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CAPÍTULO II: A MODERNIDADE E A FABRICAÇÃO DA SOCIEDADE

2.2 ENCONTROS COTIDIANOS E EXCLUSÕES

A questão da convivência pública entre os sexos pode contribuir consideravelmente para uma discussão a respeito de alguns aspectos da sociabilidade, da

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circulação e, novamente, sobre o impacto de determinadas transformações na vida urbana, que os registros permitem entender como a vivência de uma modernidade que se fazia sentir concretamente.

Na revista Palmeiras de Outubro de 1943, o cronista Aragão Filho deixou um testemunho no qual comparava dois espaços de sociabilidade de grande movimentação, um de Campinas, outro de São Paulo: “A missa das onze horas da Igreja do Carmo tem muito da missa do meio dia da Igreja São Bento em São Paulo”,214 segundo o autor, espaços da elite, “essa gente sem preocupações que só se recolhe depois da ‘midnight’ e não abandona o leito antes do romper das dez.” Nesse trecho o cronista usa um termo em inglês, “midnight”, e logo adiante usará outros dois. A partir do conjunto das impressões suscitadas pela leitura da compilação de revistas Palmeiras, como também de alguns jornais da época, pode-se levantar a hipótese de que a difusão dos filmes americanos e o lugar do cinema como espaço de entretenimento e sociabilidade são responsáveis por estes estrangeirismos no vocabulário. A modernidade, sentida como introdução de hábitos, referenciais e modos de expressão novos, associa-se também a aspectos de culturas estrangeiras que começam a circular e a se difundir pela cidade.

É preciso dar atenção também à imagem que o autor faz da elite, para ele uma “gente sem preocupações”, que “não abandona o leito antes do romper das dez.” Aragão Filho, é crítico, portanto aos hábitos dessa elite e, estabelecendo distinção em relação a eles, explica que frequentava a missa das onze, não por ser “bonvivant” ou preguiçoso, mas para ver “uma certa blond”, “esbelta e pálida, dessa palidez que lembra a vida pura do claustro.” A cada passagem evidencia-se o quanto está dividido este homem que escreve sobre uma cena urbana particular, que a primeira vista coloca-se como um namorador que ia à missa atraído por uma “blond”, como as atrizes de Hollywood, para, logo em seguida revelar-se uma idealização absolutamente conservadora da mulher. Seu conservadorismo está presente mesmo na crítica à elite, também reveladora de um momento de consolidação de novos hábitos, na verdade ainda não totalmente aceitos e, portanto criticáveis. O problema com quem “só se recolhe depois da ‘midnight’”, está na desconfiança moral em relação àqueles

214 Palmeiras Ano IV nº 50 Outubro de 1943, p. 18. Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU- UNICAMP.

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que foram à missa das onze em razão de terem aproveitado uma vida noturna que apenas começava a ganhar existência considerável e, com isso, a gerar resistências.

Aragão Filho encerra seu relato expondo o momento em que se decepcionou com a “blond” quando um dia ela saiu mudada da missa devido ao uso de algum cosmético que a transformou em uma “morena provocante” de cabelos castanhos. Ao descrever essa mudança ele lamenta a perda da palidez que evocava a “pureza do claustro”, apontando que a mulher estava nesse dia, acompanhada por “um rapaz tipo sportman.”215 O emprego de mais essa palavra em inglês remete a um tipo bastante específico de papel masculino do cinema americano, notadamente um tipo esportivo ou de algum modo, atlético, que seduz as mulheres216 e, de um ponto de vista conservador, corrompe sua pureza.

Há ainda outras considerações importantes a serem colocadas a partir de um olhar sobre as mulheres e os lugares por elas ocupados na sociedade campineira na década de 1940. No que diz respeito especificamente ao núcleo formado pelos personagens principais do presente estudo, em um recorte de jornal de 15 de Novembro de 1976, pode- se encontrar o seguinte título: “Sociedade das senhoras rotarianas de Campinas”.217 Trata-se de uma matéria a respeito de quando foi fundada, em 1940, “[...] uma sociedade de senhoras com o objetivo de colaborar com o Rotary Club, na parte beneficente.” Foi realizado o primeiro encontro na casa de D. Maura de Vasconcelos Lobo, em que estavam presentes como membros fundadoras, Elza G. Penteado, Silvia de Siqueira Stevenson, Ada

215 No final do século XIX Antoine Daniel Souquières fundou, em São Paulo, o restaurante – depois Grand

Hotel – Rotisserie Sportsman. “O nome do restaurante trazia em si uma mistura de línguas estrangeiras: a

referência à célebre gastronomia francesa, em sua especialidade de carnes cozidas a seco, em fogo vivo – os

rôtis –, casava-se com a evocação do homem inglês de elite, praticante dos esportes da moda, o sportsman.”

Nota-se a natureza do termo “sportsman”, que se associa a uma modernidade de hábitos estrangeiros, além do mais que Souquières, segundo Heloísa Barbuy, vinha de Buenos Aires, cidade mais europeizada que São Paulo à época, “e os profissionais que lá atuavam traziam agora um grau de refinamento cosmopolita que a cidade cá desconhecia.” BARBUY, Heloísa. A cidade-exposição: comércio e cosmopolitismo em São Paulo,

1860-1914, São Paulo, Edusp, 2006, p. 107

216 Na Palmeiras no Cine Voga, após uma matéria sobre a disputa do Oscar de 1941, há uma citação de Carmen Miranda que contribui para a difusão de um novo tipo de homem cujos atributos podem acrescentar- se ao que é possível entender como “sportman”: “Os homens americanos são, maravilhosos! Tão grandes e tão fortes mas sempre tão delicados com a gente!” Palmeiras no Cine Voga, Março de 1941, Ano II nº 25, p. 7. Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU-UNICAMP

217 Sociedade das senhoras rotarianas de Campinas, Correio Popular, Campinas, 15 de Dezembro. 1976. Hemeroteca da Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU-UNICAMP.

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Stevenson Braga, Carmela de Vita Godoy, Sara de Castro Mendes. Essas mulheres – ligadas aos personagens principais, como se pode ver por seus sobrenomes – estavam engajadas em causas beneficentes, com destaque para a manutenção do berçário da Maternidade de Campinas, o qual fora também fundado por elas. Este empreendimento foi possível graças a uma mobilização que propiciou o recolhimento de donativos e a realização de festas, de modo que o berçário foi mantido “à custo do generoso povo campineiro”. Tem-se neste caso, portanto, uma associação entre mulheres pertencentes a famílias atuantes na vida pública de Campinas, que ao se dedicarem à realização de benfeitorias para a cidade, criaram espaços de sociabilidade e encontro, tais como essas festas em que as pessoas compareciam dispostas a oferecer doações. Existia também, certamente, uma sociabilidade estabelecida entre elas, a qual, pelo menos em algum nível, ao que os registros permitem concluir, era pautada pelas atividades ligadas ao Rotary: “Em cada reunião, uma sócia escolhida pela presidente faria a leitura, a seu gosto, de um trecho de literatura rotária.” A sociedade se reunia quinzenalmente na casa de uma das associadas, onde elas confeccionavam enxovais para serem oferecidos ao berçário na semana da criança em Outubro. Nessas reuniões em que era servido chá, a imagem destas senhoras respeitáveis que bordavam em torno da leitura rotária, evoca o tradicional lugar feminino reservado ao espaço da casa e relacionado à maternidade, enquanto que seus maridos dedicavam-se às questões da cidade. Ainda nestes registros consultados na Hemeroteca do Centro de Memória da Unicamp, está presente uma referência que reforça as conclusões nesta direção. Trata-se de uma mudança no estatuto desta sociedade:

Recebeu a sociedade quando fundada, o nome de ‘Sociedade das Sras. Rotarianas de Campinas’, nome este que posteriormente seria mudado para ‘Sociedade das Senhoras de Rotarianos de Campinas’, em vista de uma circular recebida do Rotary Internacional, em 1951, declarando que não havia Rotary Feminino, mas que as senhoras de rotarianos tinham o direito de organizar uma sociedade própria.

Para além da evidente enunciação da subordinação feminina aos maridos rotarianos, que coloca sua organização associada ao Rotary Club como possível, mas de segunda classe, uma especificidade da associação feminina, mencionada para ilustrar e justificar a diferença, sugere a existência de uma limitação das atividades no grupo,

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definida por situações domésticas. Trata-se de uma cláusula de desligamento que se aplicava à organização principal, masculina, no caso de quatro ausências às reuniões, que não deveria vigorar também para as senhoras de rotarianos: “Verificou-se posteriormente que este parágrafo, inspirado em idêntico artigo dos Rotary Clubes, não tinha razão de ser, pois se tratava de uma sociedade autônoma constituída de senhoras, mães de família e sujeitas a impedimentos domésticos de várias espécies.” Esta especificidade que aparece quase como uma concessão às mulheres, pode ser entendida, na verdade, como uma extensão das atribuições domésticas femininas às suas atividades exteriores ao espaço do lar, de modo que o “impedimento doméstico”, no limite, pode ser um impedimento colocado pelo marido, motivado por uma razão qualquer.

Ainda sobre o conservadorismo no que diz respeito ao papel da mulher, um anúncio da Escola Profissional Bento Quirino, publicado em Setembro de 1938, diz o seguinte:

As alunas saem de lá como perfeitas donas de casa, pois aprendem desde lavar roupa até o preparo da mamadeira e aplicação de injeções, e perfeitas artistas nas demais instruções referentes a química-alimentar, economia doméstica e puericultura, cujas seções existem montadas com perfeição e modernismo naquele estabelecimento.218

Para além das atividades básicas da “dona de casa”, as mulheres formadas na Escola Profissional Bento Quirino contavam com uma especialização altamente qualificada – química-alimentar, economia doméstica e puericultura – para desempenharem as funções do lar. Não se pode deixar de notar que essas novidades, a partir das quais se sofistica práticas nas quais se apoia a manutenção dos papeis tradicionais de gênero que relegam a mulher ao espaço privado da casa, são qualificadas como “modernismo”, cujo uso banalizado tendeu ao esvaziamento do significado histórico da palavra, tornando-a um adjetivo, aliás, nem sempre positivo.

218 Palmeiras Ano I nº 2 Setembro de 1938, p. 28-29. Biblioteca José Roberto do Amaral Lapa/ CMU- UNICAMP.

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