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PARTE I FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 3 A POLITIZAÇÃO DA ECONOMIA E O

3.1 As fases do capitalismo, uma gangorra histórica entre mercado e

Muito relacionada às conquistas de direitos e deveres das pessoas, a evolução da definição de cidadania, segundo Santos, acompanhou o projeto da modernidade que está localizado na história juntamente com o desenvolvimento do capitalismo e seus períodos: o capitalismo liberal (século 19), o capitalismo organizado (de 1880 ao pós 2a Guerra) e o capitalismo desorganizado ou financeiro (de 1960 aos dias atuais). (SANTOS, 2003, 79)

No primeiro período do capitalismo, a teoria político-liberal distinguiu o Estado da sociedade civil e estabeleceu-se a garantia de segurança da vida e da propriedade privada, segundo as regras do mercado. Os direitos civis e políticos, em especial o que Santos chama de igualdade "formal" dos cidadãos, representada pelo direito do voto,

foi a primeira grande conquista da cidadania, ainda que o sufrágio universal tenha ocorrido apenas no século 20, momento a partir do qual a sociedade liberal pôde passar a ser considerada de fato democrática, através da inclusão política de todos (SANTOS, 2003, 237 e 238). Porém, para o pesquisador, tal conquista ao mesmo tempo levou a uma "passividade política" porque assim o cidadão transferia ao Estado a responsabilidade de garantir seus direitos essenciais. Citando Hegel, "o individual é o geral", o sociólogo desenvolve a ideia de universalização dos sujeitos, considerando que ela restringe as pessoas ao que possuem de comum e desconsidera suas pessoalidades. Ele sugere que houve uma redução da participação política através da naturalização do poder do Estado e da não problematização da representação. No início da democracia representativa, a participação dos cidadãos teria ficado reduzida, portanto, ao poder do voto, o que facilitaria o controle social liberal (do poder econômico) em outros âmbitos.

Associando-se ao pensamento crítico de Rousseau sobre o contrato social liberal, que consiste no consentimento das pessoas com a obediência ao poder do Estado e no estabelecimento de relações segundo a doutrina liberal, Santos (2003, 239) concorda com o filósofo que acredita não haver saída para a convivência entre a liberdade do cidadão e o poder do Estado, e considera que a base do contrato não deveria estar na relação de "obrigação política vertical cidadão-Estado, [...] mas numa obrigação política horizontal, cidadão-cidadão", ao mesmo tempo que o poder de propriedade privada não defina maior participação social para uma parcela da população e marginalização para outras. Assim, defende que a "igualdade formal", aquela do direito do voto, não basta, e, além da cidadania, que garante os direitos de autonomia e liberdade, deve-se pensar na subjetividade, envolvendo ideias de "auto-reflexividade e auto-responsabilidade" (2003, 240). A crítica aqui é sobre o processo de "dessubjetivação", ou seja, a desvalorização das individualidades através do argumento da igualdade.

No crescimento do capitalismo, a liberação máxima da Economia e a baixa regulamentação levou à Grande Recessão, marcada pela quebra da bolsa de Nova York de 1929, quando várias empresas, em especial as instituições financeiras, fecharam e o desemprego aumentou consideravelmente. Para sua recuperação, com influência dos princípios keynesianos, o laissez faire foi diminuído, e o Estado teve de intervir, participando mais ativamente da Economia e tornando-se também produtivo, começando com investimentos em infraestrutura a fim de gerar empregos.

A recuperação da primeira grande crise do capitalismo fez com que ele retornasse mais forte, atingindo o período conhecido por milagre econômico, nos anos 1950, com o Estado do Bem Estar Social, através de um Estado mais participativo e muito presente na Economia. Neste período, classificado por Santos como o capitalismo organizado, através das conquistas dos direitos trabalhistas e dos direitos sociais, no contexto da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, surge o conceito de cidadania social. A ideologia propagada é a de Henry Ford (o fordismo) em que se incentiva o aumento da produtividade com a forte mecanização da indústria, sem a máxima exploração do trabalhador, que passa a ser tratado como potencial consumidor e a ter aumento salarial constante. O Estado cria mecanismos de proteção à Economia através da seguridade social e consolida-se a sociedade de consumo. No consumo se dá a realização da nova sociedade capitalista.

As lutas sociais de classe dos sindicatos fizeram parte desta conquista. A integração das classes operárias no Estado capitalista culminou em um capitalismo mais hegemônico, e ao mesmo tempo a um maior conformismo, diminuindo os desejos de emancipação. Os indivíduos ficaram sujeitados às rotinas de produção e consumo, e cresceu uma cultura midiática e uma indústria do lazer, tornando este também uma mercadoria possível de ser adquirida.

Na década de 1970, em uma sociedade de alto consumo, a primeira crise do petróleo gera um efeito dominó. As indústrias diminuem os aumentos dos salários e pressionam para pagar menos impostos. O Estado capitalista enfrenta uma severa crise fiscal que inviabiliza a manutenção dos programas de seguridade social nos níveis dos trinta anos do Estado do Bem Estar Social, típico do período fordista de desenvolvimento. A queda do período conhecido como "os anos de ouro do capitalismo" ocorre junto com a quebra dos regimes socialistas, abrindo-se espaço para as novas teorias liberais. Promove-se novamente o Estado-Mínimo, incentivando a privatização e, em alguns lugares, o Estado deixa de estar presente, diminuindo os benefícios sociais. Exemplos disso estão nos governos de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, que influenciaram a onda de governos neoliberais em todo o globo. A crise do regime de acumulação do pós-guerra e a crise da regulação e do Estado nacional com a globalização da Economia iniciam a crise da cidadania social e dão origem aqui ao capitalismo desorganizado.

No capitalismo desorganizado, Santos (2003, 251) agrupa em dois conjuntos as soluções que o capital encontra para a nova situação: a

difusão social da produção e o isolamento político do trabalho. Em primeiro lugar, a partir da desnacionalização do processo de produção, os Estados, principalmente periféricos e semiperiféricos, são levados a competir para atrair os investimentos das empresas multinacionais, o que muitas vezes consiste em uma maior desregulamentação nacional em favor das regras estabelecidas pelas multinacionais. Ainda sobre a difusão da produção, ressalta o alargamento da noção de produção para a de reprodução social: o tempo de trabalho se alastra ao tempo livre do indivíduo, seja para corresponder a um modelo de comportamento assumido pela ideologia da empresa, seja para corresponder a um padrão estético exigido pela profissão (SANTOS, 2003, 252). Nos dias atuais com o advento das novas tecnologias, tal interferência pode ser observada nos cuidados que muitos trabalhadores têm, por exemplo, com sua imagem em seus perfis pessoais nas redes sociais vinculada a qualquer fuga de padrão de comportamento ou mesmo opinião aceitável pela empresa onde trabalha.

No segundo aspecto, as soluções do capitalismo que levam ao isolamento político do trabalho, como a insegurança da garantia de emprego, podem ser entendidas como uma maior forma de controle das empresas ao considerar os trabalhadores, individualizados, como força de trabalho e não como classe operária (SANTOS, 2003, 254). Tal controle leva ao estabelecimento das relações de concorrência, citadas por Rodríguez e Santos como uma das características negativas do capitalismo apontada pelos teóricos do pensamento crítico:

as relações de concorrência exigidas pelo mercado capitalista produzem formas de sociabilidade empobrecidas, baseadas no benefício pessoal em lugar de na solidariedade. No mercado, o motivo imediato para produzir e para interagir com outras pessoas é "uma mistura de cobiça e de medo [...]. Cobiça, porque as outras pessoas são vistas como possíveis fontes de enriquecimento, e medo, porque elas são vistas como ameaças. Estas são formas horríveis de olhar para os outros, independentemente de já estarmos habituados a elas, como resultado de séculos de capitalismo (Cohen, 1994: 9)" (RODRÍGUEZ E SANTOS, 2002, 28)

Os Novos Movimentos Sociais do capitalismo desorganizado têm base ideológica no movimento estudantil dos anos 60, que teve como um dos seus marcos o Maio francês de 1968, quando seis milhões de pessoas ocuparam ruas e fábricas. Além da crise do fordismo, o movimento de cunho político-cultural confrontava a ideologia produtivista e consumista, o trabalho alienado e a ideia de reprodução social, e criava novos sujeitos transclassistas na luta pela emancipação social (SANTOS, 2003, 249) em substituição às classes operárias que, quando foram incluídas no capitalismo organizado acabaram reforçando o sistema e não mais atuando pela emancipação (SANTOS, 2003, 245). Deste modo, o conceito de cidadania social entra em crise e abre espaço para a chamada revolta da subjetividade.

Conforme Santos (2003, 237), a subjetividade diz respeito às necessidades individuais e está mais vinculada ao princípio da sociedade que ao princípio de mercado. Os interesses coletivos no âmbito da subjetividade não são resolvidos com a concessão de direitos pelo Estado, como ocorre na cidadania. Os Novos Movimentos criticam o pensamento do bem-estar material que, para eles, ignora a cultura e a qualidade de vida (SANTOS, 2003, 258). Segundo o pesquisador, o erro que levou o movimento estudantil dos anos 60 a sucumbir foi a exacerbação da subjetividade às custas da cidadania liberal historicamente conquistada, ao invés do estabelecimento de uma relação de equilíbrio entre ambas (SANTOS, 2003, 250).

A última crise do mercado, mais recente, data de 2008 e ocorre também após um período de intensa desregulação do mercado. A exemplo do período liberal pré-crise de 1929, o alto consumo nos países centrais mantido pelo crédito sem garantias reais, possibilitado pelo novo incentivo à liberdade de mercado, gerou uma bolha na Economia e a quebra de alguns bancos, chegou a fazer com que o governo dos Estados Unidos, maior potência de doutrina liberal, estatizassem algumas empresas na tentativa de reduzir os efeitos da crise. Os países da Europa ainda sofrem com índices de desemprego elevadíssimos que os levaram a reunirem-se e traçarem um plano para recuperação sustentável que prevê uma "normalização" da situação até 2020.