• Nenhum resultado encontrado

As idiossincrasias nas relações entre sociedade, saberes e mercado

CAPÍTULO I – Os saberes compreendidos na contextualidade sócio-cultural de

1.2 As idiossincrasias nas relações entre sociedade, saberes e mercado

Tratar as relações entre sociedade, conhecimento e mercado, partindo do pressuposto de estarmos vivendo na transição paradigmática, na qual o paradigma emergente – a pós-modernidade – chega-nos de maneira

imperiosa, revirando as dimensões políticas, sociais, culturais e econômicas das relações no mundo, parece-nos ser uma marca da nossa realidade. Analisamos anteriormente que este é, inclusive, um princípio em comum a muitos estudiosos, o de estarmos imersos num contexto dinâmico social, eivado de incertezas e fragmentações.

Tomando como referência esse contexto de incertezas e possibilidades, as sociedades, como instituições contemporâneas do saber (LYOTARD, 2000), passam por uma série de transformações. A função do saber na sociedade, a produção desses saberes e como adquiri-los, são indagações que o momento atual nos convida a fazer, refletindo criticamente sobre todas as suas implicações. Não obstante nos percebemos questionando como estes saberes, sejam científicos ou populares, ocupam lugares na sociedade e como elas se constituem.

Na constituição da sociedade, percebe-se que o sujeito absorve da realidade sentidos e valores que originam sua identidade subjetiva e o próprio mundo social também absorve desse indivíduo, criando uma reciprocidade de aspectos entre o mundo social e o sujeito, no qual o último tende a aproximar-se, muito mais, das escolhas que se coadunam com sua posição na estrutura social. E como nos indica Berger e Luckmam (1973), os sujeitos escolhem aspectos em virtude de suas idiossincrasias individuais, cujo fundamento se encontra na biografia de cada um.

Dessa forma, partilhamos e vivemos no mundo, participando do ser do outro, e viabilizando ao outro, nossos valores e histórias. O mundo ao nosso ver é constituído social e historicamente com a sociedade, esta sendo tomada como, ao mesmo tempo, uma realidade objetiva e subjetiva, havendo um processo dialético de interiorização dos seus valores, em que se capta o

que está nela como realidade objetiva, e de exteriorização do próprio ser no mundo social5. Um mundo que se assume criado por outros, e também um mundo que poderá ser recriado por cada sujeito dele participante. A literatura indica que o sujeito que assume funções e papéis emanados pela sociedade os generaliza como uma realidade objetiva e subjetiva. Em referência a esse processo Berger e Luckmam compreendem que

... com relação a um membro individual da sociedade, o qual simultaneamente exterioriza seu próprio ser no mundo social e interioriza este último como realidade objetiva. Em outras palavras, estar em sociedade significa participar da dialética da sociedade (1973, p. 173).

A compreensão de sociedade a partir desses aportes nos impele a rever as idéias sobre o conhecimento e o sujeito, que se constituem gradativamente a partir do contexto, não sendo algo pronto e previsível. No entanto, os valores absorvidos não são estáveis e estão em permanente transformações, eles mesmos. É o processo de deslocamento, mencionado por Stuart Hall (2002), no qual a fragmentação e a ruptura estão impressas dentro de uma lógica do tempo e do espaço, gerando assim identidades híbridas. Logo, precisamos ressignificar concepções cristalizadas num saber técnico- científico pautado em relações monopolares e naturais. Pois, os fatos e os sujeitos ao serem desnaturalizados, se encontram com a possibilidade da problematização histórica e contextual.

5

Aproximamo-nos, apesar de resguardar as características do período de trânsito, da concepção de processo dialético da sociedade, composto de três momentos, a interiorização, objetivação e exteriorização, postos por Berger e Luckmam. Para aprofundar essa discussão, consultar BERGER, L e LUCKMAM, Thomas. A construção social da realidade. 6. ed. Petrópolis: Vozes,1973. (p.173-241).

A sociedade como criação histórica e cultural é também percebida como sendo relativa, incompleta. Portanto essa é a idéia que sustenta nossa discussão sobre sociedade, uma construção objetiva e subjetiva, que como sistemas sociais específicos são determinados por diferentes fatores que as distinguem entre si, através dos quais buscamos conhecer sua forma de produção, motor de qualquer sociedade, que fornece meios para sua existência e sobrevivência. O sujeito nesse contexto é responsável por suas transformações e permanências e pelas do meio em que está emerso6.

À educação cabe a socialização do homem, introduzindo-o num mundo objetivo de uma realidade, que não é apenas o aqui e o agora, mas um futuro que envolve mudanças, possível de ser construído por todos os sujeitos envolvidos, no qual os indivíduos ao partilhar saberes, científicos e não científicos, possam ser estes considerados como legítimos. Consideramos que a socialização de saberes depende, numa sociedade capitalista, do status do corpo de conhecimentos que cada um tem acesso.

A literatura aponta que os saberes científicos legitimam-se pelo relato especulativo, investigativo da ciência. No entanto, os saberes da prática, do sujeito prático, só se legitimam pelo relato da emancipação da humanidade. Mas, pensamos que a constituição de um saber, como útil ou não, reside no fato de compreendermos o conhecimento de maneira ampla e complexa, o qual sempre será resultado de políticas culturais. Isso nos mostra que a ciência e a tecnologia podem ser sempre instrumento de poder.

6

Tomamos o significado de emerso, dado por Freire (2001), ao conceber que com a entrada na sociedade numa época de transição, o povo emerge do processo e não está imerso nele. Pois, “se na imersão era puramente espectador do processo, na emersão descruza os braços e renuncia à expectação e exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar” (FREIRE, 2001, p. 63).

O conhecimento, encontrando-se distribuído hierarquicamente na sociedade, possui tendências funcionais, não voltado às práticas sociais a serviço da emancipação humana. Assim, o processo de socialização do indivíduo no mundo é, em muito, determinado pela distribuição social desse conhecimento. Contudo, essa distribuição, para nós, reside nesse espaço em conformidade com a prática educativa de cada sociedade em que os investimentos intelectuais concentram-se nas formas de conhecer mais valorizadas hierarquicamente no campo da ciência.

As sociedades mantêm diferentes relações com o saber, a partir dos seus diferentes grupos sociais. O lugar do conhecimento na sociedade, que se apresenta como uma sociedade de consumo e utilitarista, sob a influência da cultura da informação e comunicação, parece criar um contexto de produção de uma cultura de consumo.

O modelo de sociedade que temos trouxe desenvolvimento, mas levou o ser humano ao individualismo. É importante lutar contra o modelo excludente, autoritário, competitivo e predatório da sociedade para que possamos ter uma forma democrática de conhecimento, no qual a possibilidade de aprender aconteça em qualquer lugar e a partir dos meios acessíveis a todos.

Na proporção que resistimos a esse tipo de sociedade também transformamos, pois resistir é construir uma forma diferente de ser e estar no mundo. Ao trabalhar com os saberes, percebemos que estes têm funções sociais diversas e servem a interesses dominantes; e a cultura do consumo, por sua vez contribui para forjar identidades dispersas e superficiais, como tendência fragmentária da vida contemporânea. A cultura de consumo incita o surgimento de novas necessidades e desejos na sociedade, burlando as

diferenças sociais e materiais. A própria cultura do sucesso, muito difundida na situação contemporânea, tem a ver com a estrutura social e com a cultura da meritocracia. Assim, as identidades são delineadas, no sentido de representar a realidade objetiva na qual estão inseridas. A sociedade faz como necessidade ao indivíduo, o que é de fato contingência.

Essa é uma das mais eficazes estratégias do mercado, oferecer pseudo-escolhas, quando na verdade é exatamente por não tê-las que nos identificamos com a que nos chegam. A escolha não é para todos. Sacristán (1999) menciona que o mercado tem uma racionalidade própria que segue a economia, os interesses ideológicos, os valores sociais e os meios de comunicação. Estes princípios se retroalimentam mutuamente, interferindo no cotidiano das sociedades, junto à economia subjugam a política e a democracia. Assim, não há como eximir a educação desse projeto, pois ela não é uma determinação apenas cultural e pedagógica.

Abordar mercado relacionado à educação não significa ter uma visão unilateral dessa relação. Mas, entendermos que a educação possui funções emancipatórias, onde busca transformações, compreendendo sua tarefa histórica e política. O conhecimento não existe como uma condição primeira de consumo, mas como uma construção do sujeito, a fim de tornar-se cada vez mais autônomo na proporção que seu potencial crítico e investigativo propiciem maior entendimento do mundo que o cerca.

Sacristán (1999) advoga que o mercado não existe sozinho e independente, são as condições econômicas e políticas que determinam reciprocamente seus princípios. E, adverte-nos em relação a essa lógica de mercado na educação, apontando as diferenças entre eles:

O mercado opõe-se à educação pela lógica interna de ambos os processos: enquanto a finalidade do mercado é a obtenção dos máximos benefícios econômicos possíveis, a educação tem como função avançar e disseminar o conhecimento ao maior número de pessoas possível (SACRISTÁN, 1999, p. 246)

Outrossim, se à educação cabe “preparar o indivíduo para se compreender a si mesmo e ao outro, através de um melhor conhecimento do mundo” (DELORS, 2001, p. 47), não é dispensável a preocupação da compreensão desse mundo, dentro das suas mutações e das suas transitoriedades. Pois só assim poderá na formação do homem proporcionar a este a capacidade de julgar e escolher princípios necessários para viver sua condição histórica e cidadã, entendendo as ligações do humano com o meio em que está inserido. No contexto mercadológico o direito de cidadão é tomado pelo direito do consumidor, se ao consumidor cabe a preocupação de maximizar o bem próprio, ao cidadão cabem as responsabilidades políticas e sociais que beneficiem o individual, mas sobretudo o coletivo. É na condição de sujeito e cidadão que está a capacidade de refletir, criticar e optar na sua realidade.

A educação deve contribuir para que o indivíduo em meio a estas fragmentações da sociedade atual possa nas suas escolhas assumir responsabilidades, onde sua socialização e seu projeto pessoal de vida não sejam antagônicos. Conhecer o nosso tempo é importante para que possamos ter uma cidadania que valorize o local sem perder de vista o global e que, consciente das atuais exigências, não se encarregue em se adaptar às transformações, mas em compreendê-las e julgá-las. Significa pensar a

sociedade e a evolução técnico-científica junto às alterações que trouxeram ao modo de vida privada e coletiva.

Neste período de transição, denominado por alguns como pós- modernidade, o indivíduo sente-se confuso diante da complexidade que altera suas referências habituais. A necessidade de respeitar o outro e a diversidade de culturas, informações, organizações sociais trazem aos sistemas educativos a responsabilidade de regras comuns e coletivas, uma vez que, como nos diz Delors (2001, p. 51), “os mecanismos de socialização estão sujeitos a duras provas em uma sociedade ameaçada pela desorganização e rupturas dos laços sociais”.

Os sistemas educativos ainda pautam suas vivências numa maneira única de conhecer, num modelo de cultura e de homem que, ao não respeitar as diferenças e os talentos individuais, burlam o direito do cidadão e o respeito ao pluralismo. É a partir da educação que poderemos responder aos desafios da sociedade em trânsito. Freire (2001) nos adverte a respeito dessa relação entre homem, educação e sociedade, defendendo que “não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio” (p. 43).

Este homem que, ao adquirir hábitos culturais da sociedade e ao transmitir a sua cultura a outros homens, encontra-se ameaçado pelas constantes mudanças que se avizinham, que interferem na sua maneira de estar/ser no mundo, não podendo ele ocupar uma posição passiva diante da realidade. Para isso, suspeitamos que a educação deverá ser vivenciada com uma cultura que desenvolva a autonomia nos sujeitos, e que não esteja presa às normas e determinações disciplinadoras nas suas organizações, de maneira a formar um homem crítico às mudanças que o cercam. A formação do homem dar-se-á pela educação com características tão flexíveis quanto às mudanças,

mas com perspectivas críticas para julgá-las. Convém lembrar as palavras de Paulo Freire (2001) ao analisar a reação do homem diante das suas possibilidades de escolhas em relação às mudanças:

E sem a capacidade de visualizar esta tragédia, de captar criticamente seus temas, de conhecer para interferir, é levado pelo jogo das próprias mudanças e manipulado pelas já referidas prescrições que lhe são impostas ou quase sempre maciçamente doadas. Percebe apenas que os tempos mudam, mas não percebe a significação dramática da passagem, se bem que a sofra. Está mais imerso nela que emerso (FREIRE, 2001, p. 53).

No entanto, nos deparamos com organizações educativas com propostas voltadas exclusivamente para a formação de um sujeito que conhece de forma instrumental, programas de conteúdos de ensino sobrecarregados, formação utilitária para atender às necessidades do mercado, em detrimento da formação de uma cidadania consciente, plástica, crítica e reflexiva. A educação deverá contribuir para que o homem possa escolher em meio às mudanças, e não seja instrumento delas.

Dessa forma, também, a escola como espaço institucionalizado deve buscar se situar nesta tarefa de uma educação voltada para a vida, criticando e refletindo, na atual sociedade, essa propensão ao consumo do conhecimento, para que saindo da lógica mercadológica, busque o conhecimento de forma emancipatória, como construtor de subjetividades e cidadania. A escola não pode se eximir deste repensar. Parece-nos que ela precisa entender as implicações do atrelamento exacerbado ao mercado, pois, como uma instituição que possui uma função social, também está nesse

embate. A escola não deverá ficar aos auspícios da dinâmica social. É necessário que ressignifiquemos sua função em termos de ser promotora de uma qualidade social em contraposição à lógica do mercado que advoga na tendência de um conhecimento dentro da dimensão produtivista da racionalidade técnico-científica.

Atualmente, há uma relevância sobre a informação e o conhecimento, na qual o mercado gera tendências fragmentárias e diversificadas, propondo à sociedade uma visão descontínua e desorganizada da realidade. Estamos numa sociedade multimídia, na qual existe um preponderante culto à imagem; há uma venda publicitária da imagem. O discurso hermético e oportunista toma o lugar do debate e do diálogo com reflexão crítica. O mercado com tendências globalizadas empobrece os localismos das sociedades, trazendo campanhas publicitárias que mascaram as perdas em conquistas. Assim, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, construída com essa racionalidade capitalista, parece que pouco ampliou as possibilidades de emancipação humana, gerando individualismo e competitividade na educação (especialmente, na escola), como expressão da própria sociedade.

Portanto, como nos indicam Berger e Luckmam sob influência marxista, “o homem produz a realidade e com isso se produz a si mesmo” (1973, p. 241). É a partir do processo organizador e de compreensão da realidade que o homem se autoconhece, transforma-se, constrói sua identidade. Ao possuir uma educação que valorize uma aprendizagem com autonomia, e a formação de um homem consciente do seu papel histórico e social, não abrirá mão da sua condição de sujeito e cidadão, construindo saberes como forma de legitimar sua cultura, mas estando aberto às diversidades dos outros saberes que são necessários na construção de uma

sociedade democrática, na qual o conhecimento possa gerar um novo caminho para a emancipação dos homens.