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CAPÍTULO III: O URBANISMO COMO CONSEQUÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS

3.2 AS ELITES E A CIDADE

Feitas essa considerações a respeito de um aspecto não pouco importante da relação entre as concepções de Prestes Maia e as expectativas da comissão, é importante dizer que os discursos produzidos nas diversas instâncias em que estava colocada a pauta do urbanismo contribuíram para o agravamento da segregação social no espaço da cidade. Esse argumento merece maior atenção, tanto mais quanto é notável que vários indícios permitem dizer que tais discursos agiram nesse sentido de forma até mais decisiva, talvez, que as intervenções urbanas concretamente efetivadas com base no Plano de Melhoramentos Urbanos. Isso porque, os cidadãos notáveis campineiros, representando as aspirações da coletividade na Comissão de Urbanismo, devido às posições que ocupavam nos meios culturais e de serviços, dispunham dos meios para que seus valores e o estilo de vida que os sustentavam se difundissem e se transformassem em ideal a ser buscado, inclusive quanto à forma da cidade e ao padrão de civilidade.

Além do mais, concomitantemente, a divulgação recorrente dos exemplos morais da vida cotidiana de cada um dos membros deste seleto grupo, como foi exposto no primeiro capítulo, dava lastro à ideologia que desejavam fazer vigorar no senso comum. Ao longo das décadas de 1920 e 1930, portanto, as condições culturais para a produção de um espaço urbano marcado pela segregação social, consolidavam-se apesar das contradições que se apresentavam em relação ao ideário do celebrado urbanismo moderno. Isso quer dizer que o conjunto de imagens de convivência harmoniosa entre as classes sociais, presentes em concepções de cidade nas quais casas de diferentes padrões ocupam o mesmo

284 Idem.

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quarteirão, e parques públicos aparecem como espaço no qual patrão e empregado se encontram no momento de lazer286, se desfazem diante das prerrogativas implícitas do estilo de vida das elites. Para completar, de meados da década de 1940 em diante, a especulação imobiliária aprofundou a segregação dos espaços conforme a cidade tornava-se objeto de negócios rentáveis para os investidores, que nesse momento, encontravam menos resistências propriamente urbanísticas para a concretização de seus interesses.

286 São propostas presentes, por exemplo, no urbanismo de Le Corbusier e Lúcio Costa, que certamente ressoam nas proposições Anhaia Mello e Prestes Maia, entre outros.

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Imagem 15 – Cartaz publicitário

Fonte: Palmeiras, 1938-1948. Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU-UNICAMP. Nota: Este é um cartaz publicitário da Companhia Imobiliária Campineira, no qual a montagem feita a partir de fotografias constrói uma associação entre um ideal de cidade e as oportunidades de fazer negócios por meio de especulação imobiliária.

É bastante significativa essa propaganda publicada pela Companhia Imobiliária Campineira na Revista Palmeiras, em circulação entre 1938 e 1948. O incentivo aos investidores nos dizeres “Ganhe dinheiro”, aparece articulado à confiança que podiam ter

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no “futuro de Campinas”. Justifica essa proposta o discurso do progresso composto por imagens que colocam um centro urbano verticalizado como resultado de um processo que naturalmente deveria ser alcançado “dentro de poucos anos”. As fachadas das casas antigas que aparecem na primeira imagem do cartaz, representando a “Campinas de alguns anos passados”, são retoricamente sucedidas pela imagem da Campinas de “hoje”, na qual há uma montagem em que estão colocados lado a lado um prédio situado na Rua Conceição, construído por Lix da Cunha, e outro, de autoria de Hoche Neger Segurado287, que se encontra na José Paulino, atrás do Fórum. A terceira imagem, enfim é a fotografia de uma outra cidade, não importa qual, mas que é dominada por edifícios altos. A composição desse cartaz, portanto, está em sintonia com uma avidez capitalista inseparável de justificativas relacionadas ao discurso do progresso. Importante lembrar que a eficácia desse discurso depende ainda de uma complexa construção de valores que colocam o progresso como resultado do compartilhamento de atitudes morais, da inclinação ao trabalho, da dedicação à família, da veneração aos grandes nomes da história da cidade. Trata-se, deste modo, de uma aspiração ao progresso cujas bases encontram-se na tradição.

De acordo com o que se pretende argumentar nesse terceiro capítulo, no entanto, o modo como o poder do capital se impõe a partir dos últimos anos da década de 1940 em diante, desloca consideravelmente os parâmetros de moralidades das elites. As instâncias nas quais predominantemente atuaram em favor da vida pública os profissionais liberais que são personagens principais dessa pesquisa, são as organizações culturais e cívicas da cidade que, com o passar dos anos e o advento de novas forças transformadoras foram perdendo seu prestígio e sua influência nas decisões sobre a cidade. A nova elite, mais interessada em ganhos capitalistas que na realização de uma cidade racionalmente ordenada, desestruturou os ideais de ordem e estética plantados por aqueles homens em

287 Esse importante engenheiro de Campinas era filho de Arthur Segurado, poeta autor de diversas obras literárias e educador reconhecido na cidade. Seus filhos também alcançaram reconhecimento nos círculos intelectuais de Campinas: Milton Duarte Segurado, como o avô, era poeta e membro da Academia Campinense de Letras; Lavoisier Segurado era veterinário de formação, e conhecido como cinófilo (sic); Rubens Segurado é engenheiro herdeiro do escritório do pai até os dias atuais. Ver FERREIRA, Caio de Souza. O Edifício Sant’Anna e a Gênese da Verticalização em Campinas. Arquitextos, nº 078.3. São Paulo, Portal Vitruvius, nov. 2006 www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq078/arq078_03.asp e Lavoisier Neger Segurado. Hemeroteca da Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU-UNICAMP. Hoche Neger Segurado era também membro do Rotary Club de Campinas.

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destaque no início da década de 1930. A partir dos registros da época, parece que na passagem da década de 1940 para a de 1950, a elite que tomou as rédeas do crescimento urbano superou aqueles valores que protegiam a cidade dos desmandos do capital especulativo, e conservou aqueles que, por sua vez sustentavam a convicção sobre o tipo de campineiro ao qual pertencia a cidade.288 Como forma de reação é possível notar alguns esforços conservadores que os elementos pertencentes à fração de elite hegemônica durante a década de 1930 persistiram em realizar à medida que foram ultrapassados por outros interesses. Como lugar de produção simbólica, a fundação da Academia Campinense de Letras em 1956 é talvez o último empreendimento sustentado pelo conservadorismo clássico campineiro.

Em 1976, o professor Francisco Galvão de Castro, farmacêutico de formação, titular da cadeira de latim do Colégio Cultuo à Ciência, ligado ao CCLA, publicou pela Academia Campinense o livro Roteiro do Progresso Autêntico.289 Admirador do Integralismo e de Oliveira Vianna, patrono da cadeira por ele ocupada, o acadêmico fez nessa obra uma análise dos tempos modernos, inspirado no lema inscrito no brasão da cidade de Campinas, labore, virtute, civitas floret (Pelo trabalho, pela virtude, a comunidade urbana prospera),290 o qual, para ele, sintetiza o roteiro para o progresso autêntico. Galvão de Castro desenvolve sua argumentação de modo a propor que a humanidade deve sim buscar o progresso, mas sem perder de vista os valores fundamentais que estão no trabalho na virtude e no ensinamento de Cristo. Sua preocupação maior – sinal da época e da posição por ele ocupada – nessa obra é advertir contra os perigos do marxismo, ideologia que solapa o indivíduo em um coletivismo desastroso, sendo também critico da burguesia que em sua busca por riqueza e luxo, desvirtua o sentido sagrado da vida humana. Certamente não correspondia aos ideais de cidade e sociabilidade consolidados no modo de ver de Francisco Galvão de Castro, a cidade como ia crescendo

288 Certamente que guardadas as devidas proporções, uma reflexão teórica interessante para abordar esta proposição explicativa aparece na noção de “cidade para além do bem e do mal”, a qual remonta ao urbanismo nazista de Spangler, capaz de sintetizar os aspectos mais superficiais do neoarcaísmo aos elementos urbanos mais desenraizadores. SCHORSKE, Pensando com a história, São Paulo, Companhia das Letas, 2000, p. 70-72

289 ACADÊMIA CAMPINENSE DE LETRAS, Antologia: Obra comemorativa do décimo aniversário da

Academia Campinense de Letras. Campinas, Komedi, 1966

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de modo acentuadamente acelerado, produzindo riqueza, pobreza, diversidade e desordem. Aflito com o que observava na nova fisionomia da cidade, é que o professor clamava que Campinas, retornando aos dizeres que são seu lema, cuidasse para não se tornar uma nova Roma291.

O prefaciador do livro Roteiro do Progresso Autêntico, Lycurgo de Castro Santos Filho, também membro da ACL, como conclusão de seu livro Campinas (Evolução

Histórica), de 1969 indica também os problemas que a urbanização trazia a Campinas. Este

historiador, médico de profissão, menos fatalista que Francisco Galvão de Castro, dá um testemunho no qual há, na verdade, a percepção das ambiguidades de se viver em uma grande cidade:

Derrubam-se quarteirões, alargam-se, estendem-se e afastam-se as vias públicas, abrem-se avenidas, formam-se novos bairros residenciais, multiplicam-se as canalizações de águas e esgotos, ampliam-se as redes telefônica e elétrica, passando a zona central a ser feericamente iluminada, enquanto torres metálicas de rádio e televisão modificam o aspecto, o panorama urbano. Em crescimento vertical, cobre-se o centro citadino de edifícios de escritórios e apartamentos, e a população passa a viver, embora em menor escala, a mesma agitada existência das metrópoles, onde ao lado das comodidades e das vantagens da civilização, surgem os graves e enervantes problemas derivados da condensação, do superpovoamento, da saturação do tráfego e da insuficiência de condução pública [...].

Sobre essa cidade que se ia tornando, na trilha do desenvolvimento industrial e trespassada por discursos de progresso e modernidade que direcionavam as tensões em jogo, é preciso ainda refletir sobre os usos dos espaços, sobretudo no que diz respeito à circulação das classes sociais. Em 23 de Agosto de 1945, o compositor Dorival Caymmi, acompanhado por Jorge Amado, esteve em Campinas.292 As considerações feitas pelo famoso observador da vida urbana Julio Mariano podem trazer indícios importantes para que se compreenda as disputas entre classes e frações de classes, expressas no campo das “questões de gosto”, dos estilos de vida e das formas de exclusão objetiva e simbólica, no que diz respeito às possibilidades de fruição cultural. O evento realizou-se na ocasião do

291 Idem. p. 119

292 Palmeiras Ano VII nº 66 Agosto de 1945, p. 35. Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU- UNICAMP.

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sétimo aniversário da Revista Palmeiras, sendo que, diferentemente de Jorge Amado, “quase um íntimo nosso, tantas vezes aqui tem vindo”, Dorival Caymmi esteve pela primeira vez em Campinas, cidade que não conhecia, a não ser pelo nome, “pela fama de sua arte (cidade de Carlos Gomes), de sua cultura, etc., etc.”. O incômodo de Julio Mariano ao registrar o acontecimento está no fato de que o espetáculo tenha acontecido no “granfino Teatro Municipal”, a preços não populares, de modo que apenas pessoas com algumas posses é que poderiam participar, enquanto que que a outra parte de Campinas, “a do povo meúdo, a que idolatra no Dorival Caymmi a simplicidade”, estava excluída. Julio Mariano continua sua crítica na direção das classes altas, que mesmo podendo pagar para ver a apresentação, não compareceram: “Uma parte de Campinas, aquela que em arte ainda usa colarinho alto e de ponta virada, que torce o nariz quando ouve falar em violão, desde que não seja nas mãos de uma fulaninha qualquer declamadora de versos alheios, essa não deu o ar de sua graça e nem podia mesmo dar.” Com esse comentário o cronista evidencia a existência de uma conhecida arrogância, de uma atitude esnobe, notadamente própria à alta elite campineira. A figura da “fulaninha qualquer” que declama versos alheios indica um tipo de sociabilidade, que acontecia em residências ou salões frequentados por grupos restritos.

No mais, Julio Mariano destaca a natureza do preconceito cultural que se combina ao “colarinho alto de ponta virada” quando se ouve falar de Dorival Caymmi : “O que canta ao violão? O que compõe umas músicas parecidas com samba? Não era para o colarinho alto de ponta virada”. Enfim, Julio Mariano revela quem foi ao Teatro Municipal naquela noite, “Dúzia e meia de pessoas de seleção, seleção não em classe, mas em gosto, o que é menos comum.” Trata-se, certamente de indivíduos de classe média, provavelmente jornalistas como o próprio Julio Mariano. É possível também, dado que o cronista classifica o estilo como “música folclórica”, que o espetáculo tenha atraído a atenção de alguns membros do CCLA que à época já tinha o folclore como um de seus temas de discussão. Estão distinguidos no registro desse evento singular, portanto, para além da classe trabalhadora, pelo critério da definição de cultura legitima, e do gosto que cabe a cada tipo de posição social, dois estratos sociais em disputa.

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É importante notar que a questão das elites era de fato uma preocupação em pauta na época, sendo muitas vezes tratada a partir da ideia de que era tarefa de uma classe dominante a qualidade da cultura e o desenvolvimento da cidade ou do país. Em um texto publicado na mesma Revista Palmeiras pelo professor Luciano Prestes Perroni sobre “O Sentido Social da Biblioteca Publica”, está presente uma concepção de elite que pressupõe também considerações sobre o lugar da “massa” na civilização, uma vez que o debate encontra-se situado em termos de “formação do homem”.293 Para compreender com quais questões esse texto dialoga, é importante levar em conta o aumento da população operária pelo qual a cidade passou entre o fim da década de 1930 e o início da de 1940, daí em diante aumentando continuamente. Em 1939 a prefeitura realizou um cadastro no qual constava a existência de 74 cortiços, habitados por 586 famílias (2321 pessoas).294 Esses números foram levantados na época para darem subsídio a estudos a partir dos quais se pretendia resolver o problema das habitações operárias. Nos anos seguintes, até 1956, os relatórios mencionam questões relativas à instalação dos bairros operários. Essas resoluções traduzidas em estatística, é preciso compreender, indicam apenas o nível superficial do problema, ou seja, como lidar, do ponto de vista da gestão do espaço, com um contingente crescente de pessoas vivendo em condições de risco. Existem, contudo, mais que isso, questões de valores e elementos próprios a uma concepção particular de sociedade que orientam os termos das políticas sociais, no sentido, por exemplo, de que nos documentos oficiais da prefeitura a população de cortiço seja designada por referências a sua classe social, seu papel e o lugar que lhe cabe na cidade. As moradias que visam substituir os cortiços, nesse sentido, são chamadas de habitação operária, proletária, destinada às classes laboriosas, e assim por diante.

O texto mencionado anteriormente, sobre o papel social da biblioteca pública, está em diálogo com as concepções correntes a respeito da natureza da população pobre urbana, as quais orientam políticas sociais de habitação, e das prerrogativas que a elite tem em relação a sua formação. O autor do texto, Luciano Prestes Perroni, aborda o assunto considerando a “formação do homem” como “notadamente a formação do homem que seja

293 Palmeiras, 1938-1948, p. 20. Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU-UNICAMP.

294 Relatório dos Trabalhos Realizados pela Prefeitura de Campinas durante o exercício de 1939. Campinas, Livro Azul, 1941, p. 59. Arquivo Municipal de Campinas.

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ao mesmo tempo massa e escol.”295 Perroni tem em mente, ao argumentar dessa forma, a civilização e a hierarquia social: “é possível que o homem seja ao mesmo tempo servidor da aristocracia e tenha espírito de elite, pela meditação dos grandes problemas da vida.” Ou seja, o “espírito de elite” sem ser elite é uma ideia notável do ponto de vista do debate que a presente pesquisa deseja propor, sobre o sistema de valores que permite a sustentação do poder pela a ocultação de seus pressupostos objetivos. A formação do homem, “homem de qualquer credo, de qualquer classe”, cabe, então, segundo Perroni à biblioteca pública a partir do princípio da democratização da cultura, com proveito para a vida da cidade uma vez que “Campinas é uma cidade moderna [...]. Porém, é uma cidade provinciana em muitos aspectos.” Este complexo de provincianismo que insistentemente parece emperrar os ideais de modernidade, é o que se deseja superar pela formação do homem cabível à biblioteca. O “homem massa”, ao contrário do que acreditava o diretor da Biblioteca Pública de Campinas, Luciano Prestes Perroni, ao trocar o cortiço pela habitação operária e ao ter a sua disposição a biblioteca pública, continuará, no entanto, a ter sua própria cultura, frustrando o desejo de uma “socialização do homem, pela aculturação democrática do seu espírito e do seu coração.”296 O fundamento da segregação que contamina a própria elite, cuja vida se torna cada vez mais avessa à experiência, cada vez mais motivada por uma satisfação amortecida297 no conforto dos ambientes privatizados e monótonos, está na sua convicção de que é sua missão generalizar seu estilo de vida, gosto e boas maneiras – a despeito das diferenças materiais, que devem ser mantidas – à toda a sociedade.

Também é marca de um processo de longa duração pelo qual historicamente a burguesia pretendeu universalizar seus valores, instituições e estilo de vida, a imposição de consensos como condição indispensável da condução da opinião pública. Uma das preocupações fundamentais da Comissão de Melhoramentos Urbanos, nesse sentido, conforme foi proposto pelo vereador engenheiro Roberto Marinho Lutz, em sessão realizada em 13 de Abril de 1937, era que os membros da comissão fizessem constante

295 Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU-UNICAMP. Palmeiras, 1938-1948, p. 20. Negritos do autor.

296 Idem.

297 O amortecimento da sensibilidade na vida moderna é um fenômeno de longa duração na história da interação entre corpo cidade. Sobre isso ver Cf. SENNETT, Richard. Carne e pedra. O corpo e a cidade na

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propaganda do plano de urbanismo, “a fim de que a população acompanhe com simpatia e colabore com os poderes públicos para tornar realidade no mais breve prazo possível o embelezamento da cidade.”298

“Formar o homem” pressupõe a convicção de que tal homem está incompleto. A formação deve contar, além da função social da biblioteca pública, com uma orientação precisa: “Não basta o consulente ler; é preciso entender o seu feitio psicológico, para a (sic) que a leitura forme e não desajuste.” A racionalidade que está na base das soluções pensadas para a cidade, também visa formar o homem, incidindo sobre a vida particular das pessoas, a partir da autoridade da finalidade econômica e da cientificidade da estatística. Algumas prescrições, como um ato de regulação de divertimentos públicos promulgado em 1938, trazem em seus dizeres uma advertência a respeito do risco de prejuízo econômico juntamente com uma implicação moral mais explícita. Trata-se do artigo 29º do Ato 123 que determina o horário de funcionamento de estabelecimentos de diversão pública, no máximo até as 23 horas, quando suas atividades perturbarem o sossego dos prédios vizinhos, ou quando “contrariem a economia”, “induzindo os munícipes à dissipação em detrimento da família”.299 Certamente que este Ato expressa o valor da família, que estabelecido na longa duração, justifica quase que invocando uma lei sagrada a ideia de que os ganhos do trabalho honesto devem ser revertidos em seu sustento e não desperdiçados em jogo de azar. De todo modo, ao colocar em termos tão diretos tal determinação, o Estado assume seu papel de guardião dos valores fundamentais, inclusive definindo limites para a sociabilidade na cidade, dado que a circulação pelos espaços públicos depende em boa medida dos horários de funcionamento dos estabelecimentos, ainda mais aqueles cuja função é o lazer. Novamente é importante dizer que esse tipo de intervenção não é particularidade de Campinas. Colocar, então, em destaque circunstâncias relacionadas a um processo mais amplo do momento histórico nacional e da vida das cidades ocidentais, de modo geral, tem como objetivo motivar uma reflexão que permita desnaturalizar ou tornar