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As implicações do liberalismo e do individualismo liberal no político

CAPÍTULO 2 APROXIMAÇÕES ENTRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA E A

2.1 Impasses da Democracia liberal

2.1.2 As implicações do liberalismo e do individualismo liberal no político

A incompreensão da indivisibilidade dos direitos fundamentais induz a outro elemento central para o entendimento da democracia hodierna, que é a preponderância de alguns aspectos intrínsecos ao liberalismo, como o individualismo liberal, e suas reverberações na política, e no atual conceito do político, em voga.

Chantal Mouffe (1996, p. 186, 188) critica o liberalismo quando este tenta relegar o pluralismo e a discordância para a esfera privada, com a finalidade de garantir o consenso no domínio público, sendo as questões controversas retiradas da agenda em favor deste consenso racional. Segundo a autora, o liberalismo político vende a imagem da sociedade ordenada, em

que não há lugar para o antagonismo, a violência, o poder e a opressão, quando na verdade todos estes elementos foram apenas escamoteados, tornados “[...] invisíveis através de um estratagema inteligente.”

Mouffe (1996, p. 165, 187) opina que a política, enquanto tentativa de domesticar o político, de estabelecer a ordem, está ligada aos conflitos e antagonismos, o que inviabiliza um pretendido “consenso ‘racional’ absolutamente abrangente”. Arrimada na crítica schmittiana ao liberalismo político, a autora aponta que “[...] a crença liberal de que o interesse geral é produto do livre jogo dos interesses privados e que é possível alcançar um consenso universal racional com base na livre discussão tem necessariamente de tornar o liberalismo cego ao fenômeno político.”

Carl Schmitt (2009, p. 75-76), em seu tempo, negou inclusive a existência de uma ideia de política própria ao liberalismo, evidenciando, ao contrário, a “negação do político” ínsita à ideologia:

[...] a questão que se coloca é sobre a possibilidade de se obter uma idéia especificamente política a partir do conceito puro e conseqüente do liberalismo individualístico. A resposta há de ser negativa, pois a negação do político, contida em todo individualismo conseqüente, conduz a uma prática política da desconfiança contra todos os poderes políticos e formas de Estado imagináveis, mas nunca a uma própria teoria positiva de Estado e política. (SCHMITT, 2009, p. 75-76).

Ocorre que, a despeito disso, consoante advertência de Mouffe (1996, p. 187, 195), “[...] negar o político não o faz desaparecer; apenas conduz ao espanto perante as suas manifestações e à impotência no seu tratamento.” O liberalismo, segundo a autora, ao querer definir o significado do universal, identificando-o com um particular determinado, incorre no mesmo erro do totalitarismo, qual seja, a rejeição da indeterminação democrática.

Mouffe (1996, p. 149) recorre novamente à obra schmittiana dando razão ao jurista alemão ao destacar as deficiências do individualismo liberal no que diz respeito ao político, e entende que muitos dos problemas atinentes às democracias atuais originam-se no fato de a política ter sido reduzida a uma “atividade instrumental” voltada à “realização egoísta dos interesses privados”. Prossegue Mouffe afirmando que “[...] a limitação da democracia a um mero conjunto de procedimentos neutros, a transformação dos cidadãos em consumidores políticos e a insistência liberal numa suposta ‘neutralidade’ do Estado esvaziaram a política de toda a sua substância”, reduzindo-a à dimensão econômica e despindo-a de seus componentes éticos.

bloqueando o pensamento liberal na questão do político (MOUFFE, 1996, p. 164). Este bloqueio para a dimensão coletiva do político fica evidente quando se aprecia a incompreensão da atuação de movimentos sociais (portanto, coletivos), como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil. O prejuízo advindo deste apego atávico ao liberalismo torna-se concreto quando da criminalização dos movimentos sociais, tidos como movimentos que atentam contra o Estado de Direito, quando na verdade lutam pelo Direito e pela justiça.

Neste sentido, Mouffe (1996, p. 13) mostra que o “político” determina a própria condição ontológica do homem, não se restringindo a uma esfera específica da sociedade, e que esta concepção se encontra em contradição com o pensamento liberal, o que torna plausível a incompreensão dos movimentos políticos, tachados de patológicos, já que não podem ser apreendidos em termos individuais.

Sobre a posição do indivíduo no liberalismo, Zygmunt Bauman (2000, p. 169) traz interessante síntese:

O liberalismo fica com um grupo de indivíduos livres mas solitários, livres para agir mas não tendo voz ativa no cenário em que atuam nem a mais vaga ideia do propósito a cujo serviço pode ser colocada sua liberdade e, sobretudo, nenhum interesse em cuidar para que outros sejam também livres para agir e em falar-lhes sobre os usos da liberdade de cada um. Em tal aglomeração de indivíduos solitários, absolutamente livres mas totalmente impotentes e indiferentes, as contradições imediatamente afloram entre a liberdade e a igualdade, entre o indivíduo e a sociedade, entre o bem-estar público e privado – o tipo de contradições de que o liberalismo é notoriamente incapaz de dar conta, mas também o tipo de contradição que só o próprio liberalismo, na medida em que continua relutante em endossar o princípio republicano, faz nascer.

José Eduardo Faria (1982, p. 125) elenca sete características do individualismo que, segundo ele, estão presentes em maior ou menor grau nos modelos de democracia liberal e, por isso, resumem os aspectos centrais das concepções liberais de democracia:

a) o que confere aos seres o atributo de humanos é a liberdade de dependência da vontade alheia;

b) a liberdade de dependência alheia significa liberdade de quaisquer relações com os outros, menos as relações que os indivíduos provocam voluntariamente, visando a seu próprio proveito;

c) o indivíduo é, basicamente, proprietário de sua pessoa e de suas capacidades, pelas quais ele não deve nada à sociedade;

d) embora o indivíduo não possa alienar a totalidade de sua propriedade de sua própria pessoa, ele pode alienar sua capacidade de trabalho;

e) a sociedade humana consiste num complexo de relações de mercado;

f) na medida em que a liberdade das vontades dos outros é o que torna humano o indivíduo, a liberdade de cada um somente pode ser legitimamente limitada pelos deveres e normas necessários para garantir a mesma liberdade dos outros.

g) a sociedade política, então, é um artifício humano para a proteção da propriedade individual da própria pessoa e dos próprios bens; por extensão, é um artifício humano para a manutenção das relações ordeiras de trocas entre os indivíduos, considerados como proprietários de si mesmos.

Toda esta dinâmica liberal-individualista afeta diretamente a funcionalidade da democracia liberal, gerando o quadro descrito por Slavoj Zizek (2003, p. 174): “[...] à parte uma administração econômica anêmica, a principal função do centro liberal-democrático é garantir que nada aconteça realmente na política: a liberal-democracia é parte do não-evento.”

Obviamente, a democracia deveria ser justamente o espaço do “evento”, das rupturas, do acontecimento, e não um regime enclausurado, fechado à vontade de mudança popular, que busca uma neutralidade impossível de ser alcançada, e uma “estabilidade” incoerente com o próprio instituto da democracia. Democracia deve ser abertura ao novo, ao futuro, e não fechamento do presente, da manutenção do status quo, consoante se argumentará mais adiante.

E, no presente trabalho, entende-se que esta clausura se deve muito ao uso que se faz do Direito nos regimes de democracia liberal. O Direito protagoniza esta operação de cristalização da democracia, de modo que não há como pensá-los separadamente.