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As instituições museológicas e a arte de vanguarda

Capítulo I Paisagem cultural: museus no Brasil antes da criação dos museus de arte

2.2 As instituições museológicas e a arte de vanguarda

Uma das marcas das vanguardas europeias era seu desejo de ruptura com os valores vigentes tanto na tradição das artes plásticas ocidentais quanto nos valores sociais e políticos que imperavam na Europa naquele começo de século XX.

A questão do moderno já pode ser vista em Gustave Courbet no final do século XIX, cuja produção “coloca em xeque a ideologia acadêmica, que encontrava sua legitimidade na história”, seguido por Manet que “destrói a ordem estabelecida pelo fato de investir no presente, de não ataviar-se com referências „culturais‟ derivadas do passado e que, por esse gesto radical de percepção do real, rejeita de uma só vez classicismo, romantismo e academismo” (FABRIS, A.; ZIMMERMANN, 1984, p.18- 19)29. De Courbet e Manet, as pesquisas dos artistas modernos geraram os conhecidos

ismos (o cubismo que geometriza a figura para destacar o plano bidimensional da

29 As autoras fazem suas afirmações com base em reflexões sobre a obra de Pierre Daix. L’Ordre et

pintura, o futurismo que utilizava o recurso do contraste de cores, o suprematismo que trabalhava formas geométricas básicas e buscava a plástica pura, o construtivismo que utilizava as cores primárias em construções geométricas) e outros movimentos, como Bauhaus que aplica conceitos estéticos na indústria do design, concretos que se afastam de conotações simbólicas, neoconcretos que buscam renovar a linguagem geométrica e aceitam um certo lirismo na sua produção além de alguns artistas cujas produções têm sido analisadas individualmente. Os vários movimentos da arte moderna buscaram romper com o passado e com uma história específica da visualidade, para focar somente no presente. De acordo com Peter Bürguer (2008, p.119),

[...] nos movimentos históricos de vanguarda foram desenvolvidas formas de atividade que não podem mais ser adequadamente compreendidas sob a categoria de obra: por exemplo, as manifestações dadaístas, que faziam da provocação do público seu objetivo declarado. Em tais manifestações, no entanto, trata-se de muito mais do que a liquidação da categoria de obra, a saber, da liquidação da arte como atividade dissociada da práxis vital.

Como temos indicado, a arte moderna de vanguarda na Europa rompeu com a arte burguesa e com as instituições que a representavam, buscando trazer à tona os equívocos de sua estrutura e do que poderiam representar como formas de cerceamento de liberdade para a expressão artística em sua plenitude. A arte moderna buscou, portanto, uma nova sociedade. Dessa forma, muitas de suas estruturas, tais como a formação por meio das escolas oficiais de belas artes, os salões oficiais e os museus, foram vistos como desnecessários e incômodos para que a plenitude da arte participante de uma nova sociedade pudesse deslanchar. Peter Gay (2009, p.68) reitera que “a arte, assim prega a doutrina moderna, serve apenas a si mesma – não à riqueza cúpida, não a Deus, não à pátria, não à autoglorificação burguesa, e certamente não ao progresso moral. Ela se orgulha de suas próprias técnicas e padrões, de seus próprios ideais e glorificações.” Por outro lado, Gay relembra que apesar de tais proposições serem demasiado diretas para muitos pintores, “ [...] tal doutrina teve um impacto maior do que permitiria prever sua popularidade bastante limitada, [porém] os artistas antiburgueses e antiacadêmcios achavam ótimo explorar suas implicações sem subscrever integralmente seus princípios (GAY, 2009, p.69).”

Uma das instituições sistematicamente atacada por artistas e filósofos modernos foi o museu. Theodor Adorno (1962), ao fazer a leitura de Paul Valéry e de Marcel

Proust, nos quais ambos os autores discorrem sobre o papel dos museus, revela, embutidos em tais conceitos, uma discussão moderna sobre o papel das instituições na sua relação com a arte. Para Paul Valéry30

o museu é a barbárie, pois perturba a expressão da obra em sua plenitude. Para o autor, o museu expressa um tom conservador no que diz respeito à cultura e classifica-o como local onde a arte torna-se assunto de educação e informação e a erudição seria, em matéria de arte, uma espécie de derrota (ADORNO, 1962, P.190).

Na sequência do texto, Adorno contrapõe Paul Valéry a Marcel Proust, para quem também no museu há uma referência à mortalidade dos artefatos comparando-o a uma estação de trem, a medida que faria parte da vida da cidade, mas estaria afastado do cotidiano. Portanto, é por essa característica que Proust dá valor ao ato do espírito que isolou as obras de seu ambiente natural. Para ele “a obra de arte vista durante o jantar não nos presenteia com a mesma alegria inebriante que somente se pode esperar no salão do museu, que simboliza muito melhor, em sua nudez e abstinência sóbria de todos os detalhes, os espaços interiores onde o artista se recolhe para criar” (ADORNO, 1962, P.192). Assim, para Proust é na morte das obras – no museu – que elas são despertadas para a vida, ressaltando o aspecto trágico do moderno.

Ambos os autores citados por Adorno, incluindo-o, tratam a instituição museu como um local necessariamente atrelado aos valores de uma verdade universal, já que, com base nos objetos, são testemunhos de uma experiência e resultado concreto da passagem do ser humano sobre a vida. Da mesma forma, sua análise pode culminar no raciocínio da necessária morte da arte, pois ela deveria estar inserida no cotidiano. Portanto, a experiência do museu, oposta ao cotidiano, é vista, sobretudo, pelas vanguardas europeias como sepulcro, mausoléu porque diferente da vida.

Uma das questões primordiais para o raciocínio moderno, também incorporado pelas nossas vanguardas construtivas modernas, era a ideia de que a arte deveria confundir-se com a vida comum ao assumir um papel de educação e de integração social promovendo, por meio do convívio cotidiano, o fim das diferenças culturais que poderiam culminar em um pensamento universal. Essa tendência se fortaleceu, inclusive, como uma das respostas ao realinhamento das forças econômicas, sociais e políticas do período do pós-guerra.

30 Adorno baseia-se no texto „Le problème des musées‟ de Paul Valery, parte da coletânea Pièces sur l’art de 1931.

De certa forma, com base nesse raciocínio, a arte moderna, de fato, decretaria seu próprio fim, já que, inserida no cotidiano, sobretudo por meio da arquitetura e do design industrial, todos passaríamos a conviver em um mundo renovado no qual a arte ocuparia seu lugar dentro dos novos modos de produção31

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A arte moderna, inserida no cotidiano, veio propor diferentes paradigmas que pudessem conduzir a uma nova sensibilidade e consciência. Embora arriscando na aposta de seu próprio fim, as vanguardas artísticas tomam para si a função de alertar e conduzir às mudanças necessárias para a criação e fortalecimento de uma nova sociedade mais humana. Para isso, era necessário o enfraquecimento das tradições vistas como instâncias obsoletas e conservadoras. O projeto moderno de vanguarda em arte é, antes de tudo, ético, ao propor-se o papel revolucionário na busca da transformação da sensibilidade e da função da arte na sociedade industrial.

Assim, a arte de vanguarda procura romper com a própria tradição das belas- artes para inserir-se no universo cotidiano. Ao ponderar sobre a relação das vanguardas europeias do começo do século XX e suas práticas sociais, Crow (1988, p.3) afirma que

[...] desde o seu começo, a vanguarda artística descobriu, renovou ou reinventou a si mesma por meio de sua identificação com formas de expressividade e mostras marginais, “não artísticas” – formas desenvolvidas por outros grupos sociais a partir dos materiais degradados pela manufatura capitalista32.

Por outro lado, mesmo tendo sido alvo de duras críticas por seu papel institucional, os museus de arte moderna, ao longo dos anos 1950, em várias partes do mundo tornam-se palco de discussões. Algumas, inclusive, levantam questões bastante relevantes sobre seu papel e o das próprias instituições em geral e da cultura que representam. Andreas Huyssen (1994, p.34) afirma que

nos três últimos séculos, [...] o museu se tornou o local privilegiado para a „querelle des anciens et des modernes‟. Ele suportou o olho

31 De acordo com Donald Kuspit (2008, p.41), “a divisão entre razão e sentido persegue a arte moderna, uma ruptura que a enfraquece por dentro, eventualmente destruindo-a – separando-a em facções, cada uma proliferando incontrolavelmente sem confronto com a outra [...]. Em outras palavras, essa situação desequilibrada, que é evidente na arte moderna desde o seu começo – desde Manet, para quem todo o esforço para processar uma representação razoável da realidade, muitas vezes, usou meios irracionais e sensuais para fazê-lo – é tão entrópica quanto é a criatividade. [...] na história da arte moderna a entropia se tornou dominante, de tal maneira que ela, cada vez mais, parece uma falta de coragem criativa, ou ainda, mais especificamente, imaginação criativa e intuição criativa.” Tradução minha.

cego do furação do progresso ao promover a articulação entre a nação e a tradição, a herança, o cânone, além de ter proporcionado a planta principal para a construção da legitimidade cultural tanto no sentido nacional como universal.

Isso se dá, a nosso ver, em função da organicidade que a estrutura museológica mantém com o sistema de produção cultural mais amplo e por sua flexibilidade em relação à produção de sentidos, como já indicamos anteriormente. Mais uma vez Huyssen (1994, p.34) afirma que “[...] aqueles que defendiam a renovação da vida e da cultura consideravam o museu moderno um sintoma da ossificação cultural.” No entanto, o autor lembra que “a planejada obsolescência da sociedade de consumo encontra seu contraponto na implacável museumania.”

Podemos pensar sobre a flexibilidade estrutural dos museus na sua relação com a arte e com o público com base na análise de Vattimo (1992, p.33), que, ao avaliar o problema da “verdade” em ciências humanas, permite que pensemos como essa questão é primordial para o universo das instituições, em particular, as museológicas.33 Diz o autor que

[...] a lógica com base na qual se pode descrever e avaliar criticamente o saber das ciências humanas, e a possível „verdade‟ do mundo da comunicação mediatizada, é uma lógica “hermenêutica”, que procura a verdade como continuidade, „correspondência‟, diálogo entre os textos, e não como conformidade do enunciado a um mítico estado de coisas. E esta lógica é tanto mais rigorosa quanto menos se deixa impor como definitivo, um certo sistema de símbolos, uma certa “narração”. [...] se (já?) não pudermos iludir-nos sobre a possibilidade de revelar as mentiras das ideologias e atingir um fundamento último e estável, podemos, porém, explicitar o caráter plural das “narrações”, fazê-lo agir como elemento de libertação da rigidez das narrações monológicas, dos sistemas dogmáticos do mito.

No Brasil, bem ao contrário das pautas comuns às vanguardas históricas europeias a partir dos anos 1910, seu espaço de expressão, desde a segunda metade dos anos 1940 e durante os anos 1950 esteve intimamente atrelado à questão do fortalecimento das instituições. Sugerimos que tal circunstância pode ser explicada com base em três hipóteses:

1) Ao se coadunar com um anseio social de canais de expressão, as instituições, ao invés de chocar as novas vanguardas são, pelo contrário, solicitadas como lócus para

33 Na verdade, não se trata apenas da institucionalização, mas das formas de divulgação e distribuição da arte, sobretudo através de distintas possibilidades de exposição e discussão sobre o fenômeno artístico.

expressão de uma nova sensibilidade artística que, de outra forma, não encontraria canal de manifestação pública34;

2) Ao serem criados no Brasil, os museus de arte moderna já vem sofrendo críticas que reverberaram na imprensa e que poderiam sugerir, no nosso caso, que o espaço museológico pode ter sido incorporado, como indicamos anteriormente, como espaço de negociação de sentidos35;

3) As vanguardas nacionais podem ter assumido, no âmbito das instituições, o papel do “outro” antropológico e, por isso, talvez fosse tão importante ampliar suas possibilidades narrativas como sugerido por Gianni Vattimo.

O vínculo que pretendemos indicar entre as instituições museológicas e as vanguardas não quer dizer que a solicitação de espaços museológicos focadas em arte moderna foi uma demanda em particular de representantes daquelas vanguardas construtivas, ou mesmo dos artistas de vertentes abstratas em geral. No entanto, a arte abstrata de vertente construtiva, ao se denominar como vanguarda, acabou por polarizar uma série de debates que se travaram na busca de afirmação de uma nova linguagem. Assim, sugerimos que os artistas das vanguardas construtivas e seus partidários acabaram por se situar nas discussões que viam na instituição de museus de arte moderna, justamente a quebra de um paradigma que reduzia o papel dos museus exclusivamente às suas tarefas de preservação e apresentação de um tipo de arte “passadista”.

34 Mesmo projetos neoconcretos como o “Poema Enterrado”, ocupação ambiental, de Ferreira Gullar ou os “Parangolés”, de Helio Oiticica e inúmeras obras de caráter experimental que eram executadas fora do ambiente museológico, propunham ao eventual público uma relação “musealizada” ou ainda, “culturalizada”. Ainda que inseridas no meio ambiente tais produções são destacadas do mesmo para despertar uma relação estética ou sensível. Com isso, indicamos também que, a despeito de estarmos tratando de museus tradicionais, a relação museológica pode se estender para outros ambientes.

35 Annateresa Fabris (2008, p. 15) relembra que em 1943, Sérgio Milliet começa a desenvolver na Biblioteca Municipal de São Paulo um embrião de um museu de arte moderna incumbindo Maria Eugênia Franco de estruturar a Seção de Arte. Três anos mais tarde, em artigo no Diário de São Paulo (11/4/1946) Milliet sugere uma campanha que exigisse dos poderes públicos a criação de tal instituição. O crítico Luís Martins, na coluna do dia seguinte (12/4/1946) no mesmo jornal, dá início a uma polêmica que envolveu Maurício Loureiro Gama, editor do jornal, João de Scantimburgo, jornalista, o escritor Monteiro Lobato, os artistas Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, o prefeito de São Paulo, Abrahão Ribeiro e seus irmãos Samuel e Francisco Luiz. Os termos do debate foram bastante apaixonados. A autora indica que a resposta do prefeito a tal demanda demonstra como foi feita uma interpretação própria da questão da visão subjetiva apregoada pelos modernistas e concluiu que “[...] o museu de arte moderna não [seria] necessário a não ser que se queira um museu monstro [...] a fim de abrigar os fetos esmigalhados e as mulheres de umbigo na testa e os seios nos calcanhares e outras maravilhas tantas quantas forem as impressões artísticas de nossos munícipes. [...].” (FABRIS, 2008, p. 21).