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Capítulo III Mediação e Bienal

3.2 Bienal e a divulgação da arte moderna

A datar das primeiras matérias jornalísticas que acompanharam o nascimento, fortalecimento até as resenhas com reflexões históricas feitas sobre o movimento Concreto em São Paulo e, em seguida, sobre o Neoconcretismo no Rio de Janeiro, reiteramos a 1ª Bienal Internacional do MAM/SP como marco do impulso inicial local na busca de uma poética de caráter construtivo.

Podemos avaliar a forte impressão que a Bienal causou por meio do relato de Maria Bonomi (2001/2002, p.32), que estava presente no evento:

A primeira Bienal foi um choque muito grande, pois ninguém imaginava que tais coisas poderiam estar sendo feitas no mundo e que o Brasil daí para frente também poderia se confrontar com elas. Como também que o Brasil poderia ser convidado pelo simples mecanismo dos intercâmbios, surgindo, em decorrência, para participar de mostras similares em todo o mundo e, portanto poderia começar a produzir “matéria” para este confronto. (Max Bill, Jackson Pollock e Picasso versus Di Cavalcanti e Portinari.) Alargamento de horizontes e até novas finalidades e funções expositivas profissionais.”

Mais adiante Bonomi (2001/2002, p.33) afirma que

[...] a Bienal desenhada por Ciccillo Matarazzo tinha que ser basicamente polêmica, mas aberta, de preferência democrática, dirigida ao povão, aos que não viajavam. Havia que trazer o mundo para eles e surpreendê-los. Formou-se então a Geração Bienal, da qual fazemos parte, que são aqueles artistas de muitas mídias que ali receberam as primeiras contaminações plásticas ao vivo. Não mais arte em livros (sempre escassos e caros), mas contato direto, osmose… Corpo a corpo. Decorrentes profissionalizações, concursos, premiações e intercâmbios sucessivos, bolsas de estudo, workshops, etc. E até o surgimento de milhares de estabelecimentos comerciais e de produtos chamados “Bienal.” Pelo Brasil afora. Como noção de algo moderno, insólito, requintado, mas geralmente kitsch. O “pãozinho” Bienal dum boteco de periferia no Rio alegrava muito Ciccillo. Era a prova do irrefutável sucesso de sua iniciativa.

Esse depoimento, já impregnado pela vivência da artista, revela que, de fato, o ideal modernizador esteve presente não apenas no conceito da Bienal, mas efetivou-se por meio de uma exposição que contava com artistas em atividade e, muitos deles, já consagrados vindos de várias do mundo.

A grandiosidade do evento, nesse caso, pode ser um dos caminhos para que possamos compreender seu efeito tão intenso no meio nacional, naquilo em que tal exposição representou como uma oferta visual ampla com obras das mais diversas tendências. A organização da mostra tendeu, também para a amostragem no estilo “feira”. Com base em trecho do discurso de abertura feito por Simões Filho91, Ministro da Educação, Serafim, o auto-intitulado o repórter da Bienal (HABITAT 5, 1951, p.4), faz a crítica da mostra e nos revela alguns aspectos da montagem afirmando que a Bienal deve proporcionar ao público

[...] um panorama do conflito apontado pelo ministro, não colocando quadros ao acaso, mas compondo as paredes, mesmo com contrastes de trabalhos, para esclarecer às pessoas que não lêem “Cahiers d‟Art” ou “Formes” sobre o significado da locução “arte moderna”. A exposição deveria ter visado este fim, ter-se-ia diferenciado das demais mostras-elefante.”

Serafim faz uma longa análise das representações e das obras presentes na mostra firmando-se como uma das poucas vozes dissonantes ao analisar não apenas os conjuntos como apresentando uma série de problemas a partir de escolhas fracas ou como qualificou, “refugos” embora tenha encontrado boas obras, inclusive entre os brasileiros. O repórter afirma que

[...] é necessário que se comece a ter firmeza sobre dois pontos aqui no Brasil entre as pessoas que se interessam por arte: 1 – Escolher nós mesmos o que desejamos conhecer e fazer conhecer aos outros, não permitindo que os países mandem o que bem entendem 2 – Recusar os abacaxis.” (SERAFIM, Habitat 5, 1951, p.4).

Ao comentar sobre a obra de Max Bill, Serafim (Habitat 5, 1951, p.4) apenas se limita a dizer que “a mostra de toda a obra de Max Bill, apresentada há alguns meses no Museu de Arte de São Paulo, esgotava o assunto; e justamente a uma escultura já apresentada naquela mostra, o júri conferiu o grande prêmio de escultura [...].

91No discurso de abertura o Ministro Ernesto Simões da Silva Freitas Filho afirma que “[a] revolução estética é, [...] um campo de conflitos, de choques, de tendências onde os artistas se vêem colocados em coordenadas opostas.” Cf Habitat 5, Habitat Editorial, São Paulo, outubro/dezembro 1951, p. 4.

No entanto, critica de maneira veemente a forma como tal obra foi exposta dizendo que “[...] o belíssimo aço foi colocado pelos organizadores da Bienal naquela espécie de porão, no subsolo, como expletivo do plácido comercialismo artístico das senhoras diletantes de São Paulo, as caras e belas damas que não podiam faltar, expondo seus partos no subsolo duma mostra internacional.” (Habitat 5, 1951, p.4)

Como registrado pelo repórter, Max Bill já havia exposto a Unidade Tripartida no MASP em 1951, mesmo ano da Bienal e coincidindo com a inauguração do Instituto de Arte Contemporânea do museu92. Maria Amália García (2008, p.198) destaca que

[...] a organização do projeto, que estaria a cargo de Lina Bo, estava alinhada com as inovações que, no âmbito tanto de critério expositivo como de desenho museográfico, era desenvolvido pelo MASP. A proposta de Bill estava amplamente desdobrada; ele era apresentado como um artista total com um espírito construtivo. Essa exposição mostrava as várias facetas desse criador: pinturas, esculturas, obra gráfica, cartazes, maquetes e fotos de arquiteturas e desenhos industriais exploravam um amplo panorama de interesses. Foram apresentadas mais de sessenta obras e trinta fotografias e plantas arquitetônicas e desenhos. Embora houvesse algumas obras dos anos 30 como 15 Variations Sur un Même Théme (1935-38)93, a seleção

pictórica e escultórica privilegiava a produção de fins dos anos 40. Também foram apresentadas fotografias de sua casa em Zurique- Höngg, do premiado pavilhão suíço na Trienal de Milão e da exposição Die gute Form, além das plantas para a Hochschule für Gestaltung (HfG) de Ulm. Para compreender a transcendência dessa exposição é preciso pensar não só no impacto visual do conjunto das obras, mas também no projeto expositivo: embora Bill não estivesse presente para a montagem, suas intenções estão documentadas. Bill já havia demonstrado ser um grande projetista de espaços de exibição.

Evidentemente, o Brasil já conhecia o abstracionismo construtivo. Exposições com obras abstratas mereceram revisões por parte da crítica de época, outras foram ignoradas, como parece ter sido o caso dessa mostra. Além disso, alguns artistas nacionais tinham formação artística e vivência no exterior, em particular em grandes centros culturais europeus. Podemos citar o exemplo do próprio Waldemar Cordeiro, um dos autores do manifesto do Grupo Ruptura, que estudou e viveu em Paris e

92 As negociações para a realização da mostra começaram em 1949, mas só foi efetivada em 1º de março de 1951, sete meses antes da inauguração da Bienal. Cf: Habitat 5, Habitat Editorial, São Paulo, outubro/dezembro 1951, p. 6

93 García (2008, p.199) analisa a obra 15 Variations Sur um Même Thème, como um tema guiado por uma lei de desenvolvimento – uma estrutura linear contínua que, partindo das propriedades de um triângulo eqüilátero, se desenvolve em um octágono regular – permite o desdobramento de múltiplas possibilidades. [...]. Partindo de uma estrutura simples e limitada, o método da variação permitia a Bill mostrar as infinitas possibilidades contidas em seu sistema.

conhecia a produção artística de caráter abstrato antes do evento de 1951. Da mesma forma, a produção de Abraham Palatinik que havia estudado pintura e desenho em Tel Aviv, Israel e na sua volta ao Rio de Janeiro em 1948 aproximou-se de Mário Pedrosa, defensor do abstracionismo construtivo. Palatinik expôs na própria Bienal de 1951 seu primeiro “Aparelho Cinecromático”, resultado de pesquisas que desenvolvia desde 1949, aliando elementos não usuais às obras de arte tais como motores, luzes e uso de recursos tecnológicos que provocam movimentos, mas que, reiterava tratar-se de pintura.

Figura 7 Waldemar Cordeiro “Desenvolvimento óptico da espiral de Arquimedes”, 1952. Coleção Família Cordeiro.

No entanto, nenhuma mostra anterior, incluindo a exposição de abertura do Museu de Arte Moderna de São Paulo – Da figuração à Abstração –, atingiu o impacto que a premiação da “Unidade Tripartida” de Max Bill na 1ª Bienal do MAM/SP causou no meio nacional. A partir daí, os movimentos abstratos, em particular, de caráter estrutural e formalista começaram a desenvolver amplamente suas pesquisas conquistando adeptos e detratores.

Com tais referências em mãos, pode-se questionar afinal, já que foi a obra de Max Bill que deu vazão ao interesse nacional que se vinha gestando em relação à arte construtiva, porque foi sua premiação na Bienal e não a exposição do MASP que tem sido referenciada como marco da expansão e fortalecimento das linguagens construtivas

na Brasil, sobretudo se considerarmos o cuidado com que a exposição foi projetada. Ainda mais se comparada ao espaço que lhe foi destinado na Bienal como indicado por Serafim.

Um possível raciocínio a esse respeito pode estar na própria reação da crítica à exposição do MASP já que, de acordo com García (2008, p.198)

[...] essa mostra teve um impacto poderoso entre grupos de artistas e críticos no âmbito regional, efeito que contrasta com a escassa repercussão que encontrou entre os meios de comunicação locais. Apareceram alguns breves anúncios no Diário de São Paulo e na Folha da Manhã; do Rio de Janeiro, Geraldo Ferraz foi o único crítico que dedicou uma análise minuciosa sobre as obras, destacando também o silêncio do meio.

A revista Habitat, talvez como uma estratégia educativa em relação à arte construtiva, cedeu um grande espaço para que o próprio Max Bill (HABITAT, 2, 1951, p.64) desenvolvesse o raciocínio de sua obra em longo artigo. A matéria foi acompanhada de imagens de obras e da montagem da exposição tendo cumprido o papel de catálogo que não foi produzido. Coincidentemente, junto a uma reprodução de Unidade Tripartida, o editorial da revista afirma que a exposição do MASP era a mais importante de Max Bill até o momento e que talvez

[...] tenha sido prematura para o nosso público, pois os problemas da arte atual ainda não foram expostos e debatidos. Foi, todavia importante para o Brasil organizar esta exposição [...]. Assim a chamada crítica (crítico é aquela pessoa que, defrontando uma obra de arte, se sente num momento crítico), demonstrou mais uma vez sua inexistência. [...].(HABITAT, 2, 1951, p.65)

A falta de eco da crítica em relação à exposição, ironizada pelo editorial da revista pode ter sido resultado, por um lado, da estranheza que a arte abstrata sugeria e de fato a necessidade de domínio de um vocabulário que ainda se construía com base em teorias distintas. Por outro, pode também ser resultado de uma situação na qual havia, no meio nacional, uma grande influência, ainda, do modernismo e, por consequência, uma rejeição àquilo que colocasse em xeque uma possível tradição figurativa do país. Otília Arantes (2004, p.62) nos relembra que no início dos anos 1950

[...] quase todos, artistas e críticos, eram veteranos do modernismo que, a partir dos anos 30, finalmente entrara na rotina mental do país. Defendiam, portanto, uma tradição, a tradição do modernismo. [...] Ora, não custa lembrar que o auge do modernismo fora nacionalista, e

o segundo tempo, francamente social. [...] não se concebia entre nós atividade cultural que não estivesse a serviço da figuração do país ainda muito incerto de si mesmo – pintar era ajudar a descobri-lo e edificar em parcelas uma nação diminuída pelo complexo colonial. Acresce que o “desrecalque localista” (Antonio Candido) em que se resolvera o modernismo da primeira hora, representara uma segunda descoberta do Brasil. Enquanto o primitivismo cubista e a deformação expressionista de nítida índole social pareciam ajustar-se a esse programa de transposição plástica do país, imaginava-se que com a abstração seríamos obrigados a renunciar a tudo isso, que uma tradição a duras penas seria erradicada da noite para o dia, como sugeria um novo começo da capo.

Assim, considerando que a exposição museológica, em que se considere o peso institucional vinculado ao seu caráter patrimonial, pode ter sido fator relevante no cuidado em se tratar de uma exposição que redundou na indiferença por parte da imprensa. Por outro lado, é bastante relevante que tal exposição tenha tido grande influência sobre os artistas concretos brasileiros e argentinos (ARANTES, 2004, p.60). Isso quer dizer que, do ponto de vista da teoria museológica, tal exposição provocou a possibilidade do fato museal. Os artistas, como público privilegiado da mostra foram “contaminados” por ela.

A Bienal, por sua vez, com sua vocação internacionalista, ao expor Max Bill entre outras tantas obras de variadas tendências, pode ter consistido no aval que permitiu, então, que artistas já ligados à abstração, junto a poucos críticos como Mario Pedrosa, fortalecessem seu raciocínio plástico e conceitual. Não obstante, a crítica, ao comprometer-se com o evento e com o que significava para um novo sentido de modernidade, replicou as impressões sobre o certame. Isso não quer dizer que crítica tenha mudado de opinião, mas, reconhecia o fenômeno e o debatia e, de certa forma, poderia se evadir de um debate direto com a obra de Max Bill.

Assim, a montagem da 1ª Bienal, menos comprometida com a busca de uma “justificativa” conceitual e menos ainda “patrimonial” permitiu que a “Unidade Tripartida” fosse apresentada ao público sem um entorno conceitual e cenográfico tão carregado e, dessa forma, a obra pode causar o impacto tão reiterado ao longo da história da arte no Brasil – primeiro nos outros artistas e, em seguida, na crítica.

É preciso ressaltar no discurso artístico das vanguardas nacionais a partir do final dos anos 1940, como as instituições – museus e Bienal – tiveram papel de destaque como mediadores culturais ativos e com poder de influência decisiva no processo de divulgação da arte e, muitas vezes, na sedimentação de valores, no caso, plásticos. As

críticas, a favor ou contra a ação institucional, são procedentes, na medida em que, investidas de respaldo cultural e social, atuaram fortemente na criação de um ambiente propício para a discussão de uma nova forma de sensibilidade que derivava em expressões plásticas inéditas em relação ao que se vinha praticando até então.

Acreditamos que, entre a instituição museológica e a Bienal, estabelece-se uma distância que poderia colocar ambas as esferas de ação em distintos níveis de atuação a partir da própria conformação de suas estruturas: o museu, sobretudo, vincula-se à questão patrimonial, ou seja, à formação de uma coleção e, por isso mesmo, com uma vocação que relaciona a arte – como manifestação de cultura – com a educação, ou seja, como um processo pedagógico de formação de uma determinada visualidade e do gosto estético do público. Por outro lado, a Bienal, com base no modelo das exposições universais, tem mais proximidade com os eventos gerados pela indústria cultural dos quais absorveu as ideias de entretenimento, participação popular ampliada, relação aberta com o mercado de bens – e simbólico – entre outros. A Bienal, ao menos nos seus primórdios, refletiria uma necessidade localizada de internacionalização apresentando-se como uma fórmula que congrega a arte tanto como expressão de cultura, como reflete os interesses da classe dominante e, ao mesmo tempo, permite a inclusão de um público não habituado à convivência com as artes plásticas, por meio de um formato institucional que busca deixar em segundo plano o aspecto patrimonial da produção artística.