• Nenhum resultado encontrado

4 O TRABALHO EM SAÚDE: AS EXPRESSÕES CONCRETAS DA (DES)

4.2 A Estratégia Saúde da Família de Campina Grande e sua força de trabalho:

4.2.2 As equipes de saúde e as novas requisições para o trabalho

Para complementar a caracterização do perfil das equipes de saúde apresentamos mais dois aspectos que aparecem como novas requisições para a força de trabalho em saúde nesta atividade. Um elemento é passível de destaque no depoimento das entrevistadas: o reconhecimento de que a ESF potencializa uma atuação mais qualificada junto às demandas dos usuários. Fica claro que existe um domínio e uma clareza desses trabalhadores sobre o papel da ESF na organização dos serviços de saúde. Para eles atuar na ESF exige um diferencial, que se expressa na potencialidade da contribuição de sua ação profissional na efetivação do trabalho coletivo para as ações de saúde.

Em que pesem as condições objetivas e subjetivas de trabalho113, que vêm restringindo sua capacidade de atuação, esses trabalhadores sabem o que estão fazendo e por que estão fazendo.

As informações registradas revelam que para atuar numa ação centrada na família inserida no contexto da comunidade requer novas atribuições para o trabalhador de saúde. É importante ter clareza da abrangência de suas ações de forma a orientar as práticas de saúde neste campo. Esses depoimentos são indicativos dessa nova requisição.

Tratar a família como um todo. Hoje a gente trabalha como um todo. Dá importância a criança até o pai e a mãe.

O diferencial pra mim é o acesso à família, é conhecer o individuo dentro da sua estrutura familiar. Que muitos hoje em dia discordam, que o PSF não faz isso, mas é. Quando a gente está na prática, a gente sabe, a gente sente exatamente qual a importância desse conhecer o individuo dentro da sua família, de seu núcleo familiar.

113 Ao referirmos às condições objetivas e subjetivas de trabalho, consideram-se aspectos relacionados diretamente as condições efetivas do trabalho como elementos que envolvem e interferem na realização dele. Neste sentido, estamos considerando condições objetivas ao nos referirmos: ao local de trabalho; as condições materiais necessárias à realização das atividades; o acesso a meios e instrumentos; o ritmo do trabalho; e o desgaste decorrente do trabalho. Quanto a condições subjetivas consideramos: a relação com os usuários, com a chefia e com outros profissionais, a clareza do seu papel profissional e suas atribuições específicas.

O discurso dessas trabalhadoras reflete uma compreensão da direção a ser assumida pelo conjunto de suas ações, localiza os objetivos e delimita o alcance de suas práticas. Este é um conhecimento fundamental, que se transforma em um instrumento de trabalho, requisito importante do trabalho em saúde, tanto para desvendar as demandas dos usuários por saúde, como também instrumento de crítica quando as ações propostas tendem a fugir do foco defendido e compreendido por seus trabalhadores. Ter clareza sobre os objetivos de sua ação potencializam as reações de resistência.

O relato documentado na pesquisa reafirma a centralidade do trabalho humano na saúde. Revela a sua dimensão particular que direciona e conduz as ações de saúde, a partir de opções tecnológicas produzidas pelo saber e conhecimento de seus trabalhadores, como reconhece Merhy (1997, p. 126). Como analisamos no capítulo segundo, a força de trabalho em saúde tem a particularidade de lançar mão do que de melhor a tecnologia em saúde lhe fornece, o saber e o conhecimento (MERHY, 1997). Entretanto, esse saber e conhecimento podem também ser requisitados de forma a atribuir ao trabalhador uma responsabilidade sobre os resultados das ações, desconsiderando as condições objetivas e subjetivas de trabalho. Desconsiderando as condições precárias de trabalho.

É possível identificar que a atuação desses trabalhadores requer a incorporação de um preceito muito caro a ESF, que é “o estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromissos e de co-responsabilidade entre os profissionais de saúde e a população” (BRASIL, 1998, p.7). Existe um forte apelo institucional no tocante ao vínculo com o usuário114, que é recuperado como uma nova requisição, entretanto é uma das particularidades do trabalho em saúde, a relação direta entre o trabalhador e o usuário. Uma relação de intersecção compartilhada, como diz Mehry (1997), em que se efetiva o encontro entre os sujeitos, trabalhador de saúde e usuário.

É esta relação que recebe maior significância na ESF e que tem direcionado a lógica para as ações de atenção básica, estabelecendo um pacto de

114 O vínculo com o usuário expressa o conceito de acolhimento que segundo Merhy (1997), tem uma dimensão particularizada quando se trata da saúde. De acordo com Merhy o acolhimento na saúde deve ser compreendido como produto da relação trabalhadores de saúde e usuários, “vai além da recepção, atenção, consideração, refúgio, abrigo, agasalho” referido no uso comum. Acolhimento na saúde “passa pela subjetividade, pela escuta das necessidades do sujeito, passa pelo processo de reconhecimento de responsabilizações entre serviços e usuários, e abre o começo da construção do vínculo. Componentes fundamentais para reinventar a qualidade da assistência” (MERHY, 1997, s/p).

compromisso com os trabalhadores que descontextualiza as reais condições de trabalho e remete para esses a responsabilidade pela efetivação das ações.

As trabalhadoras entrevistadas percebem a dimensão de suas ações e reconhece que o estabelecimento do vínculo com o usuário não assegura as ações de promoção e prevenção requisitados para ESF. É fundamental que a gestão dos serviços também esteja organizada de forma a oferecer condições de efetivo exercício das atividades. Os depoimentos a seguir relatam alguns aspectos dessa realidade.

Aqui a gente vê o atendimento das pessoas. Mas também, não só da pessoa, do ambiente em que está inserido, da família, da comunidade, mas sem ser voltado só pro aspecto curativo, só pro aspecto assistencial. Isso, no sentido do que deveria ser! Pelo menos, a maior parte do trabalho seria aquela parte mais preventiva, educativa. Nem sempre é o que vai acontecer na realidade.

Eu ainda acredito no Saúde da Família como uma proposta realmente, uma proposta de reestruturação, como o Ministério gosta de colocar, da Atenção Básica [...] Como uma proposta de um trabalho mais comprometido. Agora desde que a gente tenha as condições necessárias, desde que os profissionais tenham as condições necessárias. [...] Se ele tiver as condições de trabalho como deve ter, de um posto melhor aparelhado em termos técnicos, de medicação... Então ele se envolve com o trabalho. Então, eu acredito no Saúde da Família por conta desse envolvimento.

É possível perceber que ao reconhecer a direção de suas ações, também se reconhecem os limites e possibilidades do trabalho. O trabalho em saúde ocorre sob determinadas condições institucionais e as ações profissionais são influenciadas por elas. Para incorporar a direção preventiva característica da atividade da ESF, envolve muito mais que empenho e compromisso dos trabalhadores, são necessárias condições gerais de trabalho e isso é identificado por esses trabalhadores. Estabelecer uma relação de vínculo com a população usuária não é suficiente para resolver os problemas de saúde da população. Como destaca Merhy (1997), este vínculo só se materializa na prática quando o serviço garantir acesso a todas as ações de saúde, na medida das necessidades dos usuários, com bom acolhimento, resolutividade e responsabilidade para com a saúde da população. O conhecimento que instrumentaliza o trabalho em saúde, também lhe serve de crítica.

Outro elemento que podemos destacar no perfil da força de trabalho da ESF é a requisição para o trabalho coletivo. É uma particularidade da atividade em

saúde, este trabalho combinado, em que a cooperação é uma condição orientadora da abordagem multiprofissional requerida para atuação na ESF. O planejamento e execução das ações de saúde devem ter como parâmetro este trabalho em cooperação, em que a divisão sociotécnica do trabalho se materializa na separação das tarefas, mas que articuladas concretizam os efeitos das ações em saúde. O sentido da cooperação integrada às ações de saúde da ESF caracteriza uma divisão do trabalho que determina o estabelecimento de uma relação da equipe entre si e desta com os usuários.

Costa (1998, p. 48) lembra que o atendimento de uma necessidade de saúde pode ser mediatizado por atos parciais que envolvem ações que variam em níveis de complexidade, tendo em vista a necessária complementariedade e interpenetração entre distintos processos de trabalho. É uma fragmentariedade que corresponde à particularidade do trabalho em saúde e que apresenta-se no cotidiano da prestação dos serviços.

Existe um fundamento importante nos relatos que se referem à identificação de que o desempenho de cada atividade específica interfere no conjunto das ações da equipe de saúde. Aparece um elemento de valorização do seu próprio trabalho e também o reconhecimento de sua importância para o trabalho coletivo. Podemos refletir sobre isso, a partir desses depoimentos:

O ACS é quem descobre tudo. O ACS é o alicerce de uma casa [...] Porque você está ali, você convive na comunidade, você mora aqui na comunidade, você sabe quem morreu, quem saiu, quem está vivo, quem está doente.

Há uma interligação quando o agente comunitário traz um problema [...]. Então assim, muitas vezes dependendo da gravidade do problema que ele encontra, uma doença, [...], ou fome, ou uma situação de violência. Um agravo, não precisa ser uma doença [...] Então assim, é importante que toda equipe fique sabendo.

Essas informações demonstram que essas trabalhadoras percebem a importância do seu papel na divisão do trabalho da equipe e isso também permite apreender a dimensão do trabalho coletivo em saúde. Muito embora ainda prevaleça a perspectiva de um processo de trabalho em saúde organizado para promover o convívio, no mesmo espaço institucional de um grupo de trabalhadores que formulam e de outros que executam (COSTA, 1988, p.47).

Os depoimentos apresentados acima também apontam uma tendência de romper com esta forte hierarquia do processo de trabalho em saúde, em que as funções mais complexas e intelectuais estão centralizadas nos profissionais de maior qualificação, enquanto para uma ampla base de auxiliares resta apenas operacionalizar as ações. O conhecimento detalhado da realidade dos usuários faz com que o ACS assuma um papel significativo no trabalho coletivo.

Entretanto, esta não é uma relação harmoniosa para o conjunto das equipes de saúde da família. Podemos nos remeter aos argumentos de Nogueira (1994), que nos lembra que a divisão social do trabalho na saúde articula, numa ação conjunta, profissionais, que por tradição podem operar de forma isolada e autonomamente, como médicos e dentistas, ao tempo em que promovem uma redivisão de tarefas realizadas pelos auxiliares de enfermagem, por exemplo.

Na conformação das equipes de saúde da ESF isso também é passível de ocorrer, principalmente quando uma ação articulada pelo conjunto da equipe não é valorizada pelos profissionais. Desta forma, as ações ocorrem de forma isolada e fragmentada sem o envolvimento da equipe como um todo.

Os depoimentos a seguir exemplificam esta realidade.

A gente diz que hoje aqui não é mais PSF! Porque PSF a gente trabalha com agendamento. [...] A gente trabalhava cada dia com um agendamento.Tudo era agendado, tudo era planejado. Hoje em dia não existe mais isso. Hoje em dia a equipe não faz mais visita. [...] Hoje em dia o paciente chega aqui a hora que quer, é atendido a hora que quer.

É muito ruim você não ter capacidade de discutir o dia a dia dentro da equipe [...]. A falta de iniciativa de pessoas da equipe, de pessoas que podiam contribuir mais. [...]

Cada um faz o seu... Eu acho isso esquisitíssimo

A divisão e o parcelamento do trabalho na ESFpodem ser revertidos em algo enriquecedor do trabalho em saúde, desde que o trabalho coletivo seja assumido como uma proposta, não só de uma equipe de saúde específica mas, como direcionamento de uma gestão estratégica de ações de saúde que valorize o potencial de sua força de trabalho. A interação entre os diferentes saberes se complementa e dinamiza a constituição de novas práticas de saúde.

As particularidades do perfil das equipes de saúde da família que apresentamos, indicam tendências que o aproximam dos traços característicos mais gerais dos trabalhadores do setor saúde. Entretanto, também, percebemos que

existem traços muito peculiares a esta força de trabalho relacionadas as novas exigências do trabalho em saúde no âmbito da atenção básica. As requisições para a atuação de um trabalho em equipe, que valorize o vínculo com a comunidade e, que estabeleça uma relação de compromisso e corresponsabildade entre profissionais e usuários têm colocado novas exigências para as ações efetivas desses trabalhadores.

Essas novas requisições devem ser pensadas articuladas ao conjunto de determinações impostas para o setor saúde. É uma força de trabalho que é convocada insistentemente para pensar e agir sobre um projeto de ações de saúde com objetivos finalísticos de reverter às condições de vida e de saúde da população. Entretanto, a direção política de gestão do SUS, como também das políticas sociais como um todo, traduzem, como vimos, uma maré reversa que se expressa também no âmbito local, na realidade dos municípios, que inviabilizam a universalidade e equidade do acesso aos serviços de saúde.

Como resultado desta contradição, as formas de gestão da força de trabalho têm se traduzido em duas dimensões: a dos discursos expressos nos documentos oficiais, que poderíamos indicar como um deve ser , e o que realmente tem se concretizado como gestão da força de trabalho no setor saúde.

Em que pese todas as limitações da estrutura municipal, elegemos a realidade da ESF do município de Campina Grande como um universo para analisar a conformação do trabalho em saúde, eivado pelas determinações gerais que flexibilizam e precarizam a força de trabalho no setor. Identificando as particularidades do trabalho na ESF podemos indicar de que forma tem se concretizado a gestão da força de trabalho, e traduzir as formas concretas da desregulamentação do trabalho no setor saúde.

4.3 Os fios que tecem a flexibilização e precarização do trabalho no serviço de