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As estruturas de alienação do saber ou a escola imaeinada

Capítulo 4. De onde vem esse imaeinário escolar?

2. De onde eerar aleuma possibilidade de resposta

2.2 As estruturas de alienação do saber ou a escola imaeinada

De volta ao começo, precisamos nomear nossa inquietação dentro da escola, admitindo que ela foi gerada em parte por tudo o que dissemos nos dois itens anteriores. Nossa experiência de escola, enquanto estudante- professora-formadora, construiu-se desse imaginário aprisionante, seco de desejo. Posto que a verdade do “ensinar” se faz na veracidade de seu processo, enxergamos as instituições pelas quais passamos como um espaço povoado de professores, salvo raras exceções, ensaiados para repetirem cegamente conhecimentos estáticos de uma língua morta, sem investimento libidinal ‘suficiente’ (e o que seria esse suficiente?) para que a leitura e a escrita fossem vistas e vivenciadas pelos estudantes, na própria escola e fora dela, como instrumento legítimo de criação. A consequência disso é que, nessas instituições, não havia o que criar, porque todas as respostas já estavam prontas como verdades, cujos sentidos mostravam-se totalmente desconectados do real: essas regras determinavam o que e como o estudante

deveria aprender para se adequar ao que generalizava e classificava os contextos sociais, tamponando as exceções e automatizando o fazer.

Em certo sentido, ao entrarmos na escola, fomos tomada por aquilo que Mrech (1999) chama de estrutura de alienação no saber, responsável pela reificação da realidade social ou subjetiva do sujeito. Para essa autora:

são as estruturas de alienação no saber que reificam os lugares do discurso pedagógico: o lugar do professor e o lugar do aluno. Elas podem ser encontradas no âmbito da própria linguagem. Elas se compõem de hábitos, repetições, estereótipos, cláusulas obrigatórias e palavras-chave. Elas estruturam o pensamento do sujeito. Neste sentido, é importante que façamos a distinção entre dois tipos de estruturas básicas: as estruturas sociais de alienação no saber e as estruturas individuais de alienação no saber. (...) As estruturas sociais ou estruturas estruturadas de alienação no saber fornecem o código geral através do qual o sujeito terá guias de ação determinadas. As estruturas estruturantes ou estruturas individuais de alienação no saber se situam no plano da mensagem, isto é, elas se referem ao desempenho dos sujeitos. (p. 15)

Essa dupla alienação, social e individual, como estruturante do nosso modo de pensar a escola e seu papel na formação do sujeito, colocou-nos exatamente na posição que imaginávamos serem as assumidas pelos educadores dessa escola, generalizando e cristalizando nosso pensar e nossa ação. Nesse sentido, mesmo que continuássemos discursivamente entendendo que a escola tem uma função importantíssima na construção de conhecimentos e de valores éticos, ao mesmo tempo em que também tem o papel de fazer os sujeitos se adequarem às leis da vida em sociedade, já esperávamos encontrar nessa escola a nossa verdade de escola: aquela que nega ao sujeito a experiência de construir saber.

Isso significava que, fechada para a escuta daquilo que a escola, representada por suas professoras e coordenador, nos tinha a dizer, já sabíamos quais eram as suas regras e discurso manifesto; quais eram as verdades da escola e de cada um dos sujeitos com os quais nos relacionamos ali. Por isso, antes mesmo que a escola nos impusesse suas leis, nós já as trazíamos na bagagem, autorizando uma ação de pesquisa baseada no nosso

imaginário de escola e não naquilo que essa escola poderia de fato nos dizer. Nesse sentido, considerando a escola na qual nos encontrávamos como um espaço de autoritarismo e de aprisionamento do desejo, colamos nossa possibilidade de escuta desse espaço ao nosso imaginário de escola, aos nossos fantasmas que criam uma “ambiência”, isto é, um cenário que previamente o sujeito tentará encontrar em todos os lugares. Mais precisamente o fantasma materializa cenários e cria roteiros previamente estruturados, para evitar que o sujeito entre em contato com os outros concretos. (MRECH, 1999: 16)

Esse dado certamente determinou o modo como conduzimos o trabalho de campo e nos permite justificar por que razão dissemos que, de certo forma, ficamos amarrada ao método escolhido e aprisionada às suas regras, as quais, agora podemos dizer, foram instauradas a partir de nosso próprio imaginário de escola. Tínhamos para nós que não cabia ali questionar a homogeneização ou a linearidade escolar que, fatalmente, evitava o inesperado da escrita. Ou seja, aquilo que da escrita deixava vazar os traços do sujeito. Mas, de antemão, sabíamos que essa homogeneização e linearidade estavam lá e que a escrita proposta por essa escola não poderia levar à constituição de sujeito-autor. Como sabíamos disso? As respostas já tinham ido à escola junto com as perguntas. Simplesmente elas deveriam ser encaixadas naquele contexto.

Um outro dado importante para ratificar a estrutura de alienação do saber à qual estávamos coladas tem a ver com a posição que assumimos dentro desse contexto. Como dissemos antes, não tínhamos a intenção de atuar como professora ou psicopedagoga, mas, de algum modo, o fato de sermos autora dos livros didáticos de língua portuguesa utilizados nessa escola promovia em nós algumas outras cenas. De um lado, fosse como fosse, ocupávamos a posição de um sujeito suposto-saber: sabíamos sobre a língua portuguesa, sobre a escrita e sobre as metodologias a serem aplicadas pelas professoras com seus alunos. Claro está que isso se passava de modo a conduzir nossa ação como a de quem carregava consigo esse lugar privilegiado. Por outro lado, estar nesse lugar privilegiado promovia em nós uma necessidade de alimentar esse imaginário, mesmo que conscientemente tivéssemos escolhido ser pesquisadora naquele contexto. O fato é que saber sobre o livro que professores e alunos utilizavam, sobre os gêneros que

escreviam, sobre os textos que liam, fazia de nós uma autora que não se descolava dessa função para se deixar escutar qualquer outra coisa além de nosso saber. Isso contribuía para reforçar o lugar de alguém que determina as regras e espera que o pequeno outro as siga conforme seu desejo.

O livro didático, mesmo não sendo o nosso foco na prática da pesquisa, porque o pusemos de lado para dar espaço a outras práticas de escrita, ainda fantasmagoricamente povoava tanto o nosso imaginário de autora, quanto o imaginário escolar sobre a autora. Desse modo, ficamos presa às estruturas de alienação do saber de que nos fala Mrech, porque não conseguíamos construir um novo saber a partir de nossa escuta do que a escola e as estudantes que participaram da pesquisa tinham a nos dizer. Na prática, escutávamos tudo e gravávamos cada uma das falas. Mas isso não significava sair do lugar que ocupávamos dentro daquela escola para deixar que esse espaço nos revelasse outra coisa.

Em outras palavras, tínhamos para nós, ao escrevermos os livros didáticos, que eles poderiam contribuir para que os professores olhassem o ensino de língua materna como uma possibilidade de permitir ao sujeito passar pela experiência dessa língua como leitor e escritor de variados textos. Logo, de algum modo, acreditávamos que nossa ‘receita’ poderia salvar esse sujeito do aprisionamento escolar. Se escrevessem tudo o que estávamos propondo nos livros, se participassem de todos os projetos didáticos; se pudessem falar de sua experiência com a escrita e a leitura, teriam condições de passar para o lado do sujeito e, portanto, tornar-se um autor de seus textos.

O que não contávamos é que, na nossa verdade de autora dos livros didáticos, não havia espaço para que outras verdades pudessem vir à tona. Imaginariamente, nós sabíamos o que aquela escola tinha a fazer para que seus alunos se tornassem sujeitos-autores e, portanto, o que não fizesse parte dessa verdade era interpretado a partir de nossas posições reificadas sobre o que é a escola e qual tem sido sua função na contemporaneidade.

Outro aspecto interessante a pensar é que o fato de sermos autora desses livros não nos igualava a qualquer dos sujeitos dessa escola, colocando-nos em um patamar de superioridade. Isso, certamente, contribuía para que também nós desejássemos preservar nossa posição confortável do sujeito suposto-saber. Sair desse lugar, ao dar escuta para a vida real da

escola, era de certo modo perder uma posição da diferença e, talvez, nos colocar no lugar do igual. E, como o igual, para nós, era o alienado, o aprisionado, o sacrificado em nome do sistema e das leis da educação, não nos permitíamos arriscar nossa ‘cabeça’.

Mais ainda: se compreendemos que a educação, formatada pelo espaço escolar, ocupa a mesma função de pai e, portanto, impõe ao sujeito as regras de conduta e de ação, para responder à demanda desse ‘pai’, é preciso submeter-se ao seu desejo e ganhar em troca o seu amor. Assim como Kafka e Schreber, também nós desejamos o amor desse pai representado pelo Outro escolar. Caso não nos assujeitássemos àquilo que, em nosso imaginário, era o desejo da escola (o de que ocupássemos nosso lugar de autora e de sujeito suposto-saber), correríamos o risco de não sermos mais amada por esse ‘pai’. E não queríamos correr esse risco.

Essa nossa reflexão não responde clara e diretamente às demandas da pesquisa de campo que fizemos, porque ela só nos pôde se revelar no aqui e agora da escrita da tese. Também não podemos garantir, sob pena de retornarmos às posições fixadas que assumimos antes, que essa seja a verdade de nossa pesquisa. No entanto, ocorre-nos que, de algum modo, o que hoje nos permitimos dizer afetou diretamente aquilo que nos permitimos fazer dentro dessa escola com a escrita que propúnhamos às estudantes: repetir o sistema para não correr o risco de perder nossa posição. Nesse sentido, fazíamos exatamente o que tanto condenávamos nos discursos institucionais: tendíamos a produzir repetições, mesmice, na tentativa de preservar o igual e garantir sua permanência. (Kupfer, 2001:136). Em tempo, o igual não éramos nós, claro! E a permanência era a daquela visão reificada que tínhamos levado para dentro da escola.

A questão é que a mesmice do igual é sintoma e, portanto, sempre alerta o mais ainda. E a pista para esse mais ainda revelou-se justamente naquilo que enxergávamos como um cenário perfeito onde nada faltava, chamando nossa atenção para uma falta da falta.

Expliquemos: curiosamente, acabamos trabalhando com um grupo de estudantes consideradas ‘boas’ e ‘excelentes’ por suas professoras. Com exceção de Bia, que vinha com a queixa de que não gostava de ler e de escrever, Mariah, Mariana, Paloma, Luiza, Cristiana e Maria Luiza mostravam-

se absolutamente adaptadas e ajustadas ao contexto escolar e não apresentavam dificuldades sérias com relação à escrita. Participavam dos projetos didáticos, escreviam todos os textos solicitados, faziam as lições de casa, discutiam as propostas de redação, gostavam de ler, tinham excelentes notas etc.

Eram, definitivamente, um ‘sonho de consumo’ de qualquer professor de língua portuguesa que precisa ensinar a ler e a escrever a fim de preparar seus alunos para o mercado de trabalho e vestibular. Aparentemente, tudo se encaixava na mais perfeita ordem, contribuindo para ratificarmos nossa impressão de que a instituição escolar é realmente uma potência no quesito alienação. Nesse caso, a nossa; porque, nesse cenário perfeito, quase esquecemos de procurar pelos furos que nos permitiria enxergar para além daquela pseudo perfeição. Quase.

Recorrendo a uma máxima popular que diz: “quando a esmola é demais até o santo desconfia’, era mesmo para desconfiar que, em meio a um cenário tão propício para o trabalho com a escrita e a leitura, todo mundo gostasse de ler e escrever. Explícita e rapidamente uma das estudantes, Bia, vai dizer ‘não’ para esse imaginário da escola perfeita, instaurando algo diferente ao cenário. Ela, ao contrário das demais estudantes, desestruturava esse ajustamento confortável porque se negava veementemente a fazer as tarefas de casa, a ler um livro do começo ao fim, a escrever os textos solicitados. Mais adiante, veremos algumas de suas falas sobre isso, o que nos ajudará a pensar a função de Bia neste trabalho. No entanto, para o momento, cabe dizer que ela destoava do grupo selecionado para a pesquisa, porque o que menos queria fazer era escrever ou falar sobre seu processo de escrita. Bia era nossa falta ali e a nossa passagem para uma outra coisa.

A questão das desistências já anunciada no capítulo anterior transformou-se em outro fator totalmente fora de contexto, indicando que a pseudo perfeição do cenário mascarava outra coisa, tamponando a falta necessária a todo desejo. Ao todo, cinco estudantes desistiram do projeto: Mariah, Maria Luiza, Cristiana, Luiza e Bia. No caso especificamente de Bia sua desistência estava anunciada desde o primeiro dia de encontro com a pesquisadora e sua questão era outra. No caso das demais, no entanto, cabe- nos perguntar: por que elas, sendo tão ajustadas, desistiram do projeto? Qual a

relação dessa desistência com a escrita que nos apresentavam? De que modo sua desistência poderia ser compreendida como um dado relevante sobre o trabalho de escrita dentro dessa escola e o trabalho com a escrita que estávamos propondo no projeto?

Essas questões se impuseram como absolutamente centrais para pensarmos a escrita dentro da escola e a escrita como lugar de subjetivação do sujeito que, constituindo-se como autor, pode revelar-se em seus textos. E serão discutidas com mais detalhamento no item “Considerações sobre as desistências: entre as tarefas e a escrita que não vinga”.

Postas nossas inquietações, acompanhadas da análise que nos foi possível fazer até aqui, podemos finalmente passar a palavra para as estudantes, deixando-as também falarem de suas expectativas e anseios, suas ideias sobre a leitura e a escrita, sem os quais não teríamos conseguido dizer dos nossos e não poderíamos retomar a questão da escrita e da autoria.

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