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2.2 OS DISPOSITIVOS DA CAPOEIRA

2.2.2 As frentes pró-capoeira/esporte

Nos domínios da Câmara e do Senado Federal, paralelamente às atividades do Iphan, tramitam projetos de lei que pretendem regulamentar a capoeira em diferentes aspectos. Um dos mais controversos é o Projeto de Lei nº 31, de 2009, que estava em tramitação no Senado desde 2009 e foi arquivado, pela segunda vez, em 2018, ao final da magistratura, como já havia sido feito no ano de 2014. O PL dispõe sobre a profissionalização da capoeira enquanto esporte, na sua manifestação como dança, luta ou competição, mediante remuneração. Esse projeto traz

21 O termo é significativo. É difícil ignorar que um dos primeiros sentidos relativos ao termo diz respeito a um

implicações como a exigência de que aqueles que exercem a função remunerada de professor/mestre de capoeira deverão ser profissionais de Educação Física, bem como deverão participar de conselhos de classe. A capoeira teria, em contrapartida, acesso aos recursos das políticas públicas relacionadas ao esporte.

Em audiência pública realizada na cidade de Salvador, em 2013, ficou claro que o referido projeto divide opiniões. Para os que o defendiam, foram apresentadas inúmeras argumentações contrárias: não contemplar a capoeira em todas as suas dimensões; ferir a autonomia dos grupos e privar o direito à profissionalização dos mestres de capoeira, desconsiderando o saber próprio da arte; não apresentar garantias sociais e trabalhistas, em especial aos mestres, bem como não garantir o ensino da capoeira com suas singularidades. Na ocasião, Rosângela Costa Araújo, mestra de capoeira e professora da Universidade Federal da Bahia, afirmou que o projeto de lei revela o interesse de quem controla a capoeira nacional e internacionalmente, e que “A história da capoeira é uma história de luta pela liberdade, somente transmitido pela memória e somente acessado pela memória” (citado por CANGACEIRO, 2013).

No ano de 2015, nova audiência pública (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015)22 foi

convocada pelo deputado federal Márcio Marinho do PRB da Bahia. Paulo Magalhães, que participou da composição da mesa, faz um relato da audiência e dos bastidores do evento. O texto de Magalhães (2015) sinaliza uma “polarização acirrada que se intensifica na capoeira”. De um lado, há os que defendem a institucionalização e esportivização da capoeira, tendo como representantes as federações e confederações de capoeira. De outro, os mestres de capoeira, representantes de grupos diversos, que se reuniram em torno da então recém-criada Rede Nacional de Ação pela Capoeira23, movimento pela defesa dos interesses da capoeira livre e em

repúdio a políticas públicas que comprometam a liberdade, autonomia e tradição da capoeira. Magalhães (2015) argumenta que a audiência foi convocada “na surdina” e chegou ao conhecimento da grande comunidade da capoeira por meio de um acaso. A partir de articulações da Rede, a composição da mesa, originalmente formada por representantes das federações, confederações, do Ministério dos Esportes e pela incomum ausência do Ministério da Cultura,

22 As gravações estão disponíveis na página de arquivos das transmissões da Câmara dos Deputados.

http://www2.camara.leg.br/atividade-

legislativa/webcamara/arquivos/videoArquivo?codSessao=53711#videoTitulo

23 Movimento de um coletivo de capoeiristas que apoia as ações de salvaguarda da capoeira e se posiciona

contrariamente aos projetos de lei que procuram regulamentar a capoeira a partir da perspectiva do esporte. As ações realizadas são divulgadasna página do facebook com o mesmo nome do coletivo:

https://www.facebook.com/redenacionaldeacaopelacapoeira. Em texto de setembro de 2019, o mestre Paulão Kikongo (2019) se manifesta como um dos criadores do movimento, conta um pouco da trajetória desse coletivo e reforça as pautas do grupo.

equilibrou-se com a presença de outros setores representantes da capoeira. A audiência pública foi presidida por Márcio Marinho, deputado federal pelo PRB, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, que, em 2010, propôs a criação da Frente Parlamentar em Defesa da Capoeira. Em 2013, no município de Salvador, o exemplo foi seguido pelo vereador Luiz Carlos, outro integrante da mesa, também bispo da Igreja Universal e membro do mesmo partido.

É digno de nota a aparente mobilização e interesse de pessoas sem vínculo com a comunidade da capoeira, representantes de uma entidade religiosa proprietária de empresas de comunicação com histórico de denúncias de intolerância contra as religiões de matriz africana24.

Em entrevista à TV Câmara Salvador (2017), o vereador Luiz Carlos falou sobre o debate promovido pela Frente Parlamentar em Defesa da Capoeira e, sem que algum questionamento tenha sido feito nesse sentido, levantou uma discussão provocada pela BBC – que aborda a capoeira gospel. O bispo justificou que não existe capoeira gospel, assim como não existe capoeira de umbanda; segundo ele, existe somente a capoeira. A matéria da BBC News Brasil, a qual Luiz Carlos parece se referir, havia sido publicada um mês antes de sua entrevista e tinha como título 'Capoeira gospel' cresce e gera tensão entre evangélicos e movimento negro (SCHREIBER, 2017). Tratava-se de matéria sobre um evento da capoeira evangélica realizado no Gama (cidade satélite de Brasília), que intercalou momentos de capoeira com pregações e orações. Os cânticos com vínculos à cultura afro-brasileira foram substituídos pelos versos de louvor a Jesus Cristo. A reportagem entrevistou adeptos e críticos da capoeira gospel. Outras diferenças aparecem nas falas dos mestres convertidos à religião, como a não utilização do termo batismo, reservado somente para fins religiosos e a supressão dos apelidos de capoeira, pois, conforme explica um mestre entrevistado: “não preciso me camuflar” (SCHREIBER, 2017). Do lado oposto, as críticas apresentadas à capoeira gospel dizem respeito a supostos discursos de “demonização” contra a capoeira tradicional e as religiões da umbanda e candomblé; à utilização da capoeira como estratégia dos grupos evangélicos para ocuparem espaços e novos adeptos; bem como uma apropriação, que não seria a primeira, a exemplo da capoeira como símbolo do nacionalismo, em que a história de resistência e o vínculo da capoeira com os escravos são deixados de lado.

Um segundo projeto de lei que, ao contrário do anterior, recebia apoio da comunidade capoeirística, sofreu uma reviravolta quanto ao seu texto inicial. Trata-se do PL nº 17, de 2014,

24 Ainda que muitos grupos de capoeira não tenham vínculo direto com as religiões de matriz africana, a capoeira

também é parte dessas culturas que conseguiram reelaborar suas tradições e seus vínculos com a África por meio da religiosidade que os negros trouxeram ao Brasil. A readaptação da cosmogonia e dos rituais africanos em função das relações entre negros e brancos foi denominada por Sodré (2005) de reposição brasileira às adaptações.

que tramitava no Senado Federal. Após sua aprovação em 2014, foi enviado para a Câmara Federal como PL nº 1966/2015 e, desde junho de 2015, aguardava parecer do Relator na Comissão do Esporte (CESPO). Antes de discutir as próximas etapas da tramitação desse projeto de lei, abro um parêntese. Em junho de 2016, a Mesa diretora da Câmara dos Deputados encaminhou o projeto de lei para apreciação conclusiva das seguintes comissões permanentes, na seguinte ordem: Comissão do Esporte, Comissão de Educação e Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Curiosamente, o PL não foi encaminhado à Comissão de Cultura. O primeiro e mais importante parecer ficou a cargo da Comissão do Esporte. Ora, a Roda de Capoeira e o Ofício de Mestres não foram considerados patrimônios culturais imateriais brasileiros? Qual a razão para a Comissão de Cultura ter sido deixada de fora? Como veremos adiante, ainda não existe decisão regulamentando a capoeira como esporte. Fecho parêntese.

O projeto original reconhecia o caráter educacional da capoeira e permitia parcerias entre associações ou entidades representativas dos mestres de capoeira e os estabelecimentos de ensino públicos e privados do nível fundamental e do médio. Para o exercício da atividade de capoeira não se exigia do profissional a filiação aos conselhos profissionais ou a federações/confederações esportivas, mas tão somente o vínculo com a entidade parceira. No dia 9 de agosto de 2017, em reunião deliberativa ordinária da Comissão do Esporte, foi aprovado o parecer do relator e deputado Márcio Marinho do PL, porém com substitutivo. O texto do substitutivo permite a celebração de parcerias para o ensino da capoeira nos estabelecimentos de educação básica, públicos e privados, contudo, como prevê o artigo 2º, somente para associações representativas dos mestres que estejam vinculadas a entidades de administração do desporto de capoeira.

Após a decisão, o mestre de capoeira Paulão Kikongo (2017) comentou que o relator, em seu parecer, não levou em consideração a discussão realizada na audiência pública de 2015, e assinala para a necessidade de nova luta a fim de reverter a situação. O parecer seguiu para a Comissão de Educação, para a relatoria da deputada Rosangela Gomes, também filiada ao PRB, o mesmo partido do bispo Márcio Marinho. Porém, devido a alterações na Câmara, o processo foi devolvido sem manifestação e, desde maio de 2018, encontra-se sob a relatoria do deputado Damião Feliciano, do PDT da Paraíba.

Outro ator que participa do cenário das propostas de esportivização da capoeira é o Conselho Nacional do Esporte (CNE), órgão consultivo do Ministério do Esporte. Em 2016, uma publicação do site R7.com (2016) enuncia: Conselho Nacional do Esporte decide que

e que definia a capoeira como esporte25. A decisão tomada pelo CNE (2016a) entendia que, se

a capoeira permanecesse apenas como cultura e dança, não teria o benefício dos Programas do Ministério do Esporte como, por exemplo, o Bolsa Atleta. No entanto, como esporte, seria possibilitado o repasse de recursos para as confederações e os atletas das modalidades envolvidas, no caso, a capoeira e outras artes marciais. A resolução nº 44, de 16/02/2016 (CNE, 2016a), que definiu a questão, foi publicada em 5 de maio e revogada no dia seguinte pela resolução nº 45 (CNE, 2016b), por infração ao artigo 9º do Regimento Interno do CNE, que dispõe sobre a competência da Coordenação de Análise e Registro.

Nesse jogo entre a capoeira e o esporte, um último, mas não menos importante personagem (ou sujeito da enunciação) que se destaca é o Conselho Federal de Educação Física – CONFEF, criado pela Lei n.9696, de 1° de setembro de 1988 (BRASIL, 1998). O CONFEF incluiu a capoeira no processo de regulamentação dos profissionais de Educação Física por meio da Resolução CONFEF nº 46/2002. Segundo o estatuto CONFEF (2010), art. 2º, “O CONFEF e os CREFs26 são órgãos de normatização, disciplina, defesa e fiscalização dos

Profissionais de Educação Física, em prol da sociedade, atuando como órgãos consultivos do Governo”.

Essa regulamentação tem sido alvo de questionamentos. Algumas de suas decisões, como a não exigência de registro dos professores e mestres de capoeira, já tem sido proferida pelos tribunais. No entanto, como enfatiza a notícia publicada na página oficial do CONFEF (2017), as decisões são pontuais e limitadas, e o Conselho reitera que:

[...] continua sua missão de defender a sociedade, a fim de que os serviços prestados nas áreas de atividades físicas e desportivas sejam prestados por Profissionais de Educação Física qualificados e capacitados [...] mantemos a ouvidoria ativa para receber denúncias quanto a diletantes que venham a atuar com as modalidades. (grifo nosso)

A notícia deixa claro que a prerrogativa de normatização, disciplina e fiscalização continua valendo e que os “amadores, entusiastas” devem ser denunciados. Em resumo, o

25 Segundo o Iphan (2014), o início do processo de esportivização foi homologado no ano de 1972, quando o

Conselho Nacional de Desportos submeteu a prática da capoeira às regras do pugilismo. Em consulta rápida pela Wikipedia (2018a), identificamos os outros momentos aos quais, provavelmente, a reportagem se refere, quando então teriam reconhecido a capoeira como modalidade nos anos de 1941 e 1953. Em 1941, Getúlio Vargas assinou um decreto que criava a Federação Brasileira de Pugilismo, da qual, desde o início, fazia parte o Departamento Nacional de Luta Brasileira (capoeiragem). E, em 1953, o Conselho Nacional de Desportes expediu uma resolução que estabeleceu critérios para a prática desportiva da capoeira.

26 Os Conselhos Regionais de Educação Física são autarquias especiais em cada estado da Federação,

capoeirista que não passa pelo crivo da legislação é apenas um aventureiro; portanto, muito cuidado, ele pode ser um sujeito perigoso.

Como se pode notar, as diferentes instâncias mencionadas nessa seção podem ser caracterizadas como dispositivos que estabelecem “um jogo com a capoeira”, no qual podemos ler uma variedade de mecanismos e discursos atuando de forma positiva. Foucault nos alerta que o poder não é sempre repressivo,

O que faz com que o poder se sustente, que o aceitemos, é simplesmente que ele não pesa somente um poder que diz não, mas que produz as coisas, ele induz ao prazer, ele forma o saber, ele produz o discurso; é preciso considerá-lo como uma rede produtiva que passa através de todo o corpo social muito mais que como uma instância negativa que tem função de reprimir. (FOUCAULT, 2014, p. 22)

O poder assume muitas formas, é uma rede produtiva que está intimamente ligada ao saber. A capoeira é integrante dessa rede de relações de poder e argumento que há resistência a esses mecanismos que tem por objetivo normatizar a prática. Vislumbro, ainda, que a capoeira apresenta o que entendo como certas práticas de liberdade que procuram escapar à lógica da governamentabilidade neoliberal. Na próxima seção, apresento a noção de sujeito para Foucault que servirá de auxílio à compreensão da figura do mestre de capoeira: ele que tem um papel de liderança determinante na disseminação da arte e nas práticas de resistência e liberdade. Como se verá na seção imediatamente posterior, o mestre também será destaque para a compreensão do que proponho, a saber, a capoeira como variante moderna do cuidado de si – diante dos esforços liberais de captura que ela vive hoje.