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CAPÍTULO 2 APROXIMAÇÕES ENTRE A QUESTÃO DEMOCRÁTICA E A

2.1 Impasses da Democracia liberal

2.1.3 Democracia e o fechamento imposto pelo Direito

Conforme dito, entende-se que outro elemento central para a conformação dos sistemas políticos liberais é a contenção da democracia levada a cabo pelo direito contemporâneo. O cabedal de critérios para a configuração do regime democrático, tratado anteriormente, é todo construído juridicamente, através das Constituições e legislações em geral que conferem a materialidade técnica e a legitimidade para a construção da democracia naqueles moldes. A complexa estrutura normativa para este fim criada é de fundamental importância para a manutenção do sistema político.

A Democracia contemporânea, assim, pede um Direito igualmente aferrado ao paradigma liberal como seu fiel escudeiro. Modelo este de Direito que se encontra anacronicamente arraigado a paradigma pretérito, vetusto, sem a menor condição de oferecer resposta adequada às demandas atuais da sociedade, conforme argumentado no primeiro capítulo deste trabalho, e que segue conformando a democracia e toda a potencialidade nela contida.

inescapavelmente pela abordagem de sua relação com o constitucionalismo, da forma como este se apresenta hodiernamente.

Sabe-se que o constitucionalismo moderno tem seu momento de afirmação com as revoluções burguesas ocorridas na Europa (Inglaterra, em 1688, e França, em 1789) e Estados Unidos (1776), concomitantemente ao nascimento do Estado Liberal e à adoção de um modelo liberal na economia, e que, deste modo, a “[...] essência desse constitucionalismo está na construção do individualismo e de uma liberdade individual, construída sobre dois fundamentos básicos: a omissão estatal e a propriedade privada”, não havendo neste primeiro momento uma conexão entre constitucionalismo e democracia (MAGALHÃES, 2006, p. 11-12, 15). Segundo Gilberto Bercovici (2008, p. 44) há uma coincidência entre “[...] a formação do Estado moderno e do constitucionalismo como vinculados à formação e desenvolvimento do capitalismo”, de modo que “[...] capitalismo e Estado estão indissociavelmente ligados, são parte da mesma evolução histórica.”

O desejo de se finalizar as revoluções, afastando, por conseguinte, a ameaça da soberania do povo, marcará as constituições liberais estabelecidas no século XIX (BERCOVICI, 2008, p. 168). Neste contexto,

[...] o constitucionalismo, e o direito constitucional, estão estreitamente vinculados com o liberalismo. O Estado misto vai ser visto como a melhor forma de governo. O governo constitucional representativo, ao misturar elementos democráticos com elementos não democráticos, configura, nas palavras de Manin, a “constituição mista dos tempos modernos”. O constitucionalismo do século XIX se coloca em confronto com a revolução e seus corolários: poder constituinte, soberania popular e expansão da democracia (BERCOVICI, 2008, p. 176).

De acordo com Bercovici (2008, p. 281), “[...] o risco do ‘despotismo democrático’ vai ser combatido com o discurso do Estado de direito fundado na oposição entre direito e política.” E o direito público ocidental se afirma opondo-se à soberania popular, entre os séculos XIX e XX, sendo que a soberania estatal, o Estado de direito e a Constituição do Estado privada de uma origem popular, passam a ser os sustentáculos do sistema de direito público (BERCOVICI, 2008, p. 282).

Antonio Negri (2002, p. 21) manifesta crítica contundente com relação ao constitucionalismo, afastando-o da democracia e opondo-o ao paradigma do poder constituinte do povo: “[...] o paradigma constitucionalista é sempre o da ‘constituição mista’, da mediação da desigualdade e na desigualdade, portanto um paradigma não democrático”, enquanto o “[...] paradigma do poder constituinte, ao contrário, é aquele de uma força que irrompe, quebra, interrompe, desfaz todo o equilíbrio preexistente e toda continuidade

possível.”

Para o filósofo italiano, este poder constituinte, sim, estaria ligado à ideia de democracia, “concebida como poder absoluto”. Negri (2002, p. 21-22) concebe o constitucionalismo como uma “doutrina jurídica que conhece somente o passado”, ligada “às potências consolidadas e à sua inércia, ao espírito que se dobra a si mesmo – ao passo que o poder constituinte, ao contrário, é sempre tempo forte e futuro.”

O autor ressalta, ainda, que a democracia resiste à constitucionalização, já que “a democracia é teoria do governo absoluto, ao passo que o constitucionalismo é teoria do governo limitado e, portanto, prática da limitação da democracia” (NEGRI, 2002, p. 8). Negri (2002, p. 10) critica a desnaturação do poder constituinte pelo Direito:

O poder constituinte deve ser reduzido a norma de produção do direito, interiorizado no poder constituído – sua expansividade não deve se manifestar a não ser como norma de interpretação, como controle de constitucionalidade, como atividade de revisão constitucional. Uma pálida imitação poderá ser eventualmente confiada a atividades referendárias, regulamentares etc. de modo intermitente, dentro de limites e procedimentos bem definidos. Tudo isso do ponto de vista objetivo: uma fortíssima parafernália jurídica cobre e desnatura o poder constituinte.

Dentro de uma perspectiva “constitucionalista” e liberal, “[...] o poder constituinte é explicitamente submetido ao fogo da crítica e à limitação institucional, através de uma análise que desmascara – ou pretende desmascarar – toda pretensão soberana da comunidade” (NEGRI, 2002, p. 21). Em síntese, para Negri (2002, p. 444), “[...] o constitucionalismo é um aparato que nega o poder constituinte e a democracia.”

De fato, a prevalência do constitucionalismo enfraquece a democracia, e a tentativa de fechamento democrático com a finalidade de se salvaguardar os direitos advindos das demandas liberais nas constituições, confere o poder de árbitro ao constitucionalismo quando na verdade ele é parte no conflito (BERCOVICI, 2008, p. 17). Não se pode atribuir ao constitucionalismo o peso de determinar, em última instância, qual a democracia e quais os direitos devem prevalecer, rechaçando-se a proeminência da soberania popular. Vale lembrar que “[...] o princípio da soberania popular significa que a constituição é fruto da soberania popular, e não o contrário” (BERCOVICI, 2008, p. 20), ou, consoante posicionamento de Antonio Negri (2002, p. 40), “[...] o direito e a constituição seguem o poder constituinte – é ele que dá racionalidade e forma ao direito.”

Para Bercovici (2008, p. 31-32), “[...] o poder constituinte contradiz as pretensões do ordenamento jurídico de estabilidade, continuidade e mudança dentro das regras previstas”, mas, todavia, o debate atual sobre ele cinge-se aos limites da revisão constitucional. José Luis

Bolzan de Morais (2006, p. 124), sobre esta estabilidade, critica: “[...] a estabilidade jurídica, campo de estabelecimento de normas conviviais, não pode significar o aprisionamento, o congelamento, de uma vez por todas, de seu conteúdo. Não pode significar o fim da democracia.”

A manutenção de uma democracia liberal arrimada em concepções do Direito em geral, e do constitucionalismo em particular, atavicamente ligadas ao liberalismo, cria uma situação de arrefecimento da manifestação do poder popular, sob o pretexto da estabilidade, da sociedade pacificada pelo consenso, livre das lutas políticas que sempre desembocaram em conflitos sangrentos.

Bercovici (2008, p. 45) descreveu a forma como as classes dominantes lidaram com as revoluções:

As experiências de fundação dos regimes constitucionais inglês, americano e francês demonstram os esforços das classes dominantes em limitar e fazer desaparecer o poder constituinte do jogo político. A política necessita de paz e estabilidade, ou seja, a revolução permanente não é possível, segundo Roman Schnur. O sucesso da revolução é sua conclusão com uma construção positiva, uma nova ordem política. Este discurso “normaliza” tudo por meio da redução da legitimidade à legalidade. A Constituição consiste, portanto, neste ponto de chegada revolucionário, que aplaca a energia revolucionária e sedimenta as bases para a nova sociedade. Ocorre que historicamente estas “construções positivas” das revoluções apareceram para resguardar os direitos conquistados pelas novas classes dominantes, e para fazer cessar o evento da mudança social.

O constitucionalismo nasce, destarte, contra o poder constituinte, com a finalidade de limitá-lo (BERCOVICI, 2008, p. 45), sendo para tanto estabelecido medidas jurídico- institucionais: “[...] a separação dos poderes, por exemplo, foi pensada menos para impedir a usurpação do poder executivo do que para barrar as reivindicações das massas populares.”

É verdade que houve mudanças no constitucionalismo no desenrolar de sua recente história, passando de liberal a social (no que houve a incorporação de consideráveis direitos e garantias sociais), e hoje, em tese, se transformando em democrático, com a participação popular adquirindo certo protagonismo; mas, factualmente, o que se observa é uma considerável regressão, um momento de crise, em virtude da submissão do Direito aos falsos imperativos do discurso econômico, conforme salienta José Luiz Quadros de Magalhães (2006, p. 16), e mesmo políticos, conforme salientado anteriormente.

E aqui vale insistir na argumentação aduzida no final do primeiro capítulo: pouco vale a consagração normativa de direitos se, de um lado, a materialização dos mesmos for obstada

pela ineficácia proveniente dos diversos problemas já apontados (como a vinculação do Direito e de seus intérpretes ao recalcitrante paradigma liberal), da mesma forma em que não pode ocorrer a situação em que a formalização de direitos seja realizada para que as demandas e lutas na sociedade se arrefeçam, e que novos direitos, novas demandas, percam a legitimidade frente à cristalização operada pelo constitucionalismo.

Vê-se que, neste ponto, o Direito não dá conta, sozinho, de alterar o panorama. Seu horizonte restrito pede a aproximação de outras áreas para que as demandas que lhe pesam possam ser solucionadas. Por isso a opção pela aproximação com a teoria democrática, e de demonstrar que as limitações ínsitas à democracia contemporânea tem forte ligação com a maneira com a qual o Direito se apresenta atualmente, de forma hegemônica. Daí vem a importância de se aproximar Direito e Democracia, com vistas à superação dos limites destacados.

O desejo de superação da democracia liberal anda vis-à-vis com o desejo de um direito mudancista, que se oriente à transformação social profunda. Cabe o questionamento acerca da existência deste “outro” Direito, temática esta que não será abordada, já que não encontraria espaço no presente texto. Todavia, cabe salientar que esta outra configuração do Direito só será possível com a mudança da concepção de democracia hoje hegemônica.

O próximo tópico pretende trabalhar com esta outra concepção de democracia.