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1. DEMOCRACIA: EVOLUÇÃO, CRISE E NOVAS PERSPECTIVAS

1.3 As heranças da democracia

A democracia apresenta-se de forma controversa para os que a estudam, uma vez que não há consenso sobre suas virtudes e deméritos. No entanto, é visível a importância construtiva da democracia para as sociedades, embora sua eficácia seja objeto de dúvida dependendo do modo como é exercida.

Amartya Sen (2000, p. 182), ao falar da atuação da democracia, considera que ela é processo, meio e fim:

A democracia tem sido especialmente bem-sucedida na prevenção das calamidades que são fáceis de entender e nas quais a solidariedade pode atuar de uma forma particularmente imediata. Muitos outros problemas não são tão acessíveis assim. Por exemplo, o êxito da índia na erradicação da fome coletiva não teve um correspondente na eliminação da subnutrição regular, na solução do persistente analfabetismo ou das desigualdades nas relações entre sexos. Enquanto é fácil dar um caráter político ao flagelo das vítimas da fome coletiva, essas outras privações requerem uma análise mais profunda e um aproveitamento mais eficaz da comunicação e da participação política – em suma, uma prática mais integral da democracia.

Analisando as práticas da democracia, observa-se que muitas delas são inadequadas para seu desenvolvimento. Nesse sentido, torna-se imprescindível ver a democracia como instituidora de um conjunto de oportunidades que façam com que as pessoas valorizem seus direitos políticos e deixem de ser apáticas e alienadas diante dos constantes problemas sociais. É necessário perceber que a democracia não serve como um remédio automático para as doenças, do mesmo modo que o tamiflu é para a gripe A. As oportunidades oferecidas pela democracia necessitam ser melhor aproveitadas para que seus efeitos tenham, de fato, eficácia.

Imperioso se faz lembrar que a democracia resulta da concepção de que nenhum homem nasce com direito próprio a exercer poder sobre os outros homens. Todos vêm ao mundo livres e iguais em direitos. Desta forma, o poder que é indispensável à sociedade, como esta o é para o homem, devendo por isso ser exercido pela sociedade, ou dela provir. Para se conservarem inteiramente livres, os homens, idealmente, deveriam exercer diretamente o poder, tomando em conjunto as decisões sobre os assuntos que afetam a todos, participando, sem intermediário, do poder. Entretanto, isso é impossível nos Estados contemporâneos, devido à sua dimensão territorial, ou, até mesmo, em razão do elevado número de sua população.

No processo democrático, importantes concepções de poder foram desenvolvidas com a ideia de representação, desvinculada do mandato imperativo que atrelava o representante diretamente ao representado e o entendimento de que o representado deveria escolher o representante, através de eleições, sendo que essa ideia de governo representativo se tornou o conteúdo central, no final do século XVIII (FILHO, 2001).

Assim, em que pese as dificuldades ou os defeitos que possa apresentar o sistema democrático, esse ainda é considerado o melhor sistema. Desta forma, o único meio de eliminar a democracia é retomando a formas primitivas, ou a formas do ínfimo elemento democrático, o que, de fato, não se pode acreditar seja o que a atual sociedade almeja.

Inúmeras são as heranças do processo democrático, entre elas o surgimento do Estado de direito, um Estado que, em suas relações com seus súditos e para a garantia individual destes, submete-se ele mesmo a um regime de direito, encadeando suas ações com respeito aos cidadãos em um conjunto de regras, das quais algumas determinam os direitos concedidos aos cidadãos e outras estabelecem, previamente, os meios que poderão se empregar com o objetivo de realizar os fins estatais, sendo que essas regras objetivam limitar o poder do Estado, subordinando-o à ordem jurídica que consagram.

Com o Estado de direito, a autoridade administrativa somente pode empregar meio legalmente autorizado pela ordem jurídica vigente, para atuar diante dos administrados, ou seja, a autoridade administrativa não pode ir contra as leis existentes, nem tampouco se separar das mesmas - ela está obrigada a

respeitar a lei. Da mesma forma, no Estado de direito, que tenha alcançado seu completo desenvolvimento, a autoridade administrativa não pode impor nada aos administrados, exceto em virtude de lei, e não pode aplicar, com respeito a eles, senão aquelas medidas previstas explicitamente pelas leis ou ao menos implicitamente autorizadas por elas.

O regime do Estado de direito se estabelece, destarte, no interesse dos cidadãos e tem por fim especial preservá-los e defendê-los contra a arbitrariedade das autoridades estatais. Nesse regime, o princípio da legalidade, assume função vital, sendo utilizado de forma acentuada, haja vista que sua aplicabilidade não está associada, obrigatoriamente, à justiça, mas sim a uma legislação emanada de uma autoridade competente.

Segundo Bobbio (1992), a democracia, como fruto de um processo, decorre da consolidação dos direitos fundamentais e caminha para a paz perpétua proposta por Kant. Assim, assegura-se que os direitos do homem, democracia e paz são correspondentes da democracia, tendo em vista que sem os direitos do homem protegidos, não há democracia e, por extensão, sem democracia, não existem condições para a solução pacífica dos conflitos e, sem esta, não há paz. De tal modo, a teoria de Bobbio afirma que a democracia assenta suas bases na liberdade da maioria, que não é a liberdade de todos, e na igualdade democrática, que não é a isonomia formal do caput do art.5º da Constituição Federal de 1988, mas sim o tratamento igual dos iguais e desigual dos desiguais.

Para Tocqueville (2005), a democracia exige a responsabilização de todos para a consolidação das condições de respeito e a igual liberdade de cada um, e a entende, principalmente, como um estado social de igualdade de condições regido por uma forma de governo na qual o povo é o soberano, agregando, deste modo, igualdade e liberdade. Para esse autor, igualdade social significa que toda a diferença existente, seja econômica, intelectual ou política, refere-se a um determinado momento, sendo passível de mudança. Já a igualdade de condições é um princípio constitutivo da ordem democrática, que afeta a propriedade, os costumes, a opinião e, também, a esfera política. A soberania do povo é vista como uma manifestação política de uma condição social igualitária, na qual cada um faz parte do corpo soberano. Sob esse ponto de vista, liberdade e igualdade

harmonizam-se, podendo até mesmo se confundir, o que de certa forma seria um ideal almejado pela democracia.

Indispensável observar que, na democracia contemporânea, a liberdade e a igualdade são, na escala dos valores políticos e jurídicos, os bens mais fundamentais a que a comunidade deve aspirar coletivamente, ainda que outros bens ou valores sejam igualmente desejáveis e importantes como a justiça. Nesse sentido, a existência de opiniões divergentes é requisito essencial, devendo a sociedade civil, muito mais que o Estado em si, ter o interesse de instituir e estimular a preservação de direitos como a liberdade e a igualdade de uma sociedade.

A democracia deve ser política e social, sendo que deve ser o meio mais adequado da sociedade exercer a cidadania a seu favor e, não somente, na defesa dos interesses de determinados grupos. Observa-se que com o Estado de direito tomou força a ideia da democracia como meio de se garantir o interesse social, em detrimento de sentimentos e atitudes particularistas.

A cidadania, também, ocupa um papel central na construção do Estado democrático de direito, tendo em vista que esse não pode prescindir da participação popular como fonte legitimadora. A democracia, por óbvio, não se resume apenas a um regime político com partidos e eleições livres, mas sim é uma forma de existência social, pois uma sociedade democrática é aberta e permite a criação de novos direitos. Distante de ser entendida como a modalidade de estruturação política perfeita de uma comunidade, a democracia suporta inúmeros entraves para a sua consolidação exigindo um permanente processo com vistas a democratizar-se, conforme conhecida obra de Sousa Santos (2002).

Com os ideais democráticos, surge um novo compromisso ético, no sentido de que os setores que exercem na sociedade funções intelectuais, em vários níveis, coloquem de modo crescente a necessidade de se construir uma cultura de responsabilidade cívica que valorize de fato a cidadania. Assim, ao lado dos direitos individuais, a democracia deve assegurar, também, os direitos sociais, e não somente deve defender o direito do homem à vida e à liberdade, mas à saúde, à educação e ao trabalho.

De acordo com T.H. Marshall (1967, p. 63), os direitos de cidadania, que posteriormente foram consagrados nas Constituições de inúmeros países, foram concebidos a partir de três momentos distintos:

Os direitos civis, compostos dos direitos necessários à liberdade individual - liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça; os direitos políticos, que se deve entender como o direito de participar no exercício do poder político, como membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo; os direitos sociais, que referem-se a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade.

Desta forma, a cidadania, decorrente do processo democrático, é um fator indispensável para a promoção da inclusão social e para combater a desigualdade social, necessitando de projetos que demandam uma contínua execução e medidas de aprimoramento. Como um status do sujeito, um direito a ter direitos é indispensável para a concretização da democracia, haja vista que é um corolário do princípio democrático, pois reforça a dimensão do poder emanado pelo povo e nele fundamentado, como fonte de sua legitimação. A estrutura política e social edifica-se através da cidadania e dela não pode prescindir se, de fato, pretende manter-se fiel ao modelo de Estado democrático de direito, baseando-se na criação de espaços sociais de conflito e luta e na fixação de instituições permanentes para a expressão política, como, por exemplo, partidos e órgãos públicos, significando conquista e consolidação social e política (CHAUÍ, 1984).

Fidel Valdez Ramos, ex-presidente das Filipinas, citado por Sen (2000, p. 83), em um discurso proferido em novembro de 1988 na Australian

National University, explicita a forma como pensa que a democracia deva ser usada pelos cidadãos:

Sob um regime ditatorial, as pessoas não precisam pensar- não precisam escolher- não precisam tomar decisões ou dar seu consentimento. Tudo o que precisam fazer é obedecer. Essa foi uma lição amarga aprendida com a experiência política filipina não muito tempo atrás. Em contraste, a democracia não pode sobreviver sem virtude cívica. [...] O desafio político para os povos de todo o mundo atualmente não é apenas substituir regimes autoritários por democráticos. É, além disso, fazer a democracia funcionar para pessoas comuns.

Nesse sentido, verifica-se a importância instrumental e o papel construtivo da democracia para a sociedade, contudo as oportunidades dadas por esse sistema devem ser aproveitadas, dito de outra forma, de nada adianta a democracia conceder participação política se a sociedade é apática frente aos processos de participação. Nos dizeres de Sen (2000, p.184), “em uma democracia, o povo tende a conseguir o que exige e, de um modo mais crucial, normalmente não consegue o que não exige”.

Desenvolver e fortalecer o sistema democrático são essenciais para o processo de desenvolvimento da sociedade e para isso as liberdades políticas e os direitos civis devem ser usados com frequência e eficácia, pois esses permitirão debates e discussões abertos, uma política participativa e uma verdadeira oposição, sem perseguição, sendo que esses podem desempenhar um papel essencial no desenvolvimento de valores de uma sociedade.

Sen (2000, p. 186), ressaltando a importância da participação nos processos democráticos, considera que:

Discussões e debates públicos, permitidos pelas liberdades políticas e os direitos civis, também podem desempenhar um papel fundamental na formação de valores. Na verdade, até mesmo a identificação de necessidades é inescapavelmente influenciada pela natureza da participação e dos diálogos públicos. Não só a força da discussão pública é um dos correlatos da democracia, com um grande alcance, como também seu cultivo pode fazer com que a própria democracia funcione melhor. Por exemplo, a discussão pública mais bem fundamentada e menos marginalizada sobre questões ambientais pode ser não apenas benéfica ao meio ambiente, como também importante para a saúde e o funcionamento do próprio sistema democrático.

É importante salientar a necessidade da democracia e, mais que isso, salvaguardar as condições e circunstâncias que garantem a amplitude e o alcance do processo democrático, haja vista que a democracia é fonte fundamental de oportunidade social, porém, o processo de desenvolvimento de uma sociedade requer um sistema democrático fortalecido e desenvolvido, sendo imprescindível para isso a participação direta da sociedade na democracia, utilizando suas habilidades e capacidades para o desenvolvimento de políticas públicas realmente possíveis e eficientes.

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