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Na interpretação psicológica deste caso é invocada uma série de princípios expostos por Freud na Parte I do Projeto. O modelo de aparelho psíquico, então apresentado, está apoiado em dois postulados.

Pelo primeiro postulado, o sistema nervoso está exposto a excitações que lhe impõem um componente quantitativo, passível de aumento, diminuição e deslocamento, e tende a mantê-lo nulo. Ou seja, o aparelho neurônico tende a descarregar toda soma de excitação recebida. Este princípio, em função do qual são definidas a arquitetura, o desenvolvimento e o desempenho dos neurônios, é denominado de princípio da inércia.

Além dos estímulos provenientes de fora do organismo, a complexidade biológica do ser humano impõe ao sistema nervoso acréscimos de excitação de origem endógena decorrente das necessidades de vida – fome, respiração, sexualidade. Pelo princípio da inércia, todo este acréscimo deveria ser inteiramente eliminado. É assim, tratando os estímulos internos como se fossem externos, que se dá um movimento reflexo.

Entretanto, como esta estimulação provém do interior do corpo, a tensão estabelecida não pode ser resolvida por um ato reflexo, como o seria diante de um estímulo de origem externa. Além do mais, se a totalidade dos estímulos exógenos supre a realização da própria ação que a descarrega, o mesmo não se dá com os estímulos internos. Estes, ao mesmo tempo em que demandam uma ação específica no mundo, não suprem o aparelho nervoso com a quantidade de movimento necessário para tanto.

Exigindo a ação específica uma reserva quantitativa que permita ao sistema operar com quantidades menores, a tendência primária à inércia é travestida numa tendência a manter a excitação no menor nível: um ponto ótimo o mais próximo possível de zero, mas com tal magnitude de movimento de modo a atender à demanda energética desta ação específica, é o chamado princípio da constância.

São, portanto, as necessidades biológicas que exigem a evolução da forma de funcionamento do aparelho psíquico da forma primária para a denominada forma

secundária. O sistema nervoso estará permanentemente ocupado por certa quantidade de movimento e guiará seus atos considerando as condições externamente impostas. 152

Referimo-nos acima ao caráter alucinatório dos processos primários que estão relacionadas com a formação do símbolo histérico. Podemos agora inferir que a defesa patológica é um mecanismo que, operando segundo a forma primária, representa uma involução a uma forma de funcionamento arcaica que fora abandonada por não ser biologicamente interessante. Neste sentido, a defesa patológica, da qual o sintoma histérico decorre, tem conseqüências biologicamente inadequadas.

O segundo postulado principal apresenta a estrutura que suporta o fluxo quantitativo assinalado pelo primeiro postulado. Esta estrutura é composta por neurônios ocupados em quantidades regidas pelo princípio da constância. A importância biológica desta ocupação reside em sua função de estabelecer caminhos preferenciais para a eliminação da Q endógena. Essa diferenciação é função da interação do fluxo de Q e as barreiras de contato localizadas entre os neurônios: é diretamente proporcional à intensidade e à repetição do fluxo de Q.

Se são as experiências da vida que impõem as variações quantitativas no sistema nervoso, podemos dizer que estas facilitações decorrentes do acúmulo de parte dessas variações são os registros dessa experiência. Nestes termos, a memória é descrita mecanicamente e tem uma importância biológica fundamental.

Não só a alteração permanente do sistema neuronal é justificável, como também deverá ser o fato de novas experiências encontrarem condições receptivas inalteradas por impressões anteriores. Esta capacidade de reter e permanecer receptivo é uma das propriedades do sistema nervoso. Nestes termos, é razoável supor, as diferenças funcionais refletem diferentes localizações dos neurônios implicados na atividade mnêmica ou na percepção. Tais diferenças se explicam pelas quantidades que cada grupo de neurônios tem que lhe dar. Como Freud conjectura que as Qs externas sejam de magnitudes infinitamente superiores às endógenas, as barreiras de contato dos neurônios receptivos são totalmente ignoradas e não criam resistências diferenciadas.

152 É o que mais adiante será definido como ‘eu’: uma massa neurônica capaz de influenciar o curso

São então postuladas duas classes de neurônios: neurônios perceptivos, que estão em contato direto com o mundo externo, aqui denominados de Φ; neurônios recordativos que, estando em contato direto com o interior do corpo e expostos a quantidades de pequena magnitude, infligem a estas uma refração através da resistência das barreiras de contato que, assim, estabelecem diferentes níveis de facilitações e a constituição de caminhos preferenciais– registro da passagem de Q –, chamados de neurônios Ψ.

A esta altura, a memória pode ser entendida como um recurso evolutivo do aparelho psíquico premido pelas necessidades biológicas. Sendo um dispositivo desta natureza, tem seus limites de eficiência que são fatalmente extrapolados pela irrupção de grande Qs em Ψ. Neste caso, desfazem-se as condições que o diferenciavam dos neurônios perceptivos, eliminando sua capacidade mnêmica, baseada justamente, nos vários níveis de facilitações a Q. Os neurônios Ψ implicados no processo tornam-se permeáveis e funcionalmente idênticos a Φ. Se a diferenciação de Φ em Ψ foi pensada como uma evolução, a irrupção de grandes Qs, podemos inferir, impõe uma regressão na forma de funcionamento do sistema nervoso.

Quais são as possibilidades de uma irrupção de grandes Qs em Ψ? Ou, em outros termos, em que circunstâncias há esta regressão formal e tópica no funcionamento do sistema nervoso?

Se atentarmos para o caso de Emma, teremos que nos questionar sobre a possibilidade de ocorrência de um processo primário póstumo, ou seja, um processo primário em uma época em que as exigências da vida já deveriam, há muito, ter imposto o definitivo abandono dessa forma de funcionamento psíquico, que é totalmente disfuncional e pouco adaptativa.

Uma resposta satisfatória a estas questões depende de uma melhor compreensão do que Freud supõe na organização funcional deste sistema.