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AS FAZENDAS E AS ESCRAVARIAS: A HERANÇA DE QUENTAL NOS PAPEIS

2 ESCRAVIDÃO E CONTROLE: O GOVERNO DOS ESCRAVOS E OS AGENTES

3.1 AS FAZENDAS E AS ESCRAVARIAS: A HERANÇA DE QUENTAL NOS PAPEIS

As correspondências oficiais trocadas entre os agentes da governança e a sociedade capixaba também compõem a base documental, deste capítulo. No capítulo anterior, observou-se que das 70 correspondências oficiais relativas à ação escrava e/ou a interferência política no controle dos escravos, 45 ou 64,3% delas referiam-se à sublevação da escravaria das fazendas que pertenceram ao arcediago Antônio de Siqueira Quental, situadas na vila de Guaraparim, capitania do Espírito Santo. Essas correspondências encontram-se depositadas no AHU, AN, APEES e o estado de conservação, por se tratar de fontes primárias que remontam às três últimas décadas do século XVIII foi um obstáculo, por alguns trechos apresentarem-se ilegíveis. Não obstante, tal dificuldade não afetou entendimento geral sobre a questão proposta para a investigação.

No presente capítulo, aos 45 documentos sobre a revolta de Guaraparim serão acrescentadas mais 9 correspondências que se referem indiretamente ao levante escravo nas fazendas do Campo e Engenho Velho. Contabilizam-se, assim, 54 cartas

que equivalem a 4,53% da documentação total arrolada280. Inclui-se ao corpus

documental deste capítulo, dezessete ofícios que não estão contabilizados no cômputo geral da documentação.281 Eles encontram-se depositados: um, no APEES,

outro no sítio eletrônico do Arquivo Distrital de Braga282 e, as demais quinze

correspondências, constam no catálogo do sítio eletrônico do Arquivo Nacional da Torre do Tombo.283 Infelizmente não é possível ter acesso ao conteúdo das

correspondências por meio da página daquela instituição. Toda essa documentação coligida contribuiu para o mapeamento das informações referentes às fazendas do Campo e Engenho Velho, na vila de Guaraparim. Posto isto, foram utilizadas 71 cartas para a análise da revolta.

Observou-se que a escravidão não fora pauta principal na agenda política da capitania do Espírito Santo, e tampouco o cotidiano das relações escravistas constituiu preocupação aos agentes do Império português. Entretanto, no tocante aos números encontrados para as ações escravas e/ou a interferência política no controle das escravarias, a documentação referente às fazendas do Campo e Engenho Velho e aos levantes escravos são bastante expressivas (Gráfico 6). E, em comparação com o que fora visto para o cotidiano da escravidão, o evento conta com maior comunicação entre a Coroa, os governadores, as autoridades locais e a sociedade.

280 O percentual das fontes utilizadas nesse capítulo refere-se ao universo total da documentação, a

saber, os 1.191 documentos levantados. Visto que, as nove correspondências acrescentadas não foram enquadradas na classificação dos documentos relativos à escravidão.

281 Esses ofícios foram encontrados ao final da pesquisa. Dentre eles, os que se acham depositados

no APEES chegaram ao nosso conhecimento através do artigo O conto do vigário e outros contos: revoltas escravas no espírito santo dos Oitocentos de Rodrigo Goularte, a quem agradeço a gentileza de ceder as fontes por ele utilizadas.

282 Cf. Disponível em: < http://pesquisa.adb.uminho.pt/ > 283 Cf. Disponível em: < http://digitarq.arquivos.pt/ >

GRÁFICO 6. AS CORRESPONDÊNCIAS VOLTADAS AO COTIDIANO DA ESCRAVIDÃO NA CAPITANIA E À SUBLEVAÇÃO ESCRAVA DE GUARAPARIM

Fonte: APEE, Correspondências e atos do Príncipe Regente, Livro 001, 002 e 003 (1770-1822). APEES, Correspondências recebidas pelo governo do reino (1787-1814). AHU, Manuscritos Avulsos referentes à capitania do Espírito Santo (1781-1821). AN, Registros de Negócios (1808-1822). AN, Negócios da Província (1813-1820).

A discrepância quanto à distribuição das cartas que abarcam as ações escravas e/ou a interferência política no cotidiano da escravidão, no período de quarenta anos, forçou-nos a dedicar maior atenção a esta revolta. Seria a sublevação dos escravos na vila de Guaraparim um risco à manutenção da ordem social e escravista na capitania? A maior incidência desse evento na correspondência oficial deve-se à preocupação com essa ameaça escrava? Havia outros interesses envolvidos? Acredita-se que a resposta a esses questionamentos proporcionaria maior entendimento sobre como os agentes da governança pensavam as ações escravas e o próprio lugar da escravidão dentro da sociedade colonial.

As correspondências utilizadas neste capítulo compreendem as motivações para os levantes dos escravos, as diligências de combate e o seu desfecho. Antes disso, porém, deve-se destacar também o longo processo testamentário que envolveu o poder central, as autoridades locais e os supostos herdeiros sobre o pertencimento das terras em que ocorreu o levante (Tabela 4).

2 2 21 0 7 3 40 4 0 5 10 15 20 25 30 35 40 45

Enviadas pelo CU Enviadas pelos

governadores

Demandas ao governo Demandas ao CU

Co rr es p o n d ências

TABELA 4. DISTRIBUIÇÃO DA DOCUMENTAÇÃO REFERENTE À SUBLEVAÇÃO DOS ESCRAVOS NA VILA DE GUARAPARIM

Assunto documental Corpus Período Documentos

A questão testamentária

AHU 1777 a 1806 10

O sequestro dos bens pela Coroa A reivindicação dos herdeiros O novo administrador

APEES 1811 a 1814 38

As denúncias O primeiro levante A rede de contrabando

A diligência contra os contrabandistas O assassinato e o segundo levante O combate aos escravos levantados

Desfecho 1822 1

A comunicação entre autoridades AN 1814 6

Total da documentação 55

Fonte: APEE, Correspondências e atos do Príncipe Regente, Livro 001, 002 e 003 (1770-1822). APEES, Correspondências recebidas pelo governo do reino (1787-1814). AHU, Manuscritos Avulsos referentes à capitania do Espírito Santo (1781-1821). AN, Registros de Negócios (1808-1822). AN, Negócios da Província (1813-1820).

O primeiro documento alusivo às fazendas do Campo e Engenho Velho reporta ao ano de 1777. Trata-se de um requerimento enviado ao rei D. José I por uma suposta filha de Antônio de Siqueira Quental, reivindicando a herança deixada pelo arcediago. Nesse documento, assim como em outros relativos à questão testamentaria, estão anexados o testamento do clérigo, o inventário dos bens e os autos do imbróglio jurídico. Na tentativa de reconstituir os acontecimentos, por meio da recuperação da narrativa, fez-se necessário um recuo no recorte temporal inicial proposto – 1781. Há nas fontes informações que remontam ao ano de 1641 relacionadas à posse das terras. Por sua vez, o último documento encontrado, uma informação do presidente da Província, Inácio Accioli de Vasconcelos sobre as fazendas que foram do arcediago extrapola o recorte temporal final – 1821 – já que fora redigido em 1825.

Passamos, pois, ao processo testamentário envolvendo a herança do arcediago Antônio de Siqueira Quental, que contava, dentre os bens, com uma escravaria composta por mais de quatrocentos escravos.