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Capítulo III – Enquadramento metodológico

3.2 Um estudo de caso incorporado

Feitas estas escolhas, houve que delimitar as fronteiras do estudo, isto é, eleger uma modalidade de investigação, em conformidade com a natureza da problemática, o teor das questões de partida assim como dos objectivos do estudo e seus resultados. Uma revisão bibliográfica quase exaustiva foi necessária e a opção recaiu sobre o estudo de caso, uma das estratégias de pesquisa em Ciências Sociais, preferida, segundo Yin,

quando se colocam questões do tipo “como” e por que”, quando o investigador tem pouco controle sobre os acontecimentos e quando o foco se encontra em fenómenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real (2005: 19).

Este figurino adapta-se de forma exemplar às características deste trabalho. Com efeito, e relembrando as questões de partida, pretendemos: i) analisar como formadores de professores do ISE representam a situação de contacto entre a língua cabo-verdiana e a língua portuguesa no

contexto linguístico cabo-verdiano; e ii) explicar como aqueles sujeitos avaliam tal situação em termos do processo de ensino da e em língua portuguesa. Para tal, orientamos o processo de pesquisa a partir de duas questões: i) Quais as representações que formadores de Língua Portuguesa têm da situação de contacto linguístico cabo-verdiano e de cada uma das línguas em presença? ii) Como e em que medida tais representações se reflectem na prática profissional dos sujeitos?

Na sua “definição técnica”, Yin entende o estudo de caso como uma investigação empírica, uma estratégia de pesquisa abrangente, uma situação tecnicamente única com muitas variáveis em jogo (2005: 32-33).

Gil (1995) vai na mesma linha da dimensão e abrangência do estudo de caso, acrescentando o carácter de profundidade que o define:

o estudo de caso é caracterizado pelo estudo profundo e exaustivo de um ou de poucos objectos, de maneira a permitir conhecimento amplo e detalhado. Este delineamento fundamenta-se na ideia de que a análise de uma unidade de determinado universo possibilita a compreensão da generalidade do mesmo ou, pelo menos, o estabelecimento de bases para uma investigação posterior, mais sistemática e precisa” (1995: 78).

Por sua vez, Stake chama a atenção para o facto de que nem tudo pode ser considerado um caso, pois um caso é uma unidade específica, um sistema delimitado cujas partes são integradas (cf. Yn, 2005).

Para dar conta da separação necessária entre o fenómeno estudado e o contexto que o alberga, Yin (2005) inclui como necessária a mobilização de várias fontes de evidências e o desenvolvimento prévio de proposições teóricas para conduzir a recolha e a análise de dados.

Elegendo como sujeitos do nosso estudo docentes de língua portuguesa e língua cabo-verdiana do Instituto Superior de Educação, concebemos esta instituição como o caso de estudo, a unidade primária, e os docentes identificados como as subunidades de análise, ou unidades incorporadas, consoante Yin (2005: 61).

A definição do caso e das subunidades de análise constituiu, assim, uma etapa fundamental no desenho deste projecto. O presente trabalho define-se como um estudo de caso incorporado, daí resultando um projecto complexo na medida em que as subunidades de análise podem acrescentar “oportunidades significativas a uma análise extensiva, realçando o valor do caso único” (Yin, 2005: 67).

De acordo com Lessard-Hebért et al (1990: 168), o estudo de caso constitui um dos cinco modos principais de investigação nas ciências humanas e um dos mais privilegiados nas metodologias qualitativas. Os diversos modos referenciados por aquele autor são definidos em relação à sua posição num continuum em que o grau de construção, de abertura e de controlo da investigação por parte do investigador constituem os parâmetros de referência,

O campo deles [dos modos de investigação] é mais ou menos “construído” (real- artificial), mais ou menos “limitado” (aberto-fechado), mais ou menos “manipulável”

(Lessard-Hébert et al, 1990: 168).

A posição extrema desse continuum é ocupada pelo estudo de caso,

já que o seu campo de investigação é, por definição, “o menos construído, portanto o mais real; o menos limitado, portanto o mais aberto; o menos manipulável, portanto o menos controlado. Aqui, o investigador está pessoalmente implicado ao nível de um estudo aprofundado de casos particulares. Ele aborda o seu campo de investigação a partir do interior. A sua “atitude” “compreensiva” pressupõe uma participação activa na vida dos sujeitos observados e uma análise em profundidade do tipo introspectivo (De Bruyne et al., 1975: 210, in Lessard-Hébert et al, 1990: 169-170).

A implicação pessoal do investigador, aqui referenciada, reporta-nos ao lugar fundamental que ele ocupa nas pesquisas de natureza qualitativa. Aliás, como referimos anteriormente, ele constitui o seu principal instrumento. As consequências de tal implicação na validade e fidelidade da investigação têm sido frequentemente discutidas. Sem perder

de vista que o investigador é um sujeito real, em interacção com outros sujeitos num processo de construção de conhecimento, que ele se configura com um determinado perfil, em termos de experiência de vida, de esquemas de pensamento, que não deixam de influenciar a sua actuação no terreno, tal debate parece fazer todo o sentido, sobretudo nas situações em que o contexto da pesquisa lhe é familiar e próximo.

Para Burgess (1997), a questão é fulcral e consiste em saber se o investigador que trabalha na sua própria sociedade tem mais ou menos vantagens que o investigador que trabalha num terreno que lhe é estranho. Desta questão básica, emergem outras mais referenciadas ao processo de investigação em si e que merecem de facto ser esclarecidas. Stephenson & Greer (cf. Burgess, 1997: 22) admitem que, se o investigador se reconhece na cultura do contexto de estudo, é natural que haja problemas na sua participação no trabalho de terreno, nas relações que estabelece com os sujeitos a esse nível e na observação do ambiente. Daí que esses autores coloquem várias outras questões decorrentes da extensão da familiaridade do investigador com a cultura do contexto; da experiência do investigador em confronto com a dos sujeitos da pesquisa; da relação entre investigador e investigados; do papel que ele assume nessas circunstâncias. Pergunta-se, nomeadamente: o conhecimento do local ajuda a entrar nos problemas e a construir uma problemática? O investigador não corre o risco de gerar conflitos de papéis com os sujeitos? Em que medida é que o conhecimento das questões estudadas, éticas, políticas, determina a sensibilidade do investigador na sua análise?

Trata-se, antes de mais, de questões reais, que não podem ser iludidas. Pelo contrário, a qualidade do estudo, para ser assegurada, exige que o investigador delas tenha consciência plena, pois só assim poderá e saberá “trabalhar o envolvimento e a subjectividade, mantendo o necessário distanciamento que requer um trabalho científico” (Teis e Teis, s/d: 5). Este desafio estará tanto mais ao alcance do investigador nessas circunstâncias quanto mais reflexiva for a sua postura e quanto mais

estratégias de estranhamento ele adoptar. Teis & Teis (s/d: 5) referem a reflexividade e o estranhamento como dois princípios a operacionlizar nos trabalhos etnográficos: reflectir sobre o seu papel e sobre o seu lugar na pesquisa; reflectir permanentemente sobre o papel e o lugar dos sujeitos. Essa dinâmica reflexiva demanda a actualização permanente da problemática em estudo, da relação a ser assegurada entre os objectivos e os dados e uma atenção focalizada nas questões de partida. Quanto ao estranhamento, ele visa combater a tendência para achar natural o que é familiar, e isso só é possível através de um esforço sistemático de analisar como estranha uma situação familiar, dando-se a conhecer factos incobertos. De acordo com Cavalcanti (1999),

Esse desvelamento pode inclusive levar o pesquisador a se deparar com questões de sua própria identidade social que pode resultar em conflitos que precisam ser enfrentados para conseguir avançar no trabalho e mostrar a visão êmica dos participantes (Teis e Teis, s/d: 6).

A autora do presente trabalho integra o corpo docente da unidade primária de análise, o ISE, e nesta condição detém uma experiência institucional significativa, mantendo com os sujeitos pesquisados uma relação pessoal e profissional forte, anterior ao próprio processo de investigação. Esta familiaridade que se estende à problemática do estudo, foi-se construindo ao longo de anos de prática docente na instituição e fora dela, como referimos na introdução a este relatório de dissertação. Cremos que esse conhecimento terá determinado a motivação pelo tema de investigação e a escolha do caso, que tem para a autora um interesse intrínseco: estudamos o ISE porque queremos aprender acerca desse caso particular. Cremos ainda que esse conhecimento foi útil, ao ter sido mobilizado durante todas as fases de implementação do projecto de pesquisa. Mas os constrangimentos que vimos discutindo foram vividos pela autora, sobretudo quando o envolvimento com a problemática foi mais intenso, durante a realização das entrevistas. Nesses momentos, foi efectivamente necessário um esforço adicional para não tomar as coisas

como garantidas, para não escamotear as situações. A reposição do papel de investigador em detrimento do papel de docente foi uma constante. A procura da objectividade constituiu a preocupação fundamental e o que foi conseguido neste aspecto tê-lo-á sido primeiramente pela consciência clara dos problemas daí decorrentes – os enviesamentos, a simplificação excessiva, o juízo prévio, a dificuldade em separar o que se escuta do que se sente ou se pensa saber - mas também pela qualidade e experiência dos sujeitos investigados, que permitiram que, da esperada naturalidade da interacção, redundasse a produção de um material bruto importante, rico de elementos de análise, tornando possível o objectivo preconizado de, a partir da sua análise, construir as representações que os indivíduos guardam da sua língua e da língua de contacto.

Estamos, portanto, a operar no quadro de um conceito da psicologia social – o das representações dos indivíduos sobre um objecto concreto – as línguas em contacto – que enformam o contexto linguístico de Cabo Verde. O contexto real do estudo é o contexto actual em que se projectam medidas de política linguística profundas, com implicações directas a todos os níveis, nomeadamente a nível educativo. Para serem bem sucedidas, para que resultem em desenvolvimento cultural, humano e social, a curto, médio e longo prazo, necessário se torna assegurar as condições subjectivas favoráveis, condições essas que passam pelo conhecimento e subsequente trabalho sobre as opiniões, atitudes e crenças dos falantes sobre as línguas em presença. Este trabalho pretende contribuir para a construção de um conhecimento útil nesta matéria, ganhando assim um carácter instrumental.

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