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As filosofias dominantes e as ideologias submersas do contexto fascista

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 44-52)

CAPÍTULO 1 IDENTIDADE CULTURAL ITALIANA E SEU PERCURSO

1.2 Língua como delimitadora de identidades, nações e fronteiras

1.2.3 As filosofias dominantes e as ideologias submersas do contexto fascista

A cultura ocidental do início do século XX passa a administrar essa carga emocional e difundir o nacionalismo. A escrita assume um papel relevante para as grandes empresas culturais gerenciadas pelo Estado e para os grandes movimentos nacionalistas que coincidem com o período da propagação da tecnologia tipográfica. É nesse período também que surgem os inúmeros movimentos artísticos e literários que se propagam subitamente por toda a Europa e pela América. As vanguardas, baseadas numa ação de grupo e numa elaboração de programas culturais, artísticos e literários, passam a

construir um novo modelo de comunicação e uma nova civilização estética, diante do novo modelo da técnica. Os intelectuais, artistas e poetas encontram nas revistas o terreno privilegiado para por em confronto tendências e perspectivas culturais e literárias. Essa batalha cultural, crítica e ideológica pode mesmo ser reconstruída, tomando como base os projetos representados pelas revistas desse período que propalavam o ideário estético e legitimavam os movimentos recém-nascidos. Se por um lado as vanguardas, sobretudo na Itália, com o futurismo, elaboravam novos códigos linguísticos de comunicação rompendo com a lógica tradicional, por outro instrumentalizavam o mercado e a cultura de massa, tornando possível a circulação uniforme da cultura.

Nessa época, consumou-se a definitiva integração dos novos meios de comunicação no circuito cultural dos países avançados, com um excepcional esforço por parte dos industriais que geriam a sua produção e por parte dos governos que objetivavam controlar a sua difusão. É exatamente o fascínio pela técnica que empurraram as vanguardas ao repúdio dos códigos tradicionais e à invenção de outros modos de figurações e de comunicação na busca de outras imagens identitárias. É claro que não foi apenas a escrita que construiu todo um imaginário identitário nacional e cultural; foram criados, como sabemos, novos meios, mais eficientes, imediatos, velozes e espetaculares que apartaram, da sacralização tradicional, as artes e o saber, como muito bem observou Walter BENJAMIN (1993:65-96) em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

A crítica às formas tradicionais da arte e da cultura se resolve ao conceber a arte de forma mais integral e dinâmica que absoluta, vista como força libertadora que, superando a mediação entre a linguagem e a coisa,

saberia identificar-se com a própria vida, delineando um mundo estético. Diante da realidade concreta da sociedade e da necessidade de transformá-la, os artistas dos movimentos de vanguarda na Itália assumem ao mesmo tempo uma função política e estética. Em outras palavras, para construir uma vida “estética”, totalmente dominada pela arte, era necessário politizar a própria arte e recolocá-la no vértice dos eventos e das ações. A arte e a literatura perdem de vista o horizonte estético e tornam-se instrumentos políticos e ideológicos. Essa contradição tinha um endereço bem definido: a legitimação do Estado e a redefinição de uma identidade nacional.

Quanto ao papel idealizado pelo Fascismo para as artes de maneira geral, vejamos as palavras de Ardengo SOFFICE (1994:176):

Il Fascismo, che vuol dire Italia, ha posto implicitamene fra i principi del suo programma i principi di quest’arte. Dovrebbe forse porveli in modo esplicito’

Questo io scrivevo, quattro anni fa, e se lei lo avvicina alle parole del Presidente là dove egli auspicava per l’Italia fascista, ‘una grande arte, un’arte che comprenda in sé ed a sua volta uniformi tutte le manifestazioni della vita, un’arte che deve essere tradizionalista ed al tempo stesso all’avvenire’ lei converrà con me che, per dirla con un’espressione triviale ma efficace, più d’accordo di così si muore.

As artes, os manifestos e os protocolos literários, através de suas tramas e narrativas, seus labirintos e metamorfoses, criam esse saber performático e uma sensibilidade tecnocêntrica. A literatura e os manifestos, assim como todas as artes, passam a exercer um papel relevante na construção do Estado nacional e a delinear o perfil identitário do sujeito da nação.

A arte e a literatura ganham expressão junto às massas e passam a constituir um saber que colabora com a formação de uma identidade étnica,

cultural e nacional. Por isso, foi fundamental que os movimentos artísticos das vanguardas recuperassem seu prestígio político e mantivessem acesas as discussões que costuraram as relações entre futurismo e Fascismo, período que constitui o auge do nacionalismo e do Estado totalitário na Itália, criando as confluências e influências que determinaram a ascensão de uma arte do Estado, ou seja, de uma artecrazia (uma “democracia” da arte).

A guerra, a velocidade, a simultaneidade, a máquina, a alquimia lírica, o esplendor geométrico e mecânico, o espetáculo da poética muralista, o homem metálico, passam a ser figuras que darão corpo ao pensamento estético e político do futurismo, colaborando com apogeu do nacionalismo, no início do século XX. Após a 1ª Guerra Mundial, evoluem para as políticas totalitárias do Fascismo na Itália.

Para se compreender as relações entre o futurismo e a elaboração de uma cultura nacional, de uma arte de Estado e sua identificação, nos anos 1920-1930, com o Fascismo, é necessário fazer algumas observações sobre o nacionalismo após 1918. A identificação nacional, nesse momento, adquiriu outros meios de expressão nas sociedades modernas, urbanizadas e da alta tecnologia. O primeiro deles foi a criação da moderna comunicação de massa: imprensa, rádio, cinema. A ideologia populista, através desses meios, pôde ser padronizada, homogeneizada e, sobretudo explorada com o propósito de propaganda pelos Estados e por interesses privados.

Entre os beligerantes, o nacionalismo, que reforçava o sentido de pertencimento e renovação, tinha de ser reforçado pela guerra: “Guerra, sola igiene del mondo”, já dizia MARINETTI, em 1915, antecipando o Fascismo: La guerra?...Ebbene, sì: essa è la nostra sola unica speranza, la nostra ragione di

vivere, la nostra sola volontà! ... sì, la guerra! Contro di voi, che morite troppo lentamente, e contro tutti i morti che ingombrano le nostre strade!...”

O Fascismo e outros movimentos de direita souberam explorar essa esperança revolucionária do início dos anos 1920 e mobilizaram-se contra a ameaça comunista (FONTES, 2003).

Durante o período antifascista, o nacionalismo também adquiriu uma forte associação com as esquerdas, reforçadas, no dizer de HOBSBAWM (1998:176), subsequentemente, pela experiência da luta antiimperialista nos países coloniais, pois estavam vinculadas às esquerdas internacionais. Esse foi um dos fatores que levaram, por exemplo, as vanguardas de vários países a rechaçarem o programa do futurismo italiano, representado por Marinetti. Isso demonstra que os ideais nacionalistas difundidos pela esquerda, através dos revolucionários comunistas e antiimperialistas que estavam voltados para conseguir a independência cultural de seus países em relação à Europa (HOBSBAWM, 1998:177), não tinham o mesmo propósito do nacionalismo beligerante difundido na Itália e na Alemanha.

Os anos 1920 caracterizavam-se por um novo e inédito tipo de ideologia nacionalista baseado na imposição violenta de políticas, disfarçadas em mito. Tratava-se de ideologias muito diversas, mas que tiveram como objetivo efetivar a comunhão entre o “irracional”, a “fé” e a “razão”. Essas construções simbólicas das ideologias totalitárias solicitavam fenômenos coletivos de identificação de massa a partir de dogmas enunciados por líderes carismáticos e por organizações partidárias. Tais ideologias, que são concretizadas em âmbitos estaduais, ou em regimes tais como o fascista e o

nacionalista, apresentam-se a partir de uma radicalização do nacionalismo e com aspirações imperiais.

Umberto SILVA (1975) observou que o Fascismo não era uma ideologia, esta era apenas um conteúdo de seu domínio. Para esse autor, existiriam três níveis que poderiam estar na base do Fascismo: o primeiro seria estrutural, como uma forma de capitalismo de estado, imperialista e monopolista; o segundo, supra-estrutural, cuja forma de capitalismo exige das instituições formas adequadas e coligadas que ocultam e controlam a crescente socialização da produção; e a terceira, ideológica, ou seja, a necessidade de uma nova ideologia mais funcional e mais precisa para as relações de produção. Assim, o Fascismo seria uma nova forma de capitalismo, fundado na livre concorrência, no controle parlamentar e numa substancial desigualdade. Todavia, não pode existir um movimento sem ideologia, até mesmo a negação de cada ideologia é uma ideologia; uma ideologia negativa, se quisermos assim, mas o é. Norberto BOBBIO (1977:111) observa que a ideologia fascista era bastante clara, no sentido mesmo de um conjunto de valores supremos, nos quais se acreditava, mais ou menos fanaticamente, e pelos quais se estava disposto a lutar.

O nacionalismo assume, então, na roupagem italiana, formas particularmente antidemocráticas e bélicas ao passar do Estado forte (imperialista), que tinha como objeto o expansionismo, ao Estado totalitário, chegando, finalmente, ao mito dello Stato etico. Esse fenômeno constitui-se, em outras palavras, na tentativa de se chegar a uma relação de identificação entre o Estado e capital, para a qual se tornou necessária uma nova sublimação ideológica, que será entendida como mito do Estado ético. Essa

passagem somente pode ser entendida uma vez esclarecida a relação entre a biologia nacionalista e a fascista.

Importante para contrabalançar as visões sobre o Estado que perpassam o entre guerras na Europa e o pensamento político ocidental é a ideia de Estado marxista.

No “Manifesto Comunista”, MARX e ENGELS (1985:41) nos apresentam a seguinte ideia:

Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada de um progresso político correspondente. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada administrando-se a si própria na comuna; aqui, República urbana independente, ali terceiro estado, tributário da monarquia; depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente a soberania exclusiva do Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa.

Este posicionamento ainda é reforçado em “A Ideologia Alemã”:

Através da emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado adquiriu uma existência particular, ao lado de fora da sociedade civil; mas este Estado não mais do que a forma de organização que os burgueses necessariamente adotam, tanto no interior quanto no exterior, para a garantia recíproca de sua propriedade e de seus interesses (MARX, 1993:96).

Esta visão acerca do Estado pode ser assim aprofundada:

Vê-se, portanto, que a visão de Marx sobre o Estado não o desvincula de suas ligações com as forças sociais dominantes. Não há como ligar o Estado aos ‘interesses gerais’ da humanidade, senão ao interesse de uma única classe. No

sistema capitalista, a função do Estado reveste-se de um caráter repressor, buscando deter os movimentos revolucionários oriundos do proletariado. Sendo o Estado, basicamente, um instrumento, é possível falar em seu desaparecimento quando a revolução proletária determinar o fim da sociedade capitalista e instaurar, após o socialismo, a sociedade sem classes e comunista (GUANABARA, 2009:6). Podemos, então, concluir que no mundo ocidental o Estado fascista italiano apresenta-se como uma terceira via, política e ideológica, entre o Estado Liberal capitalista e o Estado Socialista/Comunista. É exatamente a confirmação desses pressupostos que definirá o percurso de leitura dos discursos políticos de Mussolini.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 44-52)

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