desta natureza que impõem ao sistema nervoso um intenso acúmulo de Q acompanhado de grande desprazer que só é amainado com a descarga motora. A dor produz em Ψ uma facilitação entre o objeto que impôs este grande incremento de Q ao sistema e esta descarga motora que restabeleceu o equilíbrio do sistema através da eliminação.

O grito também desempenha um importante papel econômico neste circuito de eliminação. Neste aspecto, ele é utilizado com a mesma finalidade da vivência de satisfação: uma forma de eliminação de Q. Além desta, há outra importante função relativa à vivência dolorosa: permitir uma memória do objeto hostil. Esta representação se coloca como uma idéia limítrofe que, ao antecipar ao fluxo do pensamento ser aquele caminho inapropriado ao reencontro do objeto desiderativo, minimiza os efeitos quantitativos relativos à evocação da representação dolorosa.

Todo este circuito consiste na vivência de dor, cujos traços mnêmicos tendem, ao contrário da vivência de satisfação, a ser desocupados por um mecanismo definido como defesa, a defesa primária.

153Projeto de uma Psicologia, pg. 197, in Gabbi Jr., O.F., Notas a Projeto de uma Psicologia: As Origens

Utilitaristas da Psicanálise, Rio de Janeiro, Imago Ed., 2003.

154 A esta altura, não há que se falar na repressão como elemento atuante sobre esta modalidade de

alucinação. A defesa não tem efetividade nenhuma na superação deste modo primário de funcionamento. As razões ora apresentadas por Freud para o abandono desta forma primária de desejo são oferecidas pela sua ineficácia como meio de obtenção de alimentos que, dada a ausência da sexualidade, é a única carência estruturante do desejo. É a tentativa de levar a cabo uma ação eficaz que alcance este intento que origina o processo de pensamento: nada mais que um artifício psíquico que visa estabelecer a identidade entre o objeto desiderativo e o objeto da percepção. Com os movimentos teóricos posteriores ao Projeto e a articulação entre desejo e repressão, a atividade do pensamento, além de outros atos psíquicos como a fala, e o próprio ‘eu’, serão uma solução de compromisso entre motivos conflitantes. Só então, a defesa será, ao mesmo tempo, condição para o abandono das formas primárias de satisfação – inclusive sexual – e o motivo para a regressão a esta forma arcaica de desejar.

Nas duas vivências fundamentais se dão, primeiramente, uma variação positiva de Q – o que gera desprazer e exige uma ação motora do agente –, seguida de uma variação negativa – esta acompanhada da sensação consciente de prazer. Porém, os elementos internos de cada um dos circuitos das duas vivências fundamentais se dispõem numa ordem distinta:

1) Na vivência de dor: objeto (hostil) – aumento de Q e desprazer (dor) – movimento reflexo – descarga de Q e prazer; para evitar que a imagem mnêmica do objeto hostil seja reocupada e que a dor se repita, desenvolve-se uma compulsão a negá- la com a super-ocupação do registro mnêmico do objeto situado no elo terminal do circuito, cuja percepção coincidiu com o alívio da dor. 155

Assim, sempre que uma nova percepção estimular a ocupação na imagem mnêmica do objeto hostil, produz-se um estado de tensão que gera desprazer e uma tendência a negar esta nova ocupação com a repetição do mesmo circuito de eliminação que levou à cessação da vivência dolorosa. Mas este estado já não é de dor, embora seja assemelhado a ela.

Nestas circunstâncias, se é gerado desprazer, surge a questão quanto à origem desta excitação extra veiculada pela recordação que, quando da vivência propriamente dita, provinha do mundo externo. Em princípio, é suposta a existência dos neurônios secretores de Q, os neurônios-chave. O resultado da vivência de dor é o estabelecimento de uma facilitação entre o seu registro e este tipo de neurônio, que tende a ser acionado sempre que a imagem do objeto hostil for recordada. Aqui se cria uma compulsão de caráter negativo: desocupar a imagem recordativa da vivência dolorosa (facilitadamente ligada aos neurônios secretores) ou, em outros termos, ocupar o objeto cuja associação negou o objeto hostil.

2) Na vivência de satisfação: aumento de Q com desprazer – objeto (desiderativo) – descarga de Q e prazer, se estabelece uma compulsão a repetir a imagem mnêmica do objeto associado à descarga de Q e o conseqüente prazer. Neste caso, passa a vigorar uma compulsão a afirmar o objeto desiderativo.

155 Se lembrarmos do caso Emma e, aceitando ser vivência de dor o protótipo do patológico, poderemos

perceber que, dentre os elementos que estariam no extremo terminal do circuito, é justamente ‘vestido’, fazendo às vezes do grito, o que passa a ser compulsivamente investido como forma de ‘negar’ o complexo ideativo relacionado ao atentado.

“Os dois estados são da maior importância para o curso [de quantidades (...), pois deixam atrás de si motivos do tipo compulsivo. Do estado desiderativo, segue-se diretamente uma atração pelo objeto desiderativo, ou melhor, por sua imagem recordativa; da vivência dolorosa, resulta uma repulsa, uma aversão, a manter ocupada a imagem recordativa hostil. Os motivos são a atração desiderativa primária e a defesa primária”. 156

O motivo compulsivo da vivência de satisfação se manifesta como uma busca de se estabelecer uma percepção que seja idêntica à recordação. Já na vivência de dor, o motivo empresta a tendência para a busca de se estabelecer uma percepção diferente da imagem recordada. 157 A superação da alucinação na vivência de dor é reduzida por uma ação reflexa, tornando-se uma solução que tende a ser compulsivamente repetida. Na vivência de satisfação, a alucinação é seguida por um ato específico no mundo externo. Numa, há tendência para se alucinar, na outra, uma tendência para refutar a alucinação. Na vivência de satisfação, o ato específico termina quando encontra o objeto desiderativo; na vivência de dor, a ação reflexa termina quando o objeto hostil é

desencontrado, negado pela ocupação de outro complexo ideativo.

Com essa descrição, Freud expressa a crença de que há uma estreita semelhança entre a forma de operação do mecanismo psíquico na recordação da vivência dolorosa e na recordação patológica de uma vivência sexual: defesa segundo o processo primário.

Vimos que a forma de funcionamento primária sob a qual se constituem as duas vivências fundamentais do aparelho psíquico é abandonada. O curso automático e livre de Q no interior do sistema é influenciado pelo que Freud denomina de ‘eu’ o qual, da forma que é definido, não está restrito aos limites da consciência. Vejamos como Freud descreve a gênese do ‘eu’ e a consciência.

156

Idem, pg. 199.