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Os sentimentos morais: reação conservadora e emergência do

reação conservadora e emergência do homo socialis

A temática dos sentimentos morais surgiu como uma reação da moral tradicional no interior do próprio discurso liberal, compondo posteriormente o discurso conservador10. Segundo Laval (2007, p. 175):

Na verdade, a velha consideração moral sobre a natureza dos desejos e das paixões não se dissipou em um dia. Sua inércia, que tinha por causa o desejo de recepção na opinião pública de um liberalismo que não se queria muito egoísta, ou a inconseqüência teórica que impede de ir até o fim de uma lógica, foi por longo tempo partilhada pelos economistas e filósofos da utilidade.

Não se tratava apenas de uma inércia, porém de uma reação conservadora moderna, assentada em um princípio tradicionalista, que se iniciou de forma esparsa, opondo-se a temas liberais clássicos, tanto em sua versão jurídico-revolucionária quanto utilitarista-radical (Mannheim, 1982, p. 109-115 e 121; Nisbet, 1987, p. 15-43). Embora o conservadorismo fosse quase sempre colocado como oposição à Revolução Francesa e à temática dos direitos naturais, ele, em larga medida, se opunha também às concepções filosóficas e reformistas do utilitarismo de Jeremy Bentham. Conforme afirma Nisbet (1987, p. 37-39):

Irritante para a grande maioria dos conservadores na Inglaterra foi, por fim, a filosofia utilitarista de Jeremy Bentham. Na agitada cena intelectual do fim do século XVIII e do XIX, poucas coisas suscitaram mais indignação nos Newmans e Disraelis da época do que o utilitarismo. Bentham, um dos espíritos mais poderosos de toda a história, tornara-se, na sua rejeição do Iluminismo, da Revolução Francesa e de todos os filósofos dos direitos naturais, muito mais revolucionário do

10 Além dos conservadores, é possível encontrar referências aos sentimentos morais nos chamados

“socialistas utópicos”, como em Robert Owen (cf. Pollard, 1965, p. 298-300), o que não deixa de revelar de algum modo as origens morais e religiosas ao menos de uma parcela desse tipo de pensamento. O sentimentalismo moral, no entanto, parece ter dado mais frutos no discurso conservador, pois no socialista foi amplamente descartado a partir dos trabalhos de Karl Marx, quando foi substituído pelos interesses de classe, dando origem a uma concepção de socialismo tida como científica (em oposição à utópica) pelo próprio autor.

que qualquer daqueles, com as suas teorias dos interesses individuais, de hedonismo e do maior bem para o maior número. A partir destas idéias, erigiu uma estrutura de autoridade centralizada, exata e perspicaz para funcionar na Inglaterra e em todas as outras partes do mundo, a qual era, pelo menos, equivalente ao que tinha sonhado conseguir Rousseau e depois Robespierre, por meio da revolução total. Quando necessário, a resposta infalível de Bentham era: „o passado não interessa‟. Tudo o que era bom provinha só da razão individual; da razão envolvida pela incessante busca humana do prazer e pela fuga da dor. O seu princípio „panóptico‟, que devia ser aplicado Ŕ insistia ele Ŕ nas escolas, hospitais, hospícios, até nas grandes fábricas, assim como nas prisões, era, como dizia Disraeli, „o fruto detestável do casamento entre a razão e a desumanidade‟. Só a razão, auxiliada pelo conhecimento do „felicific calculus’ pelo qual todos os homens, em toda a parte, vivem, lhe possibilitava Ŕ declarava Bentham Ŕ legislar para toda a Índia sem sair jamais do seu escritório. [...] o que não era respeitável, o que era horrível, na opinião dos conservadores, era o mundo de pesadelo da razão fria, da burocracia, da reforma permanente, da caridade desumana e da total ausência de emoção e sentimento, que Bentham preconizou.

Com essa oposição ao liberalismo, mas preservando alguns de seus princípios, conquanto os ressignificasse e os tornasse operatórios em outro sentido, é que o conservadorismo se constituiu.

O CONSERVADORISMO COMO ARTE DE GOVERNO

O conservadorismo, enquanto arte de governo, se derivou do próprio liberalismo e surgiu como uma reação e prolongamento interno a ele. Assim como a arte de governo liberal, ele também procurou limitar a ação governamental, tendo como uma de suas preocupações fundamentais os excessos de um poder público centralizador, arbitrário e despótico. Diversos autores conservadores salientaram “a necessidade imperiosa de o Estado político evitar tanto quanto possível intrometer-se nos assuntos econômicos, sociais e morais” e a prática política conservadora dos dois últimos séculos nos Estados Unidos e nos países europeus demonstrou “grande favoritismo pelo setor privado, pela família e pela comunidade local, pela economia e a propriedade privada, e por uma grande descentralização no governo, de modo a respeitar os direitos corporativos das unidades menores do Estado e da sociedade” (Nisbet, 1987, p. 71). Contudo, o princípio de limitação do governo que o conservadorismo adotou diferia do liberalismo, não sendo nem o dos direitos naturais dos indivíduos, característico da via jurídico- revolucionária, nem o da utilidade, característico da via radical utilitarista. Não se

tratava, portanto, nem de um princípio individual e externo à arte de governar, nem de um princípio interno à ação governamental. Referia-se a um novo princípio, externo ao Estado, mas que apresentava uma continuidade com ele, e que não era individual, mas coletivo. Tal princípio seria a sociedade civil historicamente constituída.

É bem verdade, como aponta Foucault, que o princípio da sociedade civil apareceu no âmbito mesmo da arte liberal de governo, particularmente com o texto de Adam Ferguson, Ensaio sobre a história da sociedade civil. Ela surgiu como um campo novo de referência que permitiu à arte de governo liberal manter sua unidade e sua generalidade sobre uma esfera de soberania dividida entre sujeitos de direito e sujeitos de interesse, e ainda guardava a especificidade da arte de governo diante de uma ciência econômica que se limitava a observar passivamente a necessidade intrínseca ao processo econômico. A sociedade civil, designada também como sociedade, nação ou social, designava um novo conjunto que englobava os sujeitos econômicos e os sujeitos de direito não simplesmente pela ligação ou combinação desses dois elementos, mas fazendo aparecer ainda uma série de outros elementos em relação aos quais as dimensões econômicas e jurídicas constituíam apenas aspectos parciais, integráveis na medida mesmo em que faziam parte de um conjunto complexo. Desse modo, a noção de sociedade civil era uma tentativa de resposta ao problema da soberania, constituindo um princípio racional que limitaria o governo respeitando as regras do direito e as leis da economia. O homo œconomicus era considerado um ponto abstrato, ideal e puramente econômico que povoava a realidade densa, plena e complexa da sociedade civil, sendo ambos os elementos indissociáveis e que compunham o conjunto da tecnologia da governamentalidade liberal (Foucault, 2004, p. 298-301).

Essa nova sociedade civil não era mais aquela do início do século XVIII, formada pelo contrato social e que continha uma estrutura jurídico-política, pois, a partir do surgimento da economia política e da governamentalidade dos processos e sujeitos econômicos na metade do século XVIII, a sociedade civil mudou e adquiriu novas características.

No texto fundamental de Adam Ferguson, ela apresenta quatro características fundamentais descritas por Foucault (2004, p. 302-311; ver também Dardot e Laval, 2009, p. 51-60). Primeiro, a sociedade civil é entendida como uma constante histórico- natural, isto é, ela é um dado primeiro e de tal modo recuado que, anterior a ele, nada se pode saber do que havia antes na história humana, tornando inútil a questão da não sociedade ou da pré-sociedade formada por indivíduos isolados e dispersos na natureza.

A história humana sempre existiu em grupos, e a sociedade é tão antiga quanto o indivíduo, não podendo existir um sem o outro. A natureza humana é sempre constituída historicamente, na medida em que o ser humano é um ser social. O próprio estado de natureza é um estado social, permanente e indispensável.

Segundo, a sociedade civil assegura uma síntese espontânea dos indivíduos. Ela não depende de contrato explícito, de união voluntária, de renúncia de direitos ou de constituição de soberania por um pacto de sujeição. Ela deriva, portanto, de uma reciprocidade entre o indivíduo e o todo, na qual a qualidade, o valor e a virtude de um indivíduo são tomados em relação ao todo, e o valor do todo se refere a cada um dos indivíduos. A felicidade de cada um depende da felicidade geral, e a geral se encontra em relação com a de cada um, sendo a síntese da sociedade civil a soma das satisfações individuais nos laços sociais. Se a sociedade civil não se constitui com base no contrato jurídico, tampouco ela se baseia nos laços econômicos de interesse, ainda que a mecânica de ligação social seja análoga. Os laços sociais na sociedade civil não se reduzem à busca da maximização do lucro, mesmo que o egoísmo possa vir a jogar o seu papel em seu interior. O conteúdo dos laços agora é outro: são os “interesses desinteressados”, os sentimentos, a simpatia, a benevolência, a compaixão, a repugnância pela infelicidade alheia, mas eventualmente o prazer que se toma da infelicidade de outros indivíduos dos quais se está apartado. Segundo Foucault, trata-se de um “interesse não egoísta, todo um jogo de interesses desinteressados mais amplos que o próprio egoísmo” (2004, p. 305). Além disso, ao contrário do mercado que é desterritorializado, podendo estender seus efeitos multiplicadores de lucro derivados da síntese espontânea dos egoísmos a toda a superfície do globo, a sociedade civil com seus laços de simpatia e benevolência contrapõe-se à repugnância e não adesão de outros grupos, constituindo-se como um conjunto limitado. A sociedade civil não compreende a humanidade em geral, ela se reduz a uma comunidade, constituindo-se em diferentes níveis como na família, na aldeia, na corporação e na nação. As relações econômicas encontram na sociedade civil seu veículo, introduzindo os laços de interesse em seu interior. Mas, ao fazê-lo, ela cria um princípio de dissolução dos próprios laços de sentimentos comunitários, ou seja, um princípio de dissolução da própria sociedade civil. Assim, quanto mais se caminha em direção a um estado econômico e a uma sociedade comercial, mais os laços comunitários da sociedade civil se desfazem e os indivíduos se encontram isolados.

Em terceiro lugar, a sociedade civil se caracteriza por ser uma matriz permanente do poder político. Assim como não há necessidade de um contrato social, também não há necessidade de um pacto de sujeição para constituir a soberania. A formação do poder também é espontânea, dada pelos laços de fato que ligam os indivíduos concretos e distintos entre si. A diferença dos indivíduos entre si traduz-se em diferentes papéis e tarefas assumidos na sociedade. As diferenças espontâneas imediatamente induzem à divisão do trabalho na produção, mas uma divisão do trabalho realizada em um processo no qual as decisões de conjunto são tomadas pelo grupo: uns dão sua opinião, outros dão ordens, uns refletem, outros obedecem. Assim, a decisão do grupo aparece como a decisão do grupo inteiro, mas ocorre por meio da ascendência consentida de uns sobre outros. A ênfase é colocada no fato de o poder real preceder o direito que o instaura, justifica, limita ou intensifica. O sistema de subordinação é anterior ao direito e ele é tão essencial aos homens quanto a própria sociedade.

Em quarto lugar, a sociedade civil se constitui como o motor da história. Havendo na sociedade forças espontâneas contrárias de associação (síntese espontânea e subordinação espontânea) e de dissociação (os interesses egoístas econômicos), busca- se um equilíbrio estável entre elas. Se o princípio de associação tende a criar uma ordem imóvel, produzindo na comunidade um equilíbrio funcional de conjunto, o egoísmo político e sobretudo o econômico geram um desequilíbrio igualmente espontâneo. Pensando nos laços econômicos de interesse, Foucault afirma que “o princípio de associação dissociativo é também um princípio de transformação histórica. Aquilo que faz a unidade do tecido social é, ao mesmo tempo, aquilo que faz o princípio da transformação histórica e do esgarçamento perpétuo do tecido social” (2004, p. 310). O interesse egoísta e o jogo econômico introduzema história na sociedade civil.

Os conservadores se apropriaram do conceito de sociedade civil, mas fizeram um uso estratégico dele de modo a voltá-lo contra a própria arte de governo liberal. De fato, o próprio conceito de sociedade civil de Ferguson já fazia diversas concessões à moral tradicional, como, por exemplo, a retomada da prioridade do todo (sociedade) sobre as partes (os indivíduos), a concepção dos laços sociais como laços de sentimentos morais e não de interesses, a crítica ao livre mercado como ameaça de dissolução da sociedade civil, a importância atribuída às instituições intermediárias (família, aldeia, corporações e nação) entre o indivíduo e o Estado para a coesão da comunidade, a ideia de que o sistema de subordinação era necessário aos homens e não resultado de uma deliberação contratual, e a busca de um equilíbrio entre as forças

espontâneas de coesão e as forças dissolventes, resultantes dos interesses econômicos. Os conservadores, pois, se apropriaram de todas essas características em seu discurso e ainda as reforçaram e acrescentaram outras, baseando-se em um princípio de inversão da arte de governo liberal: a identificação da sociedade civil com a sociedade medieval, constituindo a ordem feudal como modelo para fazer frente às pressões políticas e econômicas da modernidade (cf. Nisbet, 1987, p. 66 e 1981, p. 65).

Além disso, os conservadores substituíram a concepção de sociedade como uma engrenagem mecânica, segundo uma metáfora das ciências naturais, da física em particular, pela concepção de sociedade como um organismo, conforme uma metáfora das ciências da vida, especialmente da biologia. Nisbet (1981, p. 65-66) afirma que, para os conservadores

[a] sociedade [...] não é um agregado mecânico de partículas individuais sujeitas a quaisquer arranjos que passem pelas cabeças dos industriais e funcionários governamentais. Ela é uma entidade orgânica, com leis internas de desenvolvimento e com relações pessoais e institucionais infinitamente sutis. A sociedade não pode ser criada pela razão individual, mas ela pode ser enfraquecida por aqueles que não têm em mente sua verdadeira natureza, pois ela tem profundas raízes no passado, das quais o presente não pode escapar através da manipulação racional. A sociedade é, parafraseando as célebres palavras de [Edmund] Burke, uma associação dos mortos, dos vivos e dos não nascidos. Para os conservadores, especialmente na França, a realidade metafísica da sociedade, independentemente de todos os seres humanos individuais, era inquestionável.

Apoiando-se na identificação da sociedade com a ordem medieval e com a metáfora do organismo, os conservadores procuraram impedir a dissolução ou mesmo restaurar a ordem e as autoridades morais tradicionais. Todas as transformações sociais derivadas dos princípios abstratos gerais da arte de governo liberal na sua versão jurídico-revolucionária ou radical utilitarista eram consideradas prejudiciais, pois que afastavam artificial e tiranicamente a sociedade de sua longa história e tradição, de seu passado áureo de ordem e integração, autoridade e liberdade. Os conservadores procuraram, assim, frear a mudança, fosse ela revolucionária, como no caso da Revolução Francesa, fosse reformista, como no utilitarismo de Bentham e de seus seguidores. As transformações eram vistas como intromissões desastradas em uma ordem social que evoluíra durante séculos e que constituíra laços de interdependência sutis e quase imperceptíveis que ligavam organicamente os grupos sociais com suas

distintas funções. Aos princípios abstratos baseados na razão individual e nas concepções científicas exaltadas pelos liberais, os conservadores opunham um conhecimento prático fundamentado na experiência histórica e incorporado pelos indivíduos no seu saber-fazer cotidiano. Na defesa de Edmund Burke do “preconceito” contra o “racionalismo”, na distinção de William James entre um “conhecimento de” e um “conhecimento acerca” ou no de Michael Oakeshott entre um “conhecimento prático” e um “conhecimento da técnica”, a oposição ao racionalismo político deu-se pela crítica de uma forma de saber racional, lógica, objetivada, formalizada, abstrata, generalizante, prescritiva de regras, mediante outra concepção de saber assentada na experiência, nas revelações da vida, tornada integrante do caráter por meio de um processo de habituação, de uma transformação em predisposição generalizada ou instinto de conhecimento adquirido, e que assumia um caráter prático como execução de um saber inalienável do espírito e da personalidade de cada um. Declarando a limitação de uma forma geométrica de raciocínio, Burke propunha como indispensável para o progresso da humanidade uma educação baseada não apenas na lógica, mas também em um conhecimento fundando nos sentimentos, nas emoções e na longa experiência cristalizada no preconceito e na sua sabedoria intrínseca anterior ao intelecto (cf. Nisbet, 1987, p. 58-63). Os princípios abstratos do liberalismo, fossem os direitos naturais ou o princípio de utilidade, deveriam ser considerados ameaças, e o racionalismo político deles derivado deveria ser limitado para não romper as relações pessoais e institucionais sutis que compunham a sociedade e conduzi-la a uma desordem crescente.

Ao tomar a sociedade medieval como modelo, os conservadores se opunham não apenas aos princípios abstratos reformadores ou revolucionários do liberalismo, mas também ao princípio da liberdade de mercado, erigido pelos liberais em uma esfera de livre atuação dos indivíduos que perseguiam os seus interesses e cuja interação espontânea criaria uma harmonia desencadeadora do progresso histórico das sociedades humanas. Do ponto de vista de muitos conservadores, o livre comércio desencadearia forças econômicas e sociais que levariam à desordem social, a uma atomização dos indivíduos que, desligados dos vínculos morais, se perderiam nas suas próprias paixões ilimitadas. Era preciso, então, submeter a esfera econômica não ao Estado, mas a autoridades intermediárias (como a da família, da religião e das associações profissionais) que limitassem o egoísmo dos indivíduos, subjugassem suas paixões, controlassem suas vontades, submetendo-os a normas morais voltadas para o bem comum.

Ademais, na própria concepção de propriedade dos conservadores já estava implícita uma limitação do livre mercado pela família. A propriedade era tida como algo muito maior do que um acessório externo e inanimado para a satisfação das necessidades humanas, sendo considerada a própria condição da humanidade do homem. O vínculo da propriedade genuína com seu proprietário presumia “uma relação recíproca, particularmente vital”, na qual a propriedade “trazia consigo certos privilégios para o seu dono Ŕ por exemplo, proporcionava-lhe uma voz nas questões do Estado, o direito de caçar e de tornar-se membro de um júri. Assim, ela estava intimamente ligada à honra pessoal e, deste modo, em certo sentido, era inalienável” (Mannheim, 1982, p. 118-119). Relação recíproca, completamente intransferível, extensão mesmo dos membros do corpo humano, essa concepção de propriedade era inseparável da família e da posse da terra, ou ao menos, de uma propriedade sólida, tangível e duradoura. As leis da progenitura e do morgadio tornavam claro o caráter familiar da propriedade ao vincular a herança à linha genealógica, impedindo a sua dispersão derivada da posse incerta e transitória dos indivíduos. Além disso, o aspecto sólido, tangencial e visível da propriedade de coisas impossíveis de se esconder, a começar pelo próprio solo, opunha-se às formas débeis de propriedade contidas nas notas, nos títulos, nas obrigações e nos créditos bancários, ou seja, à fluidez e mobilidade da propriedade em dinheiro. A permanência da propriedade sólida e familiar criava, pois, um modo de vida que fazia com que os donos possuíssem interesses estáveis na sociedade, instilando o sentido do valor da ordem e da verdadeira liberdade, e ainda, um sentido de longo prazo na preservação da propriedade paternal, opondo o continuísmo da representação familiar à pura conveniência presente do egoísmo e do individualismo. O capitalismo e o livre mercado, ao substituírem esta concepção de propriedade pela de capital, esvaziaram-na de sentido, elidindo qualquer sentimento de permanência e pertencimento, produzindo os efeitos dilacerantes, destruidores e esmagadores do comércio e da indústria sobre os elos sociais históricos (Nibet, 1987, p. 95-115).

A família e os demais grupos sociais (a comunidade local, as corporações de

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