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Capítulo III – Enquadramento metodológico

3.3 A recolha de dados: acesso às representações

3.3.1 Fontes e procedimentos

3.3.1.2 As entrevistas

De acordo com Werner e Schoepfle (1987: 78), a entrevista enquanto técnica

permite ao investigador confrontar a sua percepção do “significado” atribuído pelos sujeitos aos acontecimentos com aquela que os próprios sujeitos exprimem (in Lessard-Hébert et al, 1990: 160). No campo das representações, em que laboramos, o desafio de captar o que está por detrás do discurso produzido durante as entrevistas é evidente, se atendermos ao facto de que o que é dito não é, muitas vezes, o que é dito, e por vezes tem o pesquisador que

actuar como mediador para o sujeito apreender sua própria situação de outro ângulo, tem de conduzir o outro de modo a ele a se voltar sobre si próprio; tem de o incitar a procurar relações e a organizá-las (Duarte, 2004: 220).

Esta técnica não só é útil e complementa as outras técnicas mas necessária quando se trata de recolher dados válidos sobre as crenças, as opiniões e as ideias dos sujeitos observados.

A literatura consultada inventaria várias tipologias de entrevistas, em função do modo como decorre a interacção pesquisador e pesquisados, dos papéis atribuídos, dos objectivos do pesquisador e dos resultados esperados. Yin analisa três tipos: a espontânea (open-ended interview), a

focada e o questionário (2005: 116-118). Outras designações são utilizadas por outros autores como entrevistas dirigidas, semi-dirigidas, estruturadas, semi-estruturadas, orientadas para a resposta, orientadas para a informação, etc.

Existe consenso entre os teóricos relativamente à importância que é atribuída às entrevistas no processo de recolha de dados. Yin considera-as uma das mais importantes fontes de informações em estudos de caso (2005: 116), alertando, no entanto, para a necessidade de conciliar o carácter fluido das questões que se colocam durante a sua realização com a consistência do trabalho de investigação. Para tal, o pesquisador deve manter clara a sua linha de investigação e investir em questões reais, adequadas ao protocolo do estudo.

Entendida mais como opção teórico-metodológica do que como uma simples técnica, a entrevista semi-estruturada tem ocupado as atenções dos pesquisadores das ciências sociais, que colocam questões muito pertinentes relacionadas com a necessidade de assegurar o necessário distanciamento do pesquisador ao efectuar trabalhos no terreno.

Duarte refere

problemas ligados à postura adoptada pelo pesquisador em situações de contacto, ao seu grau de familiaridade com o referencial teórico-metodológico adotado e, sobretudo, à leitura, interpretação e análise do material recolhido (construído) no trabalho de campo (2002: 147).

Reportam-nos esses problemas às reflexões feitas anteriormente relativamente às consequências decorrentes da proximidade e do envolvimento do pesquisador com o ambiente pesquisado e com os seus actores. Com efeito, durante a recolha de dados, a identificação subjectiva, inevitável quando os interlocutores compartilham o mesmo universo cultural – preocupações, gostos, crenças, opiniões - pode redundar em risco para o processo investigativo. Nesses casos, a realidade ou passa a ser vista pela óptica do interlocutor ou este corrobora o ponto de vista do investigador.

Yin (2005: 118) chama a atenção precisamente para este facto, ao discutir sobre as entrevistas focadas que objectivam a corroboração de factos por parte dos sujeitos, e recomenda um cuidado redobrado na elaboração das questões.

Velho (1986) assinala que, quando se opera num ambiente de pesquisa que nos é familiar, há que trabalhar a nossa própria subjectividade, isto é, ela precisa ser “incorporada ao processo de conhecimento desencadeado” (in Duarte, 2002: 148), o que não significa abrir mão do compromisso com a obtenção de um conhecimento mais ou menos objectivo, mas buscar as formas mais adequadas de lidar com o objecto de pesquisa.

Em qualquer projecto que envolva entrevistas não estruturadas, a relação entre o entrevistador e aqueles que são investigados é crucial. Com base nesse pressuposto, gera-se uma crença relativamente comum de que a empatia com o entrevistado é essencial para a realização de uma boa entrevista. Mas não é necessariamente assim. Segundo Romanelli (1998: 129), “a empatia não é fundamento da comunicação com o outro” (in Duarte, 2002: 220). O fundamental para ver o mundo do ponto de vista do entrevistado, para compreender a sua lógica e produzir conhecimento sobre a sua existência é elaborar, no plano teórico, modos de expressão que traduzam seu sistema simbólico (in Duarte, 2004: 220). Neste sentido, a entrevista não constitui apenas uma técnica de recolha de dados e informações, mas se institui como uma opção teórico-metodológica que se traduz num momento de troca em que o pesquisador

oferece ao seu interlocutor a oportunidade de reflectir sobre si mesmo, de refazer seu percurso biográfico, pensar sobre sua cultura, seus valores, a história e as marcas que constituem o grupo social ao qual pertence, as tradições de sua comunidade e de seu povo (Duarte, 2004: 220).

Yin explica que é preciso operar em simultâneo a dois níveis quando se realizam entrevistas no âmbito de estudos de caso: garantir a linha de

investigação ao mesmo tempo que se estabelece uma interacção informal, amigável com o sujeito (2005: 117).

De acordo com Burgess, fundamentais nas entrevistas não- estruturadas são as questões que se põem aos entrevistados. Spradley (1979) identificou três tipos principais, que são colocados em diferentes momentos da interacção: questões descritivas, em que o sujeito faz declarações acerca das suas actividades; questões estruturais que procuram determinar como é que os informantes organizam os seus conhecimentos; e, finalmente, questões de contraste que permitem aos informantes discutir os significados de situações e dar-lhes uma oportunidade para comparar situações e acontecimentos no seu mundo (in Burgess, 1997: 122). Nas entrevistas “open-ended”, de Yin, os sujeitos são chamados a comentar acontecimentos e factos, a propor soluções e apresentar o seu ponto de vista pessoal ou ainda a posicionar-se relativamente a dados obtidos através de outras fontes (2005).

Como vimos anteriormente, o campo das pesquisas sobre as RS, durante muito tempo dominado pelo grande poder do quantitativo e pelo grande peso da estrutura social, foi recentemente conquistado pelas perspectivas qualitativas, graças à influência cruzada da etnografia da comunicação e da etnometodologia. É, aliás, pela etnografia da comunicação que a noção de “situação de comunicação” emerge e ganha terreno, orientando-se em direcção às perspectivas ecológicas das actividades de linguagem. Billiez & Millet (2001: 40) justificam a necessidade de recurso aos parâmetros ligados às situações de comunicação como forma de recuperar as práticas de linguagem na sua essência ou as representações delas. Entendem a entrevista como um “evento discursivo”, por duas razões: é durante o processo interactivo que as representações se dão a conhecer e tomam diferentes formas, isto é, evoluem; é também durante esse processo que se esclarecem os significados das noções ligadas ao objecto das representações sociais.

No estudo em desenvolvimento, que se define como exploratório, a opção por esta fonte de evidências - as entrevistas semi-estruturadas - justifica-se plenamente. Ela foi privilegiada dentro do programa de recolha de dados, assumindo, por isso, uma função técnica essencial no presente trabalho. Foram realizadas no seguimento da aplicação dos inquéritos por questionário. Para sua concepção e elaboração, a autora mobilizou conhecimentos que possui do contexto da pesquisa e da própria problemática. Afirmamos que o argumento forte a favor dessa opção foi obter dos sujeitos identificados os discursos que constroem para dizer das suas práticas, das suas crenças, opiniões e valores sobre a língua cabo- verdiana e a língua portuguesa, em contacto. No nosso entendimento, e a prática demonstrou-o, nenhuma outra fonte permitiria, nas palavras de Duarte, essa “espécie de mergulho em profundidade” (2004: 215), que possibilita recuperar os indícios dos modos como cada um dos quinze sujeitos entrevistados percebe e significa a situação estudada, a revelação de passagens de suas histórias de vida, o seu posicionamento perante factos, episódios e atitudes, enfim, a compreender a lógica dos ditos e também dos não ditos e a (re) construir os significados das coisas, dos factos, das histórias.

Tomando a forma final de relatórios verbais, a maioria das entrevistas, sobretudo nos estudos de caso, trata questões humanas, sendo portanto vulneráveis a vários problemas, como referimos anteriormente. Duarte (2004) sustenta que a qualidade das pesquisas depende muito do pesquisador, da sua capacidade para aliar o teórico e o empírico em torno do objecto, do problema, da questão em análise.

No que diz respeito aos procedimentos, durante o decorrer das entrevistas, adoptámos a posição “compreensiva”, como forma de apoiar a reflexão do sujeito, mantendo-o engajado na palavra, partilhando o seu

testemunho, e participando objectivamente na construção da

representação, dentro dos limites impostos pela discrição e mantendo cada um o seu papel. Concebido como um instrumento dinâmico, a

entrevista compreensiva inscreve-se no prosseguimento da escuta cada vez mais atenta da pessoa que fala: o entrevistador sai da reserva que lhe era imposta pelos métodos tradicionais, engajando-se activamente nas suas questões, para que o entrevistado faça o mesmo. Do mesmo modo, retirámos de Billiez & Millet a caracterização do entrevistador “compreensivo”, que nem é neutro nem está ausente, mas tem uma presença muito mais que discreta, mais personalizada,

L’enquêteur qui reste sur la réserve empêche l’informateur de se livrer: ce n’ est que dans la mesure où lui-même s’ engagera que l’ autre à son tour pourra s’ engager et exprimer son savoir le plus profond. [ … ] L’enquêteur entre dans le monde de l’informateur, sans devenir un double de ce dernier (2001: 41).

O protocolo da entrevista explica o seu enquadramento dentro do processo da recolha de dados, como segundo momento desse processo, indica os procedimentos e explicita como objectivo: clarificar e aprofundar aspectos referidos no primeiro momento da recolha de dados.

O guião da entrevista (Anexo 3) consta de duas partes: na primeira, comum aos quinze sujeitos, procura-se, através de quatro perguntas abertas, obter dados sobre como os sujeitos vêem a situação linguística cabo-verdiana actual e futura; as implicações dessa situação na sua história de vida, na aprendizagem escolar e na sua acção como docentes; a segunda parte da entrevista é específica de cada sujeito, já que visa clarificar, desenvolver e aprofundar aspectos do questionário preenchido no primeiro momento, em função da natureza das respostas dadas por cada um dos sujeitos. Para além disso, tendo em conta que a amostra integrava sujeitos com LM diferentes, foi feita uma adaptação no guião, para espelhar essa diferença. Para além de proporcionar a reflexão sobre ideias, opiniões e noções relacionadas com o objecto de estudo, como bilinguismo e diglossia, contacto de línguas, transferência, norma, entre outras, as entrevistas permitiram nova imersão no mundo dos sujeitos, na retoma de episódios relatados no questionário, não com o objectivo de compreender os sujeitos em profundidade, mas sim de extrair, das suas

experiências, informações que ajudassem a compreender as suas representações das línguas cabo-verdiana e portuguesa, da natureza da relação que mantêm entre si, através do acesso aos sentidos que os próprios sujeitos atribuem aos acontecimentos narrados.

O guião serviu apenas para assegurar a linha temática acordada, não tendo havido a intenção expressa de orientar a entrevista pela sequência das questões nele contidas, embora em algumas entrevistas isso se tenha verificado, assim como noutras, a conversa ter-se-á desenvolvido de forma bastante “leve”, notando-se reformulações, adaptações no enunciado de algumas questões, em sintonia com as condições do contexto. Tratou-se, efectivamente, de “interrogar o discurso”, não somente porque ele é revelador, primeiro, das representações mas também porque é o lugar de expressão delas, tanto quanto as outras práticas sociais do sujeito.

As entrevistas foram realizadas no ISE, a maior parte, durante a segunda quinzena de Março de 2008. Tendo sido previamente acordada a duração de 20 a 30 minutos, algumas, por inexperiência da pesquisadora, ultrapassaram largamente esse tempo, chegando mesmo ao dobro do tempo. O prolongamento das entrevistas deveu-se também à dinâmica que a conversa ganhou, ao interesse que os temas foram avivando. Em consequência disso, as entrevistas transcritas ocupam mais de uma centena de páginas de texto dactilografado, em formato A4.

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