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As emoções: gestão psiquiátrica por meio dos instintos e

gestão psiquiátrica por meio dos instintos

e emergência do homo psychologicus

A EMERGÊNCIA DAS EMOÇÕES EM MEIO À PSICOLOGIA FÍSICA

Thomas Dixon afirma em seu livro From Passions to Emotions que (2003, p. 98) “em torno de 1850 a categoria „emoções‟ (emotions) havia subsumido „paixões‟ (passions), „afetos‟ (affections) e „sentimentos‟ (sentiments) no vocabulário da maioria dos teóricos psicológicos de língua inglesa. Ele havia se tornado o mais popular termo teórico padrão para fenômenos como esperança, medo, amor, raiva, ciúmes e uma larga variedade de outros”. A presença do conceito de emoções já pode ser notada desde os textos de Hume e Adam Smith, mas ele ainda não emergia nesses casos como uma categoria teórica autônoma, sendo amplamente utilizado como sinônimo de paixões, afetos e, como consequência de sua produção pelo mecanismo da simpatia, também de sentimentos (Dixon, 2003, p. 104-109; cf., por exemplo, Hume, 2001 e Smith, 1999). Foi em 1820 que o termo emoções assumiu autonomia teórica, convertendo-se em um conceito.

A emergência do conceito de emoções nos textos de Thomas Brown

Com a publicação dos textos póstumos do doutor em medicina e professor de filosofia moral na Universidade de Edimburgo chamado Thomas Brown que a

diferenciação do conceito se iniciou (Dixon, 2003, p. 109; Brown, 2003). Seu trabalho Lectures on the Philosophy of the Human Mind foi o único trabalho relevante, na primeira metade do século XIX, a introduzir nos meios acadêmicos e literários o termo emoções como uma categoria maior da Psicologia. Esse trabalho que obteve significativo sucesso na época, passando por 20 edições, enquadrou-se no âmbito de uma ciência da mente que procura explicações por meio de uma analogia com as ciências da natureza, como a física e a química. Nesse sentido, pouco se diferia das teorias das paixões do século XVIII, como, por exemplo, a de Hume, com a qual compartilha muitas concepções (cf. Dixon, 2003, p. 110, 111 e 120). Dixon resume a concepção de „ciência mental‟ de Brown da seguinte maneira:

Brown denominava sua filosofia mental variadamente como „fisiologia da mente‟, „química mental‟, „ciência mental‟, „física intelectual‟ e por vezes „investigação física da mente‟. No entanto, a „ciência mental‟ de Brown [...] era uma disciplina puramente mental e introspectiva. Era uma ciência, como a química ou a fisiologia, pelo fato de que analisava o todo em partes, classificava essas partes e descrevia a dinâmica de suas interações. Mas não era uma ciência física Ŕ não tinha nada a dizer com química ou fisiologia tout court, simplesmente analisava e classificava o fenômeno mental enquanto fenômeno mental. [...] Era preciso colocar os „sentimentos‟ [feelings] no lugar dos átomos, e o mental no lugar da química „material‟. A ciência mental de Brown buscava descobrir as „leis naturais do pensamento e da emoção‟. Emoções conectadas, juntamente com sensações e pensamentos, em cadeias de causa e efeito inspiradas na física de Newton e submetidas a análises a partir do modelo da nova ciência natural da química, substituindo as paixões e os afetos de uma alma cristã clássica (Dixon, 2003, p. 118)

A busca do modelo da química, com o qual Brown estava profundamente impressionado, definiu um procedimento no campo da filosofia mental. Segundo o doutor em medicina, a metodologia científica mental devia ser dividida em duas tarefas: primeiro, decompor analiticamente os estados mentais em seus componentes („química mental‟) e, segundo, descobrir as leis de sucessão dos estados mentais („física mental‟), o que Brown chamava de „leis de sugestão‟. Baseando-se nessa concepção inspirada nas ciências naturais, Brown aproximava-se da visão de Hume de que não há uma mente ontológica, com suas faculdades e poderes, mas apenas uma simples sucessão de estados [states], impressões [feelings] ou afetos [affections] mentais (termos que utiliza como sinônimos). A novidade de Brown encontrava-se na forma como ele classificava os estados mentais, tendo em vista que ele rompeu com os esquemas classificatórios prévios. Diferentemente da divisão clássica endossada pelos teólogos cristãos entre

entendimento [understanding] e vontade [will], ele propôs uma divisão dos fenômenos mentais entre sensações [sensations], pensamentos [thoughts] e emoções [emotions]. De fato, Brown inicialmente reduziu os estados da mente em duas classes, conforme as causas ou antecedentes imediatos das impressões [feelings] fossem mentais ou materiais. As causas dos afetos [affections] externos (sensações) eram objetos materiais agindo sobre os órgãos sensoriais, e as causas dos afetos internos, impressões mentais [mental feelings]. Os afetos internos se dividiam em estados intelectuais da mente (ou pensamentos) e emoções. E as emoções, por sua vez, entre retrospectivas, imediatas e prospectivas.

As emoções para Brown eram, pois, ontologicamente, impressões [feelings] básicas trazidas por pensamentos e sensações precedentes na forma de leis. Por isso, a categoria de emoções seria, por definição, uma categoria passiva, ao contrário das antigas paixões. Além disso, tratava-se de um estado não intelectual, diferentemente das faculdades da mente e também do cálculo das paixões ou do julgamento imediato dos sentimentos morais. Para Brown, as emoções eram meras impressões [mere feelings], estados passivos, que contrastavam com os julgamentos intelectuais ativos Ŕ invertendo, assim, a dicotomia tradicional, na qual os movimentos da vontade (incluídos aí os desejos, os apetites, os afetos e as paixões) são ativos, e o intelecto é o recipiente passivo de impressões sensoriais [sense impressions]. No entanto, ainda que as emoções fossem estados mentais passivos, eram elas que desencadeavam as ações, e não os julgamentos racionais ativos (cf. Dixon, 2003, p. 124-125). A concepção de Brown de que as emoções são passivas, não-cognitivas e passíveis de desencadear ações foi logo convertida por seus leitores, como pelo escocês Thomas Chalmers, na década de 1830, em uma natureza involuntária e automática das emoções, independente do controle de nossa vontade. Tal noção foi explicada tendo como fundamento uma linguagem que identificava as leis de encadeamento dos estados mentais com um determinismo necessário das emoções, em analogia à necessidade das sensações (como da visão de uma cor) ou dos apetites (como da fome) em relação ao corpo (Dixon, 2003, p. 131- 133).

A despeito da definição implícita das emoções que Brown ofereceu, como sendo “impressões [feelings] não-cognitivas despertadas na forma de leis a partir de pensamentos e sensações precedentes” (Brown apud Dixon, 2003, p. 126), o doutor em medicina afirmou não prover uma definição clara do que sejam as emoções. “O sentido exato do termo emoção [...] é difícil de estabelecer na forma de quaisquer palavras”

(Brown apud Dixon, 2003, p. 125). Brown recorreu a um entendimento de senso comum para que fosse compreendido ou, na falta deste, apelou para a enumeração da “peculiar vividez de sentimentos [feelings]” e para a negação do termo emoção para as sensações primárias, como o tato ou o olfato. Segundo Dixon (2003, p. 126), “o problema da natureza não explicável do rótulo „emoção‟ tem sido um problema perene desde Brown”. Em virtude dessa falta de definição precisa, tal rótulo incluiu uma inumerável variedade de diferentes sentimentos [feelings] sob seu guarda-chuva, subsumindo as antigas categorias de apetites, paixões, desejos, afetos e sentimentos [sentiments], além de uma multidão de movimentos individuais ou sentimentos [feelings] que advinham à cabeça de cada um. Desse modo, “a falta de definição do termo emoções permanece[u] uma característica central e problemática do conceito desde o texto de Brown” (Dixon, 2003, p. 126).

A apropriação das emoções de Thomas Brown pela psicologia física

A concepção de Brown a respeito das emoções permitiria uma apropriação do conceito por parte da nascente psicologia física e da biologia evolucionista na segunda metade do século XIX. A ideia das emoções como passivas, não cognitivas, desencadeadoras de ações e involuntárias passou a ser explicada não mais por uma analogia do método das ciências físicas aplicado à mente enquanto mente (observação, indução, análise e classificação dos estados mentais), mas por uma nova prática de uso dos métodos e resultados das ciências físicas per se (especialmente a biologia evolucionista e a neurofisiologia) como a base da compreensão da mente. Manteve-se a recusa de compreender a vontade como algo substancial ou imaterial que existiria independentemente dos seus estados mentais, reduzindo-a à lei da sequência ou sucessão de tais estados. Porém, a lei que regia os estados mentais, especialmente as emoções, foi buscada na materialidade do sistema nervoso, na história natural, com base nas hipóteses evolucionistas, ou na combinação de ambas. O discurso das “teorias físicas das emoções estará replet[o] de „cérebros‟, „nervos‟, „correntes nervosas‟, „músculos‟, „glândulas‟, „vísceras‟, „processos orgânicos‟” (Dixon, 2003, p.140). Apoiando-se nessa explicação fisiológica e evolucionista das emoções, procurou-se fazer uma ciência do comportamento humano, na medida em que a conduta era vista como resultado dessas emoções organicamente desencadeadas (quer como reflexos fisiológicos, quer como mecanismos de sobrevivência animal herdados). Em outros

termos, a própria conduta humana seria naturalizada, pois ela não estava mais associada a uma vontade livre, mas, às leis fisiológicas e evolucionistas de produção das emoções (idem, p. 138-141).

Tal visão científica adotou uma ontologia caracterizada por um monismo de aspecto dual, o que significa que existia uma realidade desconhecida que perpassava tanto os fenômenos físicos quanto mentais Ŕ realidade que a psiquiatria e a psicologia designaram no mesmo período pelo conceito de instinto. Cada evento era concebido como tendo dois lados: um físico e objetivo, e outro, mental e subjetivo. Contudo, não se propunha a reduzir a mente a forças nervosas, mas pensar que os sentimentos mentais [mental feelings] e processos nervosos físicos eram dois lados da mesma moeda. Segundo Herbert Spencer (apud Dixon, 2003, p. 143), as emoções eram “o aspecto subjetivo de mudanças nervosas objetivas”. Não se tratava de afirmar, então, que as emoções fossem o produto ou propriedades das mudanças nervosas nem que elas fossem as mudanças nervosas, mas o outro aspecto ou a outra face delas. A despeito de tal visão científica de um monismo de duplo aspecto, na prática, autores como Herbert Spencer e Alexander Bain ofereceram uma explicação baseada em uma filosofia mais física e reducionista. Assim como Charles Darwin, deram um lugar privilegiado em seus trabalhos de psicologia sobre as emoções a fatos sobre o corpo (sobretudo em relação aos nervos), animais inferiores e a indivíduos mais próximos de um estado “primitivo” (crianças, “selvagens” e loucos). Conferiram atenção especial à dependência dos processos mentais dos órgãos corporais e acreditaram que todos os sentimentos [feelings], centrais (emoções) ou periféricos (sensações), seriam concomitantes de um distúrbio nervoso e resultado de uma descarga nervosa. Nessa perspectiva, as emoções, além de seu aspecto subjetivo, eram também analisadas com base em suas expressões físicas, em seus sinais exteriores objetivamente observáveis, como ficou patente nos procedimentos de Bain, Spencer e Darwin. Ou seja, a análise das emoções podia ser metodologicamente realizada não apenas pela introspecção, mas também pela observação de seus correlatos fisiológicos e comportamentais (Dixon, 2003, p. 154).

Desse modo, a despeito de professarem um monismo de duplo aspecto, tais autores privilegiaram assimetricamente o corpo, beirando tornarem-se epifenomenalistas tácitos. A doutrina do epifenomenalismo, da qual Thomas Huxley era o mais famoso expoente no período, defende que a experiência consciente é um produto impotente da atividade neural e que a mente é um puro efeito. A aplicação da visão de mundo epifenomenalista às emoções está implícita nas abordagens de Bain, Spencer e

Darwin, considerando-se sub-repticiamente, na sua metodologia e linguagem, que o caráter real das emoções se situa nos níveis fisiológicos e neurológicos. A implicação de seus textos é a de que as emoções são o lado mental do que é a atividade real e objetiva do sistema nervoso central (Dixon, 2003, p. 142-143)

Com essa visão assimétrica em seu monismo dual, a mente e as emoções se tornariam passivas, enquanto o corpo seria o elemento ativo. No caso das emoções, a atividade espontânea do sistema nervoso central causaria as impressões mentais (passivas). Se os autores tivessem aderido de fato ao monismo dual que proferiam, a atividade do sistema nervoso central presumiria um lado mental, e a mente seria tão ativa quanto o corpo Ŕ o que não ocorreu (Dixon, 2003, p. 144-145).

Assim como os pensadores fisiológicos e evolucionistas estavam comprometidos com a unidade ontológica do corpo e da mente, eles também advogavam a unidade do reino animal, aí incluído o homem. O debate na época vitoriana a respeito do lugar do homem na natureza focalizava os traços físicos e mentais. Por outro lado, a discussão a respeito da anatomia do cérebro de homens e macacos, travada entre Richard Owen e Thomas Huxley, assim como a respeito da mente humana e animal pretendiam definir a continuidade ou ruptura entre uns e outros. Darwin, por exemplo, era extremamente liberal na sua atribuição de emoções aos animais. Além de descrever expressões e atitudes emocionais em diversas espécies, chegava mesmo a pensar que algumas delas até mesmo expressassem melhor seus sentimentos do que os próprios homens, como no caso dos cães. Com base nesse procedimento antropomórfico e no estudo de emoções básicas nos humanos (focando suas pesquisas nas crianças, “selvagens” e loucos), Darwin produziu um cenário no qual homens e animais experienciariam e expressariam uma série de emoções muito similares. Conforme observa Thomas Dixon (2003, p. 146): “Um desejo secular e anti-dualista de acabar com a divisão entre homem e animal, mentalmente assim como fisicamente, produziu trabalhos de psicologia que tratavam as emoções de humanos e animais como virtualmente idênticas”.

O HOMO PSYCHOLOGICUS E A GESTÃO PSIQUIÁTRICA DAS EMOÇÕES

Os trabalhos produzidos por Herbert Spencer (The principles of psychology, de 1855), Alexander Bain (The senses and the intellect, de 1855, e The emotions and the will, de 1859) e Charles Darwin (The expression of the emotions in man and animals, de

1872) marcaram essa nova teoria das emoções cujos adeptos estão entre a primeira geração de pensadores a produzir livros e teorias que descrevem a si mesmos como trabalhos de “psicologia” e não mais como “ciência mental”, “filosofia da mente” ou “metafísica” (Dixon, 2003, p. 140). Com essa tendência, fica claro que as emoções, cuja primeira formulação com Thomas Brown se dera ainda no âmbito do sujeito de interesse, posteriormente se deslocaram para outra concepção antropológica, a do homo psychologicus, encontrando de fato aí um caráter produtivo do ponto de vista teórico e prático.

A relação entre transgressão da norma, instinto e emoções

Segundo Foucault, o sujeito psicológico (dado a um conhecimento possível, suscetível de um aprendizado, de formação e adestramento, lugar eventual de desvios patológicos e de intervenções normalizadoras) é apenas o avesso do processo de normalização que ocorreu ao longo do século XIX (1999b). A norma se constituiu pelo cruzamento, por meio de uma articulação ortogonal, de duas diferentes tecnologias de poder. Essas tecnologias, introduzidas com certa defasagem cronológica, posteriormente foram sobrepostas. Ainda que em ambos os casos se tratasse de tecnologias que atuavam sobre o corpo, elas não visavam ao mesmo aspecto dele, nem estavam no mesmo nível Ŕ o que permitia sua coexistência e articulação em alguns pontos (Foucault, 2000, p. 302).

A primeira tecnologia foi a disciplinar, que surgiu no século XVII e início do XVIII. Tratava-se de um conjunto de técnicas dispersas, mas que, muitas vezes, acabaram absorvidas em instituições (quartéis, oficinas, fábricas, hospitais, asilos, escolas, conventos, etc.). A disciplina “é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar [economicamente] úteis e [politicamente] dóceis ao mesmo tempo” (idem, p. 297). As técnicas disciplinares visavam aos corpos como organismos dotados de capacidades e agiam concentrando-os, distribuindo-os no espaço, ordenando-os no tempo e compondo-os no espaço-tempo de modo a obter uma força produtiva cujo efeito deveria ser superior à soma das forças elementares. Para obter os resultados que almejavam, lançaram mão de artifícios como a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. Com tal procedimento, o indivíduo se constituía como efeito e objeto de poder e como efeito e objeto de saber. O sujeito psicológico seria apenas o avesso desse

processo de sujeição, nascendo no ponto de encontro do poder com o corpo. Consequentemente, também aí as ciências “psis-” encontrariam seu lugar, especialmente a psicologia física e a psiquiatria do século XIX (Foucault, 1999b).

Tendo a norma como referência, a psiquiatria debruçou-se sobre os casos e individualizou-os, tratando sempre dos seus desvios. Centrou-se, assim, nos desviantes: nas crianças, nos doentes, nos loucos, nos delinquentes, nos “selvagens”. E, quando falava do homem são, normal e legalista, o fazia sempre perguntando o que ainda havia nele de criança, de loucura, de assassino, de “selvagem” e de animal. Mas, nesse discurso psiquiátrico, a inconformidade com a regra era transposta em características psicológicas do sujeito. O operador dessa transposição era o conceito de instinto, ou todas as outras noções que a ele se assemelhavam e se confundiam: impulso, pulsão, tendência, propensão, automatismo, etc. Através do instinto e da dinâmica autônoma, involuntária e incontrolável que lhe é própria, vai se procurar a causa e explicar os desvios. E, desse modo, a norma disciplinar foi sobreposta a uma norma fisipsicológica ou médica. As condutas e comportamentos passaram, então, a ser distribuídos em um campo de saúde ou de patologia. Como explica Foucault:

Quando a discrepância e o automatismo são mínimos, isto é, quando se tem uma conduta conforme e voluntária, tem-se, grosso modo, uma conduta sadia. Quando, ao contrário, a discrepância e o automatismo crescem (e não necessariamente, aliás, na mesma velocidade e com o mesmo grau), tem-se um estado de doença que é necessário situar precisamente, tanto em função dessa discrepância, como em função desse automatismo crescente (2002a, p. 200-201).

Com tal postura, a psiquiatria reiterava a técnica disciplinar, atravessava-a, transpunha-a, patologizava-a, reforçando seus efeitos. Ela reunia, através de seu saber e de sua ciência, por um lado, a desordem e o perigo social, e, por outro, a loucura e a doença mental, o discurso médico. E estabelecia um vínculo fundamental da psicopatologia com o crime ou com as pequenas infrações: onde há crime, há loucura, e onde há loucura, há o perigo do crime.

O conceito de instinto, bem como toda a temática que o acompanhou, não deve ser pensado, no entanto, como uma descoberta epistemológica da psiquiatria e muito menos como um avanço de racionalidade da ciência médica. Antes de a loucura ser diagnosticada por intermédio do duplo eixo da discrepância ou não em relação à norma

e do voluntário-involuntário, tinha por referência a relação com a verdade, um núcleo demencial, no qual o que a caracterizava fundamentalmente eram o delírio, as ilusões, as falsas crenças. Nessa constituição do discurso psiquiátrico do final do século XVIII e início do XIX, a noção de instinto não encontrava lugar. Não era sequer possível que fosse construída e discutida nos termos dos alienistas. De onde então surgiu o conceito de instinto, que viria a reorganizar completamente o campo psiquiátrico?

Foucault localizou sua emergência mediante uma engrenagem entre o mecanismo penal e o mecanismo psiquiátrico. No início do século XIX, existia todo um exercício jurídico de punir que se justificava pela sua ação sobre o interesse. A sanção aplicada ao delito devia ser calculada de modo que o benefício esperado não a superasse. Com a certeza de ser castigado, o criminoso não teria mais nem uma vantagem em transgredir a ordem. Para punir, tornou-se necessário descobrir a racionalidade subjacente ao crime, e só então infringir um castigo que serviria de exemplo para os demais que tivessem o mesmo interesse. A racionalidade do ato era o elemento fundamental deste exercício de punir. Por outro lado, no código penal, era afirmado que, excluindo os casos de demência, todos os sujeitos transgressores deveriam ser penalizados. Na mesma época, contudo, surgiram casos que criaram um embaraço ao sistema penal, justamente por se colocarem nos interstícios entre o código e o exercício de punir. Eram os crimes sem razão. Neles, o criminoso não delirava nem tinha ilusões, mas também não oferecia qualquer interesse racional que sustentasse o crime. Não se encontrava, portanto, a racionalidade do sujeito que permitiria o exercício de punir, mas era preciso fazê-lo, já que o código estabelecia que todo sujeito que não era demente devia ser castigado. Criou-se um impasse. A justiça, então, recorreu à psiquiatria.

A psiquiatria, por seu lado, queria se firmar como uma ciência do controle social. Para tanto, precisava demonstrar que, em razão de seu conhecimento médico, só ela poderia descobrir onde estaria o perigo que ninguém suspeitava. Só ela descobriria a ameaça discreta, escondida sob a máscara do cotidiano, mas que, de um golpe,

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