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As ironias de Brás: produtor de umas, alvo de outras

Memórias póstumas

4. As ironias de Brás: produtor de umas, alvo de outras

Embora a maioria dos estudiosos (...) não tenha como preocupação primeira explicitar os mecanismos produtores da ironia como fenômeno de linguagem, mas sim abordá-la ou utilizá-la como forma de caracterizar o estilo e visão

de mundo de autores, essas abordagens, ampliando o campo produtivo da ironia, oferecem elementos para uma visão da natureza e da complexidade desse fenômeno.

(Beth Brait, Ironia em perspectiva polifônica)

Como já mostramos no primeiro capítulo desta tese, um dos principais recursos discursivo capazes de comprovar que a dissociação semântica entre o primeiro e o segundo nível enunciativo e, eventualmente, entre o segundo e o terceiro é a ironia. Com Memórias póstumas de Brás Cubas, uma obra caracterizada justamente pela sutileza com que o sujeito da enunciação opera com os níveis enunciativos, não é diferente.

Não se trata de uma tarefa simples definir o que é ironia, pois inúmeras teorias lingüísticas e filosóficas debruçaram-se sobre ela, o que dificulta a monossemia, necessária a qualquer definição mais rigorosa do ponto de vista epistemológico.

A ironia, ao contrário da metáfora, permanece por natureza uma questão

aberta, que cada teoria analisa em função de seus pressupostos. Decidir o que

é ironia implica, na realidade, uma certa concepção de sentido, de atividade de fala ou de subjetividade (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p. 292).

Recorrendo inicialmente às formulações retóricas, às quais interessa analisar as estratégias argumentativas empregadas para persuadir um auditório, a ironia,

como tropo de pensamento, é, em primeiro lugar, a ironia de palavra, continuada como ironia de pensamento, e consiste, desta maneira, na substituição do pensamento em causa, por um outro pensamento, que está ligado ao pensamento em causa por uma relação de contrários e que, portanto,

Necessariamente, para que exista ironia, é preciso que haja duas vozes contrárias, uma marcada no enunciado (o “pensamento em causa”) e outra pressuposta (“outro pensamento”) manifestando valores opostos (ligando-se “ao pensamento em causa por uma relação de contrários”). Semioticamente, ao deparar com a ironia, estamos diante de um discurso polifônico, em que se nota uma fenda, uma cisão, um descompasso programado entre enunciado e enunciação.

Isso significa que, para identificar e compreender uma ironia, é necessário mapear a enunciação do texto, sem o que seria impossível perceber essa dissensão de valores. Por isso, não se podem considerar as passagens isoladamente, pois os indícios discursivos do que deve ser interpretado literalmente e o que deve ser lido ironicamente estão sempre espalhados pelo enunciado.

Pode-se ainda lembrar, aproveitando outra idéia de Charaudeau e Maingueneau, que, no discurso irônico, “há um efeito de não assumir a enunciação” (2004, p. 291), o que significa que aquilo que é dito no enunciado parece ser “verdade”, na medida em que a enunciação – que contém a “verdade” – não é assumida claramente pelo enunciador. Teríamos um /parecer/ e um /não ser/ no enunciado e um /ser/ e um /não parecer/ na enunciação. Destaque-se, porém, que essa não assunção da enunciação não visa a dificultar a leitura do texto; trata-se, sim, de uma estratégia discursiva de polifonia, que funciona como uma comprovação do estatuto dialógico da linguagem e que, como tal, pode ser empregada com valor argumentativo, o que implica que – dentro da proposta teórica que adotamos – a ironia, sem perder sua dimensão retórica (de busca pela adesão do auditório), configura um problema de enunciação. Desse modo, nossa proposta de análise também

confere à ironia traços que reiteram a ambivalência de significação, a dupla isotopia, a confluência enunciativa, enfim a maneira de um discurso lidar com outros para colocá-los ou colocar-se em evidência. Esse jogo que se estabelece entre um texto e as presenças constitutivas de seu interior articula-se ironicamente por meio de várias estratégias de incorporação discursiva, de encenação do já-dito (...) (Brait, 1996, p. 107).

Nessa perspectiva, as ironias das Memórias póstumas produzem um efeito de humor que se origina justamente pela “ambivalência da significação”, pela “dupla isotopia” de leitura e pela “confluência enunciativa”.

Um verdadeiro lugar-comum da crítica literária é dizer que os textos machadianos são caracterizados pela ironia57. A questão é que, muitas vezes, nas análises que são feitas sobre a obra de Machado, o termo ironia é usado para designar vários outros processos discursivos que não nascem necessariamente de uma falta de correspondência entre o que se diz no enunciado e o que se diz na enunciação: é como se ironia fosse sinônimo de efeito de humor58 e como se qualquer sátira machadiana nascesse de procedimentos irônicos. Nesta tese, empregaremos o termo ironia stricto sensu, deixando para outros itens a discussão sobre outros efeitos de humor produzidos em Memórias póstumas.

Há excertos do romance em que as passagens irônicas são facilmente perceptíveis e parece estarem a serviço, sobretudo, de uma intenção humorística. É o que ocorre:

• em “Chimène, qui l’eût dit? Rodrigue, qui l’eût cru?”, quando Brás Cubas está próximo da morte:

O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito, que visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e da necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais interessante para um moribundo (MP, cap. VI, p. 31).

• em “Naquele dia”, quando se evidencia a vontade do pai de Brás Cubas em pertencer à fidalguia:

Nasci; recebeu-me nos braços a Pascoela, insigne parteira minhota, que se gabava de ter aberto a porta do mundo a uma geração inteira de

57

Ivan Teixeira, por exemplo, afirma que a “frase [de Machado de Assis] é extremamente maliciosa. Raramente possui um único significado. E a forma mais elementar da ambivalência machadiana chama-se

ironia, figura que, em sentido estrito, consiste em sugerir o contrário do que se afirma” (Teixeira, 1988, p.

80).

58

fidalgos. Não é impossível que meu pai lhe ouvisse tal declaração; creio, todavia, que o sentimento paterno é que o induziu a gratificá-la com

duas meias dobras (MP, cap. X, p. 41).

• em “O menino é pai do homem”, quando Brás reconhece sua falta de educação:

Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um

espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se

às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos(MP, cap. XI, p. 44-45).

• em “A borboleta preta”, quando o narrador esconde seus preconceitos sob a aparência de reflexão sisuda:

– Também por que diabo não era ela azul? Disse comigo.

E esta reflexão, – uma das mais profundas que se tem feito,

desde a invenção das borboletas, – me consolou do malefício, e me

reconciliou comigo mesmo (MP, cap. XXXI, p. 88).

• em “A ponta do nariz”, em que o narrador demonstra sua falsa preocupação filosófica:

A explicação do doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, – e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio em dia, em que, estando a ruminar esse e outro

pontos obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação (MP, cap. XLIX , p. 108-109).

• em “Destino”, quando Brás finge desdizer exatamente aquilo em que ele acredita:

Mas rezava todas as noites, com fervor (...). Algum tempo desconfiei que havia nela certo vexame de crer, e que a sua religião era uma espécie de camisa de flanela, preservada e clandestina; mas era

evidentemente engano meu (MP, cap. CXXIV, p. 121).

• em “Distração”, quando Brás aparenta condoer-se da situação de uma mosca cuja pata era mordida por uma formiga:

Então eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na palma da mão aquele casal de mortificados (...) (MP, cap. CIII, p. 178).

• em “31”, quando o narrador descobre a motivação superficial de certos atos do mundo político:

Uma semana depois, Lobo Neves foi nomeado presidente de província. Agarrei-me à esperança da recusa, se o decreto viesse outras vez datado de 13; trouxe, porém, a data de 31, e esta simples transposição de algarismos eliminou deles a substância diabólica. Que

profundas que são as molas da vida! (MP, cap. CX , p. 184)

• em “Orgulho da servilidade”, quando se explicita que a humanidade nem sempre tem atitudes nobres:

Depois chamou a minha atenção para os cocheiros da casa grande, mais empertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja solicitude obedece às variações sociais da freguesia, etc. E concluiu que era tudo a expressão daquele sentimento delicado e nobre, – prova cabal de que

muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é sublime (MP, cap.

Em todos esses trechos, afirma-se algo no enunciado e nega-se na enunciação, o que está de acordo com a já citada definição da ironia de Fiorin (2000, p. 56). Esse descompasso entre os dois primeiros níveis enunciativos pode ser percebido pelos indícios contextuais de que Brás acredita, na realidade, no contrário do que está escrevendo:

• em “Chimène, qui l’eût dit? Rodrigue, qui l’eût cru?”, em que a conversa do “estranho” não tinha da de interessante para Brás Cubas;

• em “Naquele dia”, quando Bento Cubas paga à parteira simplesmente porque queria pertencer à fidalguia;

• em “O menino é pai do homem”, em que Brás não demonstra nenhum tipo de elevação espiritual;

• em “A borboleta preta”, quando se percebe que a reflexão do narrador não tem nenhuma profundidade;

• em “A ponta do nariz”, em que a descoberta filosófica do narrador não passa de uma brincadeira;

• em “Destino”, quando Brás admite que Virgília tinha “vexame de crer”;

• em “Distração”, em que Brás quer atribuir para si uma inexistente “delicadeza nativa de um homem do nosso século”;

• em “31”, quando o narrador admite que as ações humanas nem sempre possuem motivações nobres;

• em “Orgulho da servilidade”, em que se confirma que a humanidade está longe de ser “sublime”.

Todas essas ironias ainda não são suficientes para distinguir o primeiro e o segundo nível enunciativo, já que, em nenhuma delas, é pertinente determinar se elas são de responsabilidade específica do narrador (e da enunciação de 2º grau) ou do enunciador (e da enunciação de 1º grau). Além disso, em todos os exemplos citados, a ironia pode ser identificada em passagens relativamente curtas, que raramente ultrapassam um parágrafo. São ironias expressas em uma palavra, em uma frase, em um período. Os casos que mais nos interessam – e que são de uma complexidade enunciativa muito maior – são aqueles em que a ironia recobre capítulos inteiros do romance (às vezes, mais do que isso) e cujos indícios contextuais para identificá-la não são tão evidentes. Vejamos um exemplo.

No célebre capítulo CXXIII, “O verdadeiro Cotrim”, o narrador faz um retrato moral de seu cunhado, o que foi suscitado por uma conversa travada a respeito da conveniência de Brás casar-se com Eulália, sobrinha de Cotrim:

Ele ouviu-me e respondeu-me seriamente que não tinha opinião em negócio de parentes seus. Podiam supor-lhe algum interesse, se acaso louvasse as raras prendas de Nhã-loló; por isso calava-se. Mais: estava certo de que a sobrinha nutria por mim verdadeira paixão, mas se ela o consultasse, o seu conselho seria negativo. Não era levado por nenhum ódio; apreciava as minhas boas qualidades, – não se fartava de as elogiar, como era de justiça; e pelo que respeita a Nhã-loló, não chegaria jamais a negar que era noiva excelente, mas daí a aconselhar o casamento ia um abismo (MP, cap. CXXIII, p. 198).

Já nesse primeiro parágrafo do capítulo em questão, nota-se, por meio das repetidas preterições de Cotrim, que ele deseja o casamento do cunhado com a sobrinha, tanto é verdade que ele se refere às “raras prendas” de Nhã-loló, bem como à “verdadeira paixão” que a moça, “noiva excelente”, sentia por Brás. Assim, o conselho “negativo” que ele daria a Brás é um jogo de cena, uma dissimulação, que confirma as verdadeiras intenções de Cotrim.

Após esse início do capítulo, em que já se percebem as intenções escusas de Cotrim, há um diálogo – transcrito em discurso direto – que confirma essas intenções:

– Mas você achava outro dia que eu devia casar quanto antes... – Isso é outro negócio. Acho que é indispensável casar, principalmente tendo ambições políticas. Saiba que política o celibato é uma remora. Agora, quanto à noiva, não posso ter voto, não quero, não devo, não é de minha honra. Parece-me que Sabina foi além, fazendo- lhe certas confidências, segundo me disse; mas em todo caso ela não é tia carnal de Nhã-loló, como eu. Olhe... mas não... não digo...

– Diga.

– Não; não digo nada (MP, cap. CXXIII, p. 198).

As hesitações presumivelmente escrupulosas de Cotrim, que afirma não ter “opinião em negócio de parentes seus”, constituem preterições. Assim, Cotrim deseja o casamento de Brás e Eulália, mas não assume plenamente esse desejo ou, mais precisamente, afirma não estar assumindo esse desejo.

É nesse momento que Brás se dedica a uma das ironias mais finas do livro:

Talvez pareça excessivo o escrúpulo de Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Argüiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o deficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando lhe morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única. Era tesoureiro de uma confraria, e irmão de várias irmandades, e até irmão remida de

uma destas, o que não se coaduna muito com a reputação de avareza; verdade é que o benefício não caíra no chão: a irmandade (de que ele fora juiz), mandara-lhe tirar o retrato a óleo. Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava, – sestro repreensível ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço seu maior elogio) que ele não praticava, de quando em quando, esses benefícios senão com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas atenções, mas não devia um real a ninguém (MP, cap. CXXIII, p. 198-199).

Depois das preterições de Cotrim, vêm as ironias de Brás, que apresentam o “verdadeiro” cunhado. Aparentemente, o narrador está elogiando Cotrim, que “possuía um caráter ferozmente honrado”, “era um modelo”, econômico, justo com seus escravos, apaixonado pelos filhos e filantropo. Mas, ao mesmo tempo em que o enunciado traz esses supostos elogios, há indícios suficientes na enunciação para concluir que Brás está fazendo um retrato moral cruel do cunhado.

Cotrim não é nem “honrado”, nem “um modelo”. Era avaro e “seco de maneiras”, contrabandista de escravos, com o hábito de os tratar com tamanha crueldade que não lhe era injusto o epíteto de “bárbaro”. Além disso, era exageradamente vaidoso, a ponto de subordinar a filantropia à consideração pública, mandando “para os jornais a notícia de um outro benefício que praticava”.

O teor corrosivo da ironia expressa neste capítulo advém também dos argumentos pouco sérios que o narrador apresenta para desfazer a impressão negativa que Cotrim despertava em algumas pessoas. Para rebater a avareza, transforma-a em “exageração de uma virtude”; para rebater a crueldade, transforma-a em necessidade da profissão, além de admitir, sarcasticamente, a validade das teorias deterministas (“não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais”); para comprovar seus “sentimentos pios”, cita o amor aos filhos como se fosse algo surpreendente e fala sobre sua participação em irmandades, sugerindo que

foi tirado; por fim, para rebater a mania de tornar públicas suas ações assistenciais, disfarça-a no nobre “fim de espertar a filantropia dos outros”.

O contrabandista de escravos Cotrim está longe, com efeito, de ser “um modelo”, e várias outras passagens do romance confirmam o materialismo, a ambição, a vaidade e a avareza do marido de Sabina. É o que ocorre, por exemplo, em “A herança”, quando, após discussões envolvendo Brás e a irmã, esta aparece com uma proposta conciliadora:

– Isso nunca! Não faço esmolas! disse ele

Jantamos tristes. Meu tio cônego apareceu à sobremesa, e ainda presenciou uma pequena altercação.

– Meus filhos, disse ele, lembrem-se de que meu irmão deixou um pão bem grande para ser repartido por todos.

Mas Cotrim:

– Creio, creio. A questão, porém, não é de pão, é de manteiga. Pão seco é que eu não engulo (MP, cap. XLVI, p. 106).

Após essa briga, os irmãos se afastam. Depois se reconciliam no capítulo LXXXI, quando Sabina e Cotrim procuram aproximar Brás e Eulália um do outro. No capítulo “O jantar”, depois de Sabina determinar que o irmão deveria casar-se com Nhã- loló, o narrador afirma:

E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma pomba, e ao mesmo tempo intimativa e resoluta. Santo Deus! seria esse o motivo da reconciliação? Fiquei um pouco desconsolado com a idéia (...) (MP, cap. XCIII, p. 168).

O desconsolo do narrador, motivado pela hipótese de que Sabina e, é claro, Cotrim tiveram segundas intenções na reaproximação familiar, é mais um indício de como devemos interpretar o “verdadeiro” caráter do cunhado de Brás Cubas.

A maneira como Brás apresenta Cotrim encerra uma crítica mordaz ao comportamento de seu cunhado e configura uma típica ironia retórica:

A ironia retórica quer que a ironia seja compreendida pelo ouvinte, como ironia, e, portanto, como sentido contrário. O orador pode querer obter imediatamente no ouvinte este resultado de compreensão, ou então pode querer jogar, durante algum tempo, com um estádio passageiro de mal-entendido (Lausberg, 1965, p. 251).

Nesse caso, no início do capítulo, pode-se até dizer que o narrador explora “um estádio passageiro de mal-entendido”; mas sua continuação e sua articulação a outros excertos do romance mostram que é necessário compreender esse capítulo “como sentido contrário”. Esse tipo de ironia é o que vamos chamar de ironia do narrador, já que Brás é o responsável por ela, embora o enunciador a corrobore.

De fato, a ironia verbal, segundo Brait (aproveitando uma sugestão teórica de Kerbrat-Orecchioni),

implica um trio actancial: o locutor (A¹) que dirige um certo discurso irônico para um receptor (A²), para caçoar de um terceiro (A³), que é o alvo da ironia. (...) os três actantes envolvidos podem coincidir no todo ou em parte, dependendo do tipo de discurso em que aparecem (Brait, 1996, p. 62).

No exemplo do capítulo “O verdadeiro Cotrim”, A¹ é o narrador, A² é o narratário e A³ é Cotrim. Trata-se, pois, de uma ironia construída no interior do segundo nível enunciativo, pois há uma dissociação entre o enunciado (os elogios a Cotrim) e a enunciação de 2º grau (as críticas a Cotrim). No final do romance, mais precisamente no capítulo “Fase brilhante”, há um exemplo de ironia que atinge Brás.

A esta altura da narrativa, por sugestão de Cotrim, Brás filia-se a uma entidade filantrópica:

E vede agora a minha modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***, exerci ali alguns cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida. Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, não digo absolutamente nada (MP, cap. CLVII, p. 227- 228).

As semelhanças com o capítulo “O verdadeiro Cotrim” são evidentes: Brás filia- se a uma irmandade, como o cunhado, e adota um discurso cuja modéstia lembra as preterições em favor de Nhã-loló.

Seria possível, num primeiro momento, fazer duas interpretações desse capítulo: a primeira seria a de que a modéstia de Brás é sincera e que, por isso, ele acredita que a