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CAPÍTULO II – Saberes docentes, Ensino Médio e Cultura Escolar: um debate

2.2. Saberes Docentes: um legado em construção

2.2.1. Contribuições da literatura internacional

Schulman (1986 apud NUNES, 2001), pesquisador de prestígio, busca mapear os diferentes programas de pesquisa sobre o ensino e suas respectivas abordagens, indicando também possibilidades futuras em pesquisas que quando realizadas deixaram lacunas. Ele identifica cinco programas de pesquisas sobreo ensino e a docência: as pesquisas centradas nas idéias de processo-produto e os programas “Academic learning time”; são pesquisas qualitativas que têm sua gênese na psicologia; o programa “Classroom ecology” é derivado da Sociologia e Antropologia, existindo ainda os programas sobre a cognição dos alunos e outro sobre a cognição dos

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Estes estudos encontram-se significativamente mapeados e comentados na Revista Educação & Sociedade, 2001, nº 74. (Dossiê dos saberes docentes e sua formação).

professores. Schulman busca desenvolver o 6º programa, tentando explicar que a falta nos programas anteriores reside no fato de não compreenderem a cognição dos conteúdos de ensino e como os professores fornecem conteúdos aos seus alunos. Ele aponta que há uma tradição acadêmica de se realizar pesquisas sempre voltadas ao desenvolvimento da aprendizagem do aluno, por isso acha que a área da pesquisa educacional ainda é pouco rigorosa, precisando primar por uma qualidade que vise às soluções dos problemas educacionais. Segundo Nunes (2001), Schulman busca na pesquisa educacional uma interação entre aspectos intelectuais, práticos e morais.

Maurice Tardif (1991) aponta que a crise do profissionalismo está ligada à formação dos professores e aos saberes profissionais. Suas idéias versam sobre a epistemologia da prática profissional, na qual busca definir os saberes profissionais dos professores como temporais, plurais e heterogêneos, personalizados e situados. Acredita que o objeto do trabalho do docente é o ser humano e, por isso, os saberes dos professores carregam as marcas do humano. Também defende a idéia de que se estivermos bem atentos a construir um “repertório” de conhecimentos e definir competências para a formação e a prática do magistério, faremos do ensino uma “profissão” e não um “ofício”.

A partir dessas bases teóricas, vão se delineando os saberes da experiência como núcleo de referência vital para o diálogo entre os diversos saberes e para (re)construção dos saberes docentes, a partir dos quais os professores buscam transformar também suas relações na prática pedagógica. Assim, estes saberes são submetidos às certezas construídas na prática e no vivido. Tardif entende que o diferencial entre uma profissão e outra é a característica do conhecimento profissional de cada uma delas. Assim, apresenta características do conhecimento profissional docente, elencando-as

em: conhecimento especializado e formalizado; conhecimento baseado em disciplinas científicas; competência e direito de usar seus conhecimentos; conhecimento atrelado à titulação; defende que a avaliação do trabalho se dá pelos pares; que o conhecimento exige autonomia e discernimento por parte dos profissionais; formação contínua, pois os conhecimentos são evolutivos e progressivos; e, responsabilidade pelo mau uso dos conhecimentos (TARDIF, 2000). Para ele, a cultura profissional dos/das professores/professoras tem um triplo fundamento. O primeiro consiste na capacidade de julgar em situação de ação contingente. O segundo refere-se à prática da profissão baseada/concebida como processo de aprendizagem profissional e a prática como base para validar as competências (2002, p. 181). O terceiro fundamento estaria na ética profissional, relacionada não só a um trabalho perfeito, mas sobre a responsabilidade da educação diante do outro. Portanto, suas idéias buscam minimizar o abismo que separa as “teorias professadas” das “teorias praticadas”, assim como compreende um entrelaçamento entre a dimensão profissional e pessoal.

O entendimento existencial sobre os saberes docentes também foi abordado no Brasil por Nóvoa que procurou trabalhar sobre as vidas dos/das professores/professoras (suas histórias e trajetórias). Segundo Nunes, “esta nova abordagem veio em oposição aos estudos que reduziam a profissão docente ao conjunto de competências e técnicas, gerando uma crise de identidade dos professores em decorrência de uma separação entre o eu profissional e o eu pessoal” (2001, p. 29).

Segundo Nóvoa (1999), é necessário investir nos saberes de que o professor é portador, trabalhando-os de um ponto de vista teórico e conceptual. Ao fazer esta afirmação, a idéia de que o professor deverá ser visto na dimensão profissional e pessoal não descarta a dimensão organizacional da

profissão docente, pois é na complexidade da prática pedagógica e dos saberes docentes que o papel do professor é ressignificado, já que as mutações das práticas docentes só se operacionalizam na proporção em que o professor tem consciência de sua própria prática. É nítida a opção que o pesquisador português faz quanto à formação centrada no profissional, indo além de uma formação centrada nos currículos. Suas pesquisas aportam na formação crítico- reflexiva, considerando três aspectos da constituição docente: o desenvolvimento pessoal – produção da vida do professor; o desenvolvimento profissional – produção da profissão docente e o desenvolvimento institucional – produção da escola. Nas discussões de Nóvoa, percebemos que há uma preocupação em colocar o professor no centro das questões educativas e das problemáticas da investigação/pesquisa. Mas, ao perceber o professor como pessoa, avança quando diz que este tem o processo identitário no cerne da profissão, onde cada sujeito produz intimamente a sua maneira de ser. Como processo identitário, proclama três fases: ação (técnicas e métodos que têm a ver com o professor, maneira de trabalhar na sala de aula); adesão (princípios e projetos, investimento nas potencialidades dos alunos) e autoconsciência (processo de reflexão que o professor realiza sobre sua própria ação). Logo, entende identidade como um lugar de lutas e conflitos, que não é adquirida e sim construída. Por ser construída, Nóvoa (2000) nos adverte quanto ao fato de na escola estarmos sujeitos às exigências externas, com possibilidades de aderir a práticas com as quais poderemos não concordar. Anuncia:

Uma vez na praça pública, as técnicas e os métodos pedagógicos são rapidamente assimilados, perdendo-se de imediato o controle sobre a forma como são utilizados. As modas estão cada vez mais presentes no terreno educativo, em grande parte devido à impressionante circulação de idéias no mundo atual (NÓVOA, 2000, p. 17).

Para ele, a adesão às modas é a pior maneira de participarmos do contexto educacional e de termos consciência sobre nosso trabalho. O importante é fazer com que os docentes compreendam os saberes de que são portadores e trabalhem de maneira prática e reflexiva.

Zeichner (1993) tem uma linha de estudo muito próxima da de Nóvoa e Schön. Para ele o professor precisa desenvolver uma ação reflexiva no seu ensino, sendo este professor um prático reflexivo. A reflexão tem que existir na e sobre a experiência, pois as mudanças educacionais, a melhoria da qualidade de ensino e o desenvolvimento das práticas educativas só acontecerão a partir dessa prática reflexiva. É esta prática que deve oferecer ao professor mais controle sobre suas condições de trabalho, evitando uma posição de subserviência ao sistema escolar, pois as limitações institucionais (tempo, programas etc.) moldam e limitam a ação do professor. Nas considerações do pesquisador para ser reflexivo é preciso trabalhar com metas eleitas conscientemente e expor, examinando, suas teorias e práticas para si e para os seus colegas. Para ele o professor que tem uma prática reflexiva tem objetivos de emancipação.

É a partir dessas idéias que Zeichner (1993) nos traz a dimensão da reflexão como prática social, a fim de criar condições de mudanças. Ele nos fala que a reflexão poderá trazer uma ilusão se o professor imitar as práticas sugeridas por investigações que outros conduziram, refletindo sobre sua prática e a do seu aluno, mas esquecendo as condições sociais do ensino. Como também, pensar individualmente ao invés da coletividade é um ato ilusório. Assim, alerta para o fato de o professor reflexivo poder exercer práticas prejudiciais com mais propriedade e com mais justificativas, caso não perceba a dimensão social da prática reflexiva.

Concluindo as referências internacionais, elegemos os estudos de Gauthier (1998), que considera a existência de um repertório de conhecimentos de ensino que envolve os saberes profissionais do próprio professor e tem como premissa o fato de que a atividade docente não tem conseguido mostrar seus próprios saberes, se apropriando dos saberes de outras áreas, que não se coadunam com sua prática. Nunes (2001) aponta a pesquisa de Gauthier (1998) como que categorizando as profissões em três tipos: ofícios sem saberes (abrange a falta de sistematização de um saber próprio do docente); saberes sem ofício (formalização do ensino, saberes que não fortalecem a profissionalização docente) e ofícios feitos de saberes (abrange vários saberes: disciplinar, curricular, das ciências da educação; da tradição pedagógica, da experiência e da ação pedagógica).

Gauthier conceitua saber “como resultado de uma produção social, sujeito a revisões e reavaliações, fruto de uma interação entre sujeitos, de uma interação lingüística inserida num contexto e que terá valor na medida em que permite manter aberto o processo de questionamento” (NUNES, 2001, p. 34). Nas suas idéias, defende que os saberes dos professores poderão ser racionais e legítimos, sem serem científicos. Considera que as condições sociais e históricas precisam ser abordadas, pois serão nestas condições que o professor irá desenvolver sua profissão, e seus saberes estarão recebendo influências culturais e pessoais.

Estas e outras contribuições internacionais influenciam as pesquisas brasileiras e despertam uma imensa curiosidade para desvelarmos a construção dos saberes que perpassam a prática docente e a vida da escola. Com o exposto, podemos perceber que Schulman contribui quanto à cognição dos conteúdos de ensino. Nóvoa, Zeichner buscam um professor autônomo; os dois defendem um projeto emancipatório. Tardif redimensiona a formação, ação

e pesquisa na busca da ruptura da lógica disciplinar da universidade e busca um repertório de conhecimentos e Gauthier considera o trabalho docente como interativo e ressalta a dificuldade de trabalhar com saberes formalizados.

Esses estudos revelam limites e possibilidades da construção dos saberes docentes, na medida em que de modo explícito ou implícito, nos mostram os saberes como construídos e mobilizados em situações de trabalho. Esta construção face às exigências escolares e pessoais deverá ter o/a professor/professora como elemento fundante ativo, o qual, ao possuir autonomia e identidade, não poderá desvincular-se da reflexão na/sobre a ação com função crítica, inclusive dimensionando este exercício de reflexão para si, pois é provável que suas trajetórias de vida influenciem suas próprias práticas. E, a partir da prática reflexiva, deverá o professor compreender a dimensão social desta postura, a fim de evitar práticas reprodutivistas e mecânicas.