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CAPÍTULO 2 EDUCAÇÃO E DESIGUALDADES ÉTNICO-RACIAIS

2.4 As intrínsecas relações da EJA e as questões étnico-raciais

A compreensão e o aprofundamento sobre a questão racial na EJA vêm sendo construídos, lentamente, na articulação com os processos sociais de classe, de gênero, idade e cultura. Essa articulação pode ser considerada como o maior desafio da produção teórica sobre o negro, a EJA e educação no Brasil (GOMES, 2005, p. 94).

Concebemos, assim como Gomes (2005), a Educação de Jovens e Adultos numa dinâmica conflitiva, envolta nos processos de construções históricas, sociais e culturais. Nesse sentido, refletiremos sobre a Educação de Jovens e Adultos identificando a sua intrínseca relação com as questões étnico-raciais.

Gomes (2005) ressalta que, do ponto de vista da reflexão teórico-educacional, estamos vivendo um momento recente de estudos e pesquisas que buscam relacionar a Educação de Jovens e Adultos à questão racial. A temática ainda causa resistência e tensão no meio educativo em relação à pertinência e à necessidade da inserção da mesma nos processos de ensino e da pesquisa. A autora constata que está sendo feita aos poucos a articulação entre os índices de alfabetismo, as propostas de acesso e permanência de jovens no sistema de ensino, especificamente nas universidades, à dimensão étnico-racial, percebendo esta última como um dado relevante para se identificar o perfil dos jovens e adultos em nosso país, bem como os dilemas do racismo e da discriminação racial e suas implicações na trajetória escolar daqueles sujeitos.

Outro trabalho que destacamos na perspectiva de contribuir para compreendermos as relações entre o pertencimento étnico-racial dos estudantes da EJA foi o realizado por Passos (2005), que buscou apreender a presença de jovens negros(as) em programas de EJA, relacionando às oportunidades de escolarização. Sua pesquisa buscou aprofundar as discussões acerca das desigualdades raciais na educação e a educação de jovens e adultos.

O trabalho de Passos (ibidem) aponta que os(as) jovens negros(as) e pobres, mesmo apresentando percursos escolares marcadamente desiguais e repletos de motivos suficientes para não mais procurar a escola, retornam na modalidade da EJA, na perspectiva de concluir a escolaridade básica. Concordamos com a autora quando afirma que “a vinda dos(as) jovens negros(as) para a EJA possibilita ao sistema educacional brasileiro uma nova chance de rever seu papel e assegurar a escolaridade básica com qualidade, além de reparar parte da dívida social que tem com esta população” (PASSOS, 2005, p. 04).

Gomes (2005) reflete que muitos educadores fundamentados numa concepção universalista de educação defendem que basta priorizar o desenvolvimento de políticas públicas de EJA, com o enfoque socioeconômico, que atingiremos todos os jovens e adultos de maneira igualitária e democrática. Todos os que compartilham de tal visão acreditam que a questão étnico-racial, de gênero, a sexualidade, as diferentes culturas entre outras, quando relacionadas com as desigualdades socioeconômicas encontrariam um lugar secundário. Dessa forma, é realizada uma leitura determinista das relações de classe em detrimento das relações de raça, do gênero e da cultura. A autora critica a concepção universalista

de políticas educacionais e de práticas educativas que “não atingem a realidade específica dos negros em tempos de exclusão e nem dá conta de compreender o que significa ser jovem e adulto negro (a), trabalhador (a) ou desempregado (a) neste País” (GOMES, 2005, p. 97).

Para Gomes (2005), no Brasil, em decorrência de sua diversidade, as políticas públicas devem trabalhar em duas perspectivas: garantir o acesso público à educação, à saúde, ao emprego etc. e respeitar as diferenças. A partir de tais considerações, acreditamos que o processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa dos alunos da EJA deva articular as práticas educativas, relacionando com a diversidade étnico-racial, a história e a identidade do (a) negro (a), a realidade socioeconômica e cultural. A autora pontua que

as formas como os jovens e adultos negros(as) e brancos(as) lidam com o seu pertencimento étnico-racial são diversas e estão relacionadas às representações sobre o negro vividas e aprendidas na cultura, nos espaços familiares, na infância, na adolescência e nos processos educativos que se dão dentro e fora da escola (GOMES, 2005, p. 89).

Em consonância com os estudos de Gomes (2005) e Passos (2005), Oliveira (1999), ao tentar responder quem são os jovens da EJA, apresenta que os alunos da EJA são pertencentes a um grupo social homogêneo, cujas características não são difíceis de serem identificadas, em decorrência de suas condições sócio- econômicas.

Para a autora, aqueles sujeitos representam uma parcela da população excluída dos bens de consumo, que desempenham funções pouco qualificadas, recebem os baixos salários e, em sua maioria, são afrodescendentes, nordestinos, oriundos das zonas rurais. Tiveram algum acesso ao saber escolarizado quando criança, mas de forma descontínua e sem sucesso. Quanto a seus pais, frequentemente apresentam as mesmas experiências escolares, também não tiveram acesso ao sistema de escrita, eram trabalhadores da lavoura ou desempenhavam ocupações braçais.

Para Arroyo (2005), os/as jovens e adultos da EJA carregam trajetórias de exclusão social e vivenciam a negação de seus direitos básicos à vida. São jovens pobres, negros, desempregados, na economia informal, nos limites da sobrevivência. O pensamento de Arroyo (ibidem) contribui para se repensar também

o processo de formação inicial e continuada dos educadores da EJA, apontando elementos para se analisar sobre os conteúdos, os conhecimentos, as concepções de ensino e de aprendizagem e as didáticas na EJA. Pois essa enquanto espaço formador não pode ser identificada como um remédio para suprir carências de alfabetização, de escolarização, alimentando uma visão negativa de seus usuários e da juventude. A EJA precisa se configurar como uma política afirmativa de direitos coletivos sociais historicamente negados. Nesse sentido o autor afirma que

Os movimentos sociais nos chamam atenção para outro ponto: que as trajetórias desses jovens-adultos são trajetórias de coletivos. Desde que a EJA é EJA esses jovens e adultos são os mesmo: pobres, desempregados, na economia informal, negros, nos limites da sobrevivência. São jovens e adultos populares. Fazem parte dos mesmos coletivos sociais, raciais, étnicos, culturais. O nome genérico: educação de jovens e adultos oculta essas identidades coletivas. Tentar reconfigurar a EJA implica assumir essas identidades coletivas (ARROYO, 2005, p. 22).

Nessa ótica, Galvão (2007) irá afirmar que o analfabetismo se concentra em algumas regiões geográficas, atingindo determinados subgrupos étnicos e socioeconômicos da população. Para a autora, “as chances de permanecer analfabeto são muito maiores para quem provém de famílias de baixa renda, é negro ou vive nas zonas rurais do Nordeste do país” (p. 62).

Sobre a relação dos índices de analfabetismo entre brancos e negros, Galvão (ibidem) denuncia que eles revelam o quanto a população brasileira está longe de vivenciar uma democracia racial. Aponta que o pertencimento étnico-racial, ao lado da renda, são características da população vítima do analfabetismo, pois apesar do Brasil hoje ser considerado um país moderno, e ter conseguido elevar a taxa de escolarização de diferentes grupos étnico-raciais, ainda se mantêm inalteradas estas características, apresentando grandes diferenças nos níveis educacionais de negros e brancos.

O estudo da autora contribui para desmistificar a velha ideia de que as desvantagens educacionais dos negros estariam restritas apenas às condições socioeconômicas e que poderiam ser superadas com o desenvolvimento econômico e distribuição de renda. O que se pode constatar é que mesmo comparadas às populações economicamente homogêneas, a população negra apresenta os piores resultados. Para a autora, tal fato “põe em evidência o racismo que permeia a

sociedade e as instituições brasileiras, dentre as quais a escola e as relações sociais que se estabelecem em seu interior” (p. 65).

Oliveira (1999) reconhece que em relação aos aspectos socioculturais e socioeconômicos são apresentadas características homogêneas, que, geralmente, os alunos/as da EJA têm entre si. Porém, ela chama atenção para outras características daqueles sujeitos no que se refere aos níveis de letramento. Esses estudantes, sendo adultos, já foram expostos a vários desafios da sociedade letrada, por isso, como veremos, tendem a ser sujeitos que possuem uma maior compreensão das funções sociais da língua, sendo capazes de considerar “os contextos dos textos” e apresentar antecipações significativas sobre os mesmos, o que facilita a compreensão sobre o que é neles tratado.

Para Oliveira (ibidem), o problema da educação de jovens e adultos traz uma questão de especificidade cultural, cujo primeiro traço relevante seria sua condição de excluídos da escola regular, situação que contribui para definir a especificidade dos jovens e adultos como sujeitos da aprendizagem. Como a escola não os veria como “alvo original” da instituição, os currículos, programas e métodos de ensino foram concebidos, em sua gênese, para crianças e adolescentes do ensino regular.

Gomes (2005) afirma que pensar a realidade da EJA hoje implica pensar a realidade dos jovens e adultos, na sua maioria negros, que vivem em processos de exclusão social e racial. Deve a escola, portanto, desenvolver projetos e políticas de inclusão que contemplem a importância das questões raciais, pois esses projetos podem contribuir para o desenvolvimento de mudanças identitárias na forma como os jovens e adultos negros(as) se vêem, lidam e se posicionam no mundo, podendo se apresentar como uma oportunidade para que ressignifiquem suas identidades negras. Tais projetos podem contribuir, assim, para que a negritude dos alunos(as) deixe de ocupar um lugar de negatividade e ocupe um espaço de orgulho e afirmação.

Os estudos da autora citada acima reforçam a importância de se desenvolver pesquisas e projetos que articulem a EJA e a questão racial. A autora afirma que do ponto de vista teórico-educacional ainda estamos vivenciando um momento inicial de pesquisas que façam tais articulações. Contudo, é evidente a importância de se considerar a dimensão étnico-racial nos estudos sobre jovens e adultos e suas relações com os índices de letramento, “propostas de acesso e permanência de jovens na escola, para se compreender o perfil dos jovens e adultos no Brasil, os

dilemas trazidos pelo racismo e pela discriminação racial na trajetória escolar de pessoas jovens e adultas” (p. 94).

Pires (2006) apresenta a importância de nas aulas da EJA se enfatizar a compreensão da língua como um elemento importante de ser considerado, pois o uso do signo linguístico pode se constituir em uma das formas perversas de segregação e controle. Identificarmos que isso ocorre, também, quando é negado na escola o ensino da história e cultura africanas e afro-brasileiras. É produzido dessa forma uma exclusão social que se dá de forma simbólica e material.

Pesquisa realizada por Silva Neves (2007) levanta um importante questionamento ao indagar se os/as professoras da EJA identificam a escola como um espaço sociocultural, conseguindo perceber e considerar importante o enfoque da questão racial naquele contexto.

Para o autor, a tentativa de provocar uma discussão acerca da diversidade cultural, com enfoque na questão racial na EJA, não pode resumir-se a apenas um desafio. É necessário “provocar os professores para ver, considerar e se relacionar com os alunos como sujeitos concretos portadores de raça, gênero, idade, ciclos de vida, entre outros” (SILVA NEVES, 2007, p. 67).

Nessa perspectiva é imprescindível para todo professor (a) comprometido com uma educação que respeite e valorize as diferenças, preocupado com o desenvolvimento de uma didática contextualizada, se questionar sobre seus alunos. Quem são os alunos da EJA? Quais as contribuições da sua prática social à aprendizagem? Que características têm em comum? Tais questionamentos devem buscar identificar a dimensão sócio-cultural, racial na qual estão inseridos os seus alunos/as.

Consideramos importante também ampliarmos nossas reflexões no que se refere às práticas discursivas de leitura e os processos de compreensão da leitura. É necessário que os professores/as possam se interrogar também sobre como seus alunos/as constroem suas identidades sociais: como a escola, os/as professores/as e demais profissionais da educação contribuem para a construção de suas identidades étnico-raciais? Como o ensino da leitura pode contribuir com o processo de construção de identidades sociais? O que os/as professores/as precisam compreender sobre essas práticas discursivas para contribuir com uma didática da língua portuguesa que promova aprendizagens significativas, capazes de inserir

competentemente aquele segmento da população em práticas sociais de leitura e escrita?

Refletir sobre essas questões e contribuir para reverter o quadro de exclusão a qual está submetida a população negra é tarefa de todo educador (a), independente do seu pertencimento étnico-racial. Assim, concebemos como importante problematizar e compreender sobre os processos de construções identitárias, questionando a concepção de identidade como algo fixo, imutável, identificando o papel do outro, o papel do docente, na constituição de quem somos, bem como as relações de poder presentes na sociedade, na escola, no currículo e materializadas também na linguagem. Nessa direção, buscaremos, a seguir, discorrer sobre essas questões, apresentando algumas reflexões sobre o conceito de linguagem, ideologia, identidade e currículo, buscando explicitar as relações ideológicas de saber/poder da linguagem e do currículo nas construções identitárias.