UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SEMIÓTICA E LINGÜÍSTICA GERAL
A construção do ator da enunciação em romances
com narrador-personagem: a experiência
machadiana em
Memórias póstumas de Brás
Cubas
Eduardo Calbucci
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Lingüística Geral do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor.
Orientador: Prof. Dr. José Luiz Fiorin
A minha mãe,
minha maior incentivadora,
que começou este trabalho ao meu lado,
ÍNDICE
Agradecimentos
Resumo
Abstract
Introdução
1. Machado e as Memórias póstumas: o alto do pódio
2. Lingüística e Literatura: uma tentativa de conciliação
3. Objetivos e métodos: o mapa do percurso
Capítulo 1 – Problemas gerais de enunciação
1. Uma questão de níveis: alguns fundamentos teóricos
2. A enunciação: em busca da precisão conceitual
3. Foco narrativo: uma sistematização semiótica
4. Estilo e éthos: a apreensão do enunciador
Capítulo 2 – As experiências discursivas em Memórias póstumas
1. Subversão enunciativa: traços de modernidade
2. Simulacro de uma autobiografia: o diálogo de um morto
3. Graus enunciativos: outras complexidades à vista
4. As ironias de Brás: produtor de umas, alvo de outras
5. A questão do destinatário: diálogo e dialogismo
6. Contratos enunciativos: Romantismo, Realismo e um algo a mais
7. Narrador e enunciador: questões de foco, de erudição e sobre Marcela
8. Formulações teóricas de Brás: entre a ciência e a zombaria
9. Volubilidade, superficialidade, vaidade, indiferença:
autópsia de Brás e de seus pares
10. Humanitismo: razão, loucura e egoísmo
11. O estilo das Memórias póstumas: uma hipótese de éthos do enunciador
Capítulo 3 – De Ressurreição ao Memorial: a confirmação do éthos
1. O caráter machadiano: do cinismo ao fim das convenções enunciativas
2. A voz machadiana: da delicadeza à mordacidade
3. O corpo machadiano: da elegância ao riso sutil
Conclusão
Bibliografia
397
404
AGRADECIMENTOS
Ao professor José Luiz Fiorin, com quem eu comecei essa aventura semiótica
há quase oito anos e a quem eu aprendi a admirar, como orientador exemplar que foi,
intelectual lúcido que é e amigo que sempre será.
À professora Norma Discini de Campos, em cujo curso eu comecei a enxergar
os caminhos desta tese e por cujo éthos, de voz doce e caráter rigoroso, eu me
encantei.
Ao professor e amigo Francisco Platão Savioli, que me mostrou, com
exemplos práticos, as vantagens da meritocracia, da transparência e da inteligência
coletiva.
Aos muitos professores semioticistas, que em cursos, congressos,
comunicações ou conferências contribuíram, talvez sem saber, para o
desenvolvimento desta pesquisa. Agradeço especialmente a Luiz Augusto de Moraes
Tatit, Diana Luz Pessoa de Barros, Claude Zilberberg, Antônio Vicente Seraphim
Pietroforte e Ivã Carlos Lopes.
Aos amigos semioticistas, agora todos mestres, meus grandes interlocutores:
Eduardo Antonio Lopes, outro obcecado pela enunciação; Luciana Adayr Arruda
Migliaccio, que dividiu suas angústias científicas comigo e com quem dividi as
minhas; e Paulo César de Carvalho, esse rapaz barroco e antropofágico que lê tudo,
entende tudo e ainda tem paciência para ensinar.
A todos os outros professores da equipe de Português do Anglo – Cely, Ivan,
De Paula, Dácio, Marcílio, Maurício, Aníbal, Paganim, Gustavão, Medina –, que me
incentivaram, de alguma forma, a terminar essa jornada.
Aos demais amigos do Anglo, que, em conversas despretensiosas sobre
ciência, literatura e lingüística, contribuíram para que a pesquisa atingisse este ponto.
Agradeço especialmente ao professor Wilson Liberato, outro mestre, pela sua
permanente solicitude.
Aos muitos amigos (Fernando, Bia, Samuel, Raquel, Cardy, Play, Thaís,
coração, mas da memória), cuja presença constante fez-me lutar contra o cansaço, as
noites em claro e o excesso de trabalho.
Aos meus compadres, Celso e Fernanda, e aos dois anjinhos, Lucas e Júlia, que
vieram ao mundo para alegrar meus dias.
Por último, agradeço a toda minha família, pelo apoio incondicional. Obrigado
a meus tios Édson e Magui e a minhas primas Érica e Marcela. Obrigado a meu irmão
pelos quase trinta anos de convivência ininterrupta, pelas polêmicas intelectuais e pela
admiração recíproca e sincera que temos. Obrigado a minha cunhada, que engatinha
no mundo das letras, mas que há de aprender o caminho das pedras. E obrigado a
Mariana, minha noiva, que soube compreender as dificuldades desse percurso e foi
RESUMO
Esta tese tem seus objetivos centrados em problemas de enunciação, entre os
quais se destacam aqueles que remetem às relações entre enunciação e enunciado,
enunciador e narrador, enunciatário e narratário, foco narrativo, éthos e estilo. O
corpus de análise é formado pelos nove romances de Machado de Assis, com atenção
especial às Memórias póstumas de Brás Cubas. A abordagem lingüística da obra
literária não é tarefa simples, fundamentalmente porque certos textos literários, como
os machadianos, apresentam procedimentos discursivos que não são fáceis de ser
explicados. Nossa idéia é a de levantar esses problemas de enunciação suscitados pelos
romances machadianos – como, por exemplo, a ironia e a delegação de voz – e
estudá-los de acordo com os pressupostos da Semiótica de linha francesa e, quando
necessário, aproveitando noções de outras teorias do discurso. Dessa maneira, nosso
trabalho poderá funcionar como uma “gramática discursiva” das Memórias póstumas,
o que permitirá tocar em questões que não estão plenamente solucionadas pelos
estudos lingüísticos ou literários.
Um objetivo específico da pesquisa é mostrar como se constrói o ator da
enunciação em Machado de Assis a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, uma
espécie de súmula de sua obra, pois esse romance oferece indícios suficientes para
sugerir o éthos machadiano. Apesar de a apreensão do éthos do enunciador depender
sempre de uma totalidade de discursos, procuramos comprovar que romances com
narrador-personagem, por apresentar marcas textuais que levam à distinção semântica
entre a enunciação de 1º grau e a de 2º grau, permitem que se depreendam
sinedoquicamente os traços característicos de um ator da enunciação. Ressalve-se que
isso não nos dispensou da obrigação de comprovar esse éthos com a totalidade da obra
do escritor.
ABSTRACT
This thesis has its goals centered in problems of enunciation, among which are
those ones that send to the relations between enunciation and enunciate, enunciator
and narrator, enunciatee and narratee, narrative focus, éthos and style. Nine novels of
Machado de Assis form the corpus of analysis, with special attention to Brás Cubas’
posthumous memoirs (Memórias póstumas de Brás Cubas). The linguistic approach of
the literary composition is not an easy task, fundamentally because certain literary
texts, as the machadians, feature discoursive proceedings, which are not easy to be
explained. Our idea is to raise these problems of enunciation suggested by machadian
novels such as irony and the delegation of voices – and study them according to the
presuppositions of French semiotics and, when necessary, taking advantage of notions
of other discourse theories. Thus, our work may function as a “discoursive grammar”
of Memórias póstumas, which will permit touching in questions that are not fully
solved by linguistic and literary studies.
A specific purpose of the research is to show how the actor of the enunciation
is built in Machado de Assis from Memórias póstumas de Brás Cubas, a kind of
summary of his literary work, for this novel offers indications enough to suggest the
machadian éthos. In spite of the enunciator’s éthos apprehension always to depend of
a totality of discourses, we try to prove that novels with narrator-character allow
synedochically that the typical traces of an actor of the enunciation are inferred – once
they present textual markers that lead to the semantic distinction between the
enunciations of first and second degrees. It should be taken into consideration that this
did not exempt us from the obligation of confronting that éthos with the totality of the
writer’s work.
1. Machado e as
Memórias póstumas
: o alto do pódio
Eu já havia lido e me apaixonado por sua obra,
especialmente Memórias póstumas de Brás Cubas (...)
(Harold Bloom, Gênio: os 100 autores mais
criativos da História da Literatura)
A História da Literatura, principalmente quando se envolve em explícitos juízos
de valor, é repleta de lugares-comuns. É claro que isso pode significar falta de
originalidade analítica, de pontos de vista teóricos mais ousados, de novidades críticas.
Mas pode-se pensar que alguns desses lugares-comuns podem ter sido
institucionalizados justamente por exprimir pontos de vista consensuais, que, ao longo
dos anos, foram se mostrando cada vez mais pertinentes e equilibrados. Em outros
termos, é como se alguns clichês, em lugar de ter nascido de uma leitura parcial e
subjetiva da História da Literatura, fossem a mais pura manifestação do que poderíamos
chamar – mesmo que sem rigor epistemológico – de justiça estética.
De fato, seria injustiça não reconhecer a proeminência de certos artistas. Mais do
que injustiça, seria leviandade, porque nos privaríamos de tentar dar uma explicação
satisfatória – embora jamais definitiva – sobre o fato de certas obras permaneceram
vivas por 50, 100, 200, 500, 1000 ou 2000 anos, enquanto outras não valem suas
primeiras edições. É certo que muitos textos desses milhares de anos da História da
Literatura mereceriam uma sorte melhor e que talvez alguns outros, que tiveram melhor
sorte, não a merecessem. Porém, de uma maneira geral, as obras que sobreviveram por
tantas e tantas gerações costumam fazer jus a nossa atenção.
No Brasil, embora nossa História da Literatura seja relativamente recente, pois
que proporcional à chegada dos europeus à América, também convivemos com certos
lugares-comuns, com o nome de certos escritores que, vencendo o crivo implacável do
tempo, justificam a popularidade que alcançaram, se não em vendas, ao menos em
prestígio intelectual. Um desses nomes é o de Joaquim Maria Machado de Assis.
É, sem dúvida alguma, um clichê reconhecer em Machado a figura mais
importante da Literatura no Brasil. E um clichê – diga-se de passagem – veiculado e
defendido por estudiosos que se tornaram argumentos de autoridade na hora de abordar
Literatura Brasileira, por exemplo, Antonio Candido e José Aderaldo Castello afirmam
que Machado representa
o exemplo mais perfeito que temos de equilíbrio entre o homem e o escritor,
preenchendo uma vida harmoniosa e fecunda, tanto em termo de relações
humanas quanto de criação literária. Durante mais de cinqüenta anos, desde os
seus primeiros sucessos (...), entregou-se serenamente aos estudos e à atividade
de escritor, pautada por uma evolução segura. Resultou daí uma obra definida
por uma linha ascendente uniforme, em consonância com a conduta, com o
prestígio, o respeito e a admiração de que se fez merecedor (1996, p. 299).
Candido, em seu famoso ensaio “Esquema de Machado de Assis”1, endossa as
palavras da Presença da Literatura Brasileira:
Se analisarmos a sua carreira intelectual, verificaremos que foi admirado e
apoiado desde cedo, e que aos cinqüenta anos era considerado o maior escritor
do país, objeto de uma reverência e uma admiração gerais, que nenhum outro
romancista ou poeta brasileiro conheceu em vida, antes e depois dele (1995, p.
18).
Os primeiros historiadores da Literatura Brasileira, com efeito, apresentavam
posições críticas semelhantes às de Candido. José Veríssimo, em sua História da
Literatura Brasileira, de 1916, dizia na abertura do seu capítulo sobre o amigo Machado
de Assis:
Chegamos agora ao escritor que é a mais alta expressão do nosso gênio
literário, a mais eminente figura da nossa literatura, Joaquim Maria Machado
de Assis (1916, p. 415).
Ronald de Carvalho, três anos após Veríssimo, publica sua Pequena História da
Literatura Brasileira. Sobre Machado, ele diz:
1
Machado é, sem contestação, sob variados aspectos, o mais significativo dos
escritores da língua portuguesa e, especialmente entre nós, ficará como
exemplo de discrição, graça de estilo e finura de percepção (1937, p. 317).
Mais recentemente, Alfredo Bosi, em sua História concisa da Literatura
Brasileira, embora de uma maneira mais contida, é taxativo na hora de definir
Machado:
O ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira acha-se na
ficção de Machado de Assis (1994, p. 193).
São inúmeras as “histórias da literatura” que ajudariam a comprovar a tese de
que Machado de Assis é a figura mais importante da Literatura Brasileira de todos os
tempos2. Até mesmo fora do Brasil, como mostram os trabalhos de Helen Caldwell ou
John Gledson, aceita-se essa tese. O célebre crítico Harold Bloom vai mais longe e, em
seu livro Gênio: os 100 autores mais criativos da História da Literatura, classifica
Machado como “o maior literato negro surgido até o presente” e, depois, conclui:
Machado de Assis é uma espécie de milagre, mais uma demonstração de
autonomia do gênio literário, quanto a fatores como tempo e lugar, política e
religião, e todo o tipo de contextualização que supostamente produz a
determinação dos talentos humanos (2003, p. 687-688).
Essa idéia de Bloom é provavelmente a mesma que levou Roberto Schwarz a
nomear um dos seus livros sobre Machado com o título de Um mestre na periferia do
capitalismo.
Poderíamos fazer um inventário de todos os elogios recebidos por Machado ao
longo dos anos. E não foram poucos. Mas não é exatamente isso que nos interessa.
Nossa intenção é inicialmente mostrar que essa popularidade e essa credibilidade
do “bruxo do Cosme Velho”, para ficar com a belíssima expressão de Drummond,
devem-se, entre outros fatores, à competência de manipular as mais variadas estratégias
de enunciação. Machado é um mestre do discurso e, por isso, um desafio para o analista,
2
já que não é tarefa fácil explicar os mecanismos enunciativos convocados para produzir
os efeitos estéticos que os leitores conhecem tão bem.
De todas as suas obras, aquela que parece congregar o maior número de
problemas de enunciação são as Memórias póstumas de Brás Cubas. Trata-se de um
romance revolucionário, que funcionou como um verdadeiro divisor de águas na
carreira machadiana. Bosi, por exemplo, fala de um “salto qualitativo” representado
pelo romance (1994, p. 198). Com efeito, as Memórias póstumas, pela ironia, pelo
narrador morto, pelos jogos verbais e gráficos, pelas digressões, pelas conversas ora
ácidas ora amigáveis com o leitor, talvez constituam a experiência estética mais radical
da obra machadiana. Em nenhum outro texto – romance, conto, crônica, teatro ou poesia
–, Machado procurou ser tão inovador.
A escolha da obra romanesca de Machado – com destaque especial às Memórias
póstumas – para formar nosso corpus de análise deve-se a dois fatores: em primeiro
lugar – e seria ingenuidade escondê-lo –, ao gosto pessoal do pesquisador (é, sem
dúvida, mais conveniente escrever sobre textos que se admiram e de que se gosta); o
segundo é a crença – discutível, mas não de todo indefensável – de que uma análise é
tanto mais rentável quanto mais sofisticada é a criação estética. Mesmo lembrando que
Greimas analisou semioticamente uma receita de sopa (até mesmo para mostrar, de
maneira peremptória, a validade de seu modelo teórico), sabe-se que isso é mais a
exceção do que a regra. É mais proveitoso para o analista trabalhar com Guimarães
Rosa do que com Humberto de Campos. E não temos aí um problema de julgamento
artístico e sim uma questão objetiva: objetos estéticos que condensam sutilezas
enunciativas costumam render mais para a análise do que outros que não as condensam.
Não seria novidade afirmar que a obra de Machado apresenta essas sutilezas.
De toda a vasta obra do polígrafo Joaquim Maria Machado de Assis, foram seus
textos em prosa – principalmente contos e romances – que sempre mereceram maior
atenção da crítica e dos leitores. Essa atenção não foi gratuita: muito provavelmente, é
nesses dois gêneros que encontramos os pilares do que se convencionou de estilo
machadiano. Mas é importante destacar que, embora algumas narrativas, como “O
alienista”, “Missa do galo”, “A cartomante”, “A causa secreta”, “O segredo do Bonzo”,
entre tantas outras, sejam consideradas exemplares, o conto, pelas limitações impostas
pelo tamanho, não pode ser tomado como o melhor tipo de manifestação de certos
podem revelar-se em meio à complexidade dos romances. Sobretudo por isso, a
pesquisa tratará especificamente dos romances machadianos.
Ao todo Machado escreveu nove romances: Ressurreição (1872), A mão e a luva
(1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881),
Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires
(1908).
O centro de nossa análise será – como dissemos – Memórias póstumas de Brás
Cubas, romance que oferece um número enorme de problemas de enunciação e que
tomaremos como uma espécie de súmula da obra machadiana. Em nenhum outro
romance, houva tanta ousadia discursiva, tanta inovação narrativa, tanto
experimentalismo. Por isso, a pesquisa – sob o argumento de diminuir a extensão do
corpus de análise e, com isso, permitir uma leitura mais aprofundada de um romance
(em lugar de promover uma interpetação periférica de nove narrativas) –
concentrar-se-á nas Memórias póstumas. Mas, além disso, os outros oito romances também serão
mencionados, sobretudo como comprovação de certas generalizações sugeridas a partir
das observações de questões enunciativas nas Memórias póstumas.
2. Lingüística e Literatura: uma tentativa de conciliação
(...) um lingüista surdo à função poética da linguagem e um especialista
da literatura indiferente aos problemas lingüísticos e ignorante dos
métodos lingüísticos são, um e outro, flagrantes anacronismos.
(Roman Jakobson, Lingüística e comunicação)
Partindo dos conceitos desenvolvidos pela Semiótica de linha francesa e,
eventualmente, aproveitando noções de outras teorias do discurso, o grande objetivo
deste trabalho será o de levantar e estudar alguns problemas enunciativos suscitados
pela análise dos romances machadianos, principalmente aqueles que remetem às
relações entre enunciação e enunciado, enunciador e narrador, enunciatário e narratário,
foco narrativo, éthos e estilo.
Antes de tudo, vale a pena observar que iniciar uma pesquisa que associe os
afinal, como notou Maingueneau, as relações entre a Lingüística e a Teoria Literária
sempre estiveram separadas por um “fosso” (1996, p. 1-3). Isso, de certo modo, explica
por que tantos literatos sempre se afastaram do rigor da nomenclatura lingüística, que
lhes parecia “aprisionar” o sentido dos textos, como se eles fossem um cadáver que
estivesse sendo dissecado, e por que, ao mesmo tempo, alguns lingüistas evitaram a
análise dos textos literários, com medo de entrar em um território que não lhes
pertencia, como se a análise literária fosse incompatível com a metalinguagem
lingüística.
Sem querer entrar, a priori, em polêmicas desse tipo, este trabalho pretende
analisar os romances de Machado de Assis a partir de uma perspectiva lingüística.
Desse modo, procuraremos mostrar que a problemática da enunciação desenvolvida,
com base em Benveniste, pelos estudos semióticos é útil e, mais do que isso, adequada
para abordar o texto literário, ao mesmo tempo em que procuraremos atestar que o texto
literário não estará sendo “aprisionado” ou “reduzido” se for analisado de acordo com a
teoria semiótica. Para comprovar que essa tarefa é perfeitamente possível, basta retomar
as próprias palavras de Jakobson na epígrafe deste item.
Nos anos 70, quando Greimas organizou a publicação de Ensaios de semiótica
poética, já havia uma preocupação em estudar, com os instrumentos de Semiótica, o
texto literário. O interesse específico pela poesia explicava-se pelo fato de que o
discurso literário, por ser
interpretado como uma conotação sociocultural, variável segundo o tempo e o
espaço humanos (Greimas, 1975, p. 11),
não poderia ser tomado como “autônomo”, o que dificultaria pensar em uma “teoria
geral da literatura” (Greimas, 1975, p. 11). Dessa maneira, o interesse específico pelo
“fato poético” – suscitado por Jakobson (1991) – era uma maneira de fugir às limitações
da pesquisa semiótica nos anos 70:
Impossibilitada de buscar apoio numa teoria geral dos discursos, a semiótica
poética se vê assim compelida a ir forjando pelo caminho seus próprios
Essa ausência de uma “teoria geral dos discursos” poderia não comprometer o
trabalho com o texto literário se, de fato, houvesse uma teoria consagrada da literatura.
Sim, porque nos estudos literários somos obrigados a reconhecer que muitas vezes
há discussões demais sobre questões não-literárias, debate demais sobre questões gerais cuja relação com a literatura quase não é evidente, leitura demais
de textos psicanalíticos, políticos e filosóficos difíceis (Culler, 1999, p. 11).
Se tomamos o termo teoria como
um sistema coerente e relativamente simples de hipóteses (regras) que, de um
modo explícito e adequado, “expliquem” (as propriedades de) certo objeto de
estudo que tenha um objetivo epistemológico pertinente (Dijk, 1975, p. 210),
nota-se como certas análises literárias ficam em torno do texto, e não no texto,
preferindo discutir as ramificações da literatura a enfrentar diretamente o texto literário
e, assim, explicitar – de acordo com “critérios da metodologia científica” (Dijk, 1975, p.
210) – seu funcionamento.
A crítica literária – digamos – sociológica, que se debruçou principalmente sobre
a análise do romance, é um dos ramos dos estudos literários que, embora se tenha
desenvolvido bastante, deixava o trabalho com o texto em segundo plano. Goldmann
(1976), por exemplo, tratando da personagem romanesca, fala do conflito que se
estabelece entre o herói e o mundo, mostrando que rupturas radicais levam à tragédia ou
à poesia lírica, enquanto a ausência de ruptura origina o conto ou a epopéia.
Situado entre esses dois pólos, o romance possui uma natureza dialética na
medida em que, precisamente, participa, por um lado, da comunidade
fundamental do herói e do mundo que toda forma de épica supõe, e, por outra
parte, de sua ruptura insuperável; a comunidade do herói e do mundo resulta,
pois, do fato de ambos estarem degradados em relação aos valores autênticos, e
a sua oposição decorre da diferença de natureza dessas degradações (Goldmann,
Essas idéias, baseadas em Lukács, colocam o romance como um sistema de
significação profundamente dialético, capaz de representar artisticamente as
contradições do mundo contemporâneo.
Toda forma artística é definida pela dissonância metafísica da vida que ela
afirma e configura como fundamento de uma totalidade perfeita em si mesma; o
caráter de estado de ânimo do mundo assim resultante, a atmosfera envolvendo
homens e acontecimentos é determinada pelo perigo que, ameaçando a forma,
brota da dissonância não absolutamente resolvida. A dissonância da forma
romanesca, a recusa da imanência do sentido em penetrar na vida empírica,
levanta um problema de forma cujo caráter formal é muito mais dissimulado do
que o das outras formas artísticas e que, por ser na aparência questão de
conteúdo, exige uma colaboração talvez ainda mais explícita e decisiva entre
forças éticas e estéticas do que no caso de problemas formais evidentemente
puros (Lukács, 2003, p. 71).
A “dissonância metafísica da vida” exige do romancista um constante
aperfeiçoamento do seu aparato formal, que deve ser capaz de “penetrar na vida
empírica”, isto é, na História. Daí a ligação inevitável entre a crítica sociológica e o
marxismo, que
hoje é, com efeito, a referência constante e obrigatória [da crítica sociológica]
(...). Sociocrítica designará, pois, a leitura do histórico, do social, do ideológico, do cultural, nessa configuração estranha que é o texto: ele não existiria sem a
realidade, e a realidade, em última instância, teria existido sem ele (...)
(Barbéris, 1997, p. 146).
Essa valorização da “vida empírica”, da “realidade”, “do histórico, do social, do
ideológico, do cultural” faz com que o romance seja compreendido menos como uma
construção de sentido do que como um retrato estético de um momento da vida
burguesa. Assim, mais uma vez, embora haja uma base teórica nos trabalhos da crítica
sociológica, não se pode falar em uma “teoria” do texto literário.
Não é sem razão que Bakhtin discorda das premissas de Lukács e seus
(Bakhtin, 2002, p. 72). Por isso, não seria possível considerá-lo como expressão do
materialismo dialético ou histórico, como queriam os sociocríticos. O romance seria,
para ele, “um fenômeno pluriestilístico, plurilíngüe e plurivocal” (p. 73).
Sempre interessado em desvendar o funcionamento da linguagem literária,
Bakhtin considera que o romance não é uma criação moderna, mas “uma das formas
históricas da expressão do gênero”, que nega os limites que se lhe impõem e procura
incorporar “vozes que estavam fora do sistema” (Fiorin, 2006b, p. 117).
O romance pressupõe uma descentralização semântico-verbal do mundo
ideológico, uma certa dispersão da consciência literária que perdeu o meio
lingüístico indiscutível e único do pensamento ideológico, que se encontrava
entre as línguas sociais nos limites de uma única linguagem (...) (Bakhtin, 2002,
p. 164).
É certo que Bakhtin caminhou em direção à construção de uma teoria da
literatura, mas não existe em sua obra um momento em que “se encontram todos os
conceitos acabados e definidos” (Fiorin, 2006b, p. 5). De qualquer modo, ele é um dos
pesquisadores do século XX que procuraram desenvolver, de alguma maneira, uma
teoria do texto literário.
Outros trabalhos que costumam ser empregados nas análises de romances
também não chegam a formalizar – com o rigor que se espera – uma teoria acabada e
definida. No início de Aspectos do romance, por exemplo, Forster trata do texto literário
empregando a linguagem figurada:
(...) o romance é uma massa formidável e tão amorfa que não possui sequer uma
montanha a ser escalada, nem Parnaso ou Hélicon, nem mesmo um Pisga.
Especificando: é uma das áreas mais úmidas da literatura – irrigada por uma
centena de riachos, degenerando-se ocasionalmente num pântano (1999, p. 9).
Essa passagem reafirma a complexidade que envolve a análise de um romance,
mas está longe de adotar uma postura metodológica consistente.
Outro exemplo desse fenômeno está no ABC da literatura de Pound, em que a
definição de literatura como “linguagem carregada de significado” (2001, p. 32) não
(“inventores”, “mestres”, “diluidores”, “bons escritores sem qualidades salientes”,
“beletristas” e “lançadores de modas” [p. 42]), Pound acaba contribuindo mais para o
julgamento crítico do que para a análise textual, numa postura que é muito comum nos
estudos literários.
Não é nossa intenção condenar os trabalhos de Lukács, Forster ou Pound. Eles
têm inestimável valor. O problema é que eles não chegam a estabelecer uma teoria da
literatura que parta do texto e tente desvendar como se produz o sentido no universo
literário. Ora, é exatamente por isso – pela produção do sentido – que a Semiótica se
interessa. Se, nos anos 70, a inexistência de uma “teoria geral dos discursos” (Greimas,
1975, p. 14) praticamente impedia uma análise semiótica da literatura, atualmente já
temos um aparato teórico capaz de dar conta de muitos aspectos da complexidade do
texto literário.
Dessa forma, a análise semiótica do texto literário não pretende rivalizar com os
estudos literários. Nossa intenção é apenas mostrar que não deveria haver aquele fosso
de que falava Maingueneau e que a Lingüística pode, sim, ajudar a desvendar alguns
dos mistérios da literatura.
A obra Métodos críticos para a análise literária (Bergez et alii, 1997) mostra
como o texto literário tem sido abordado de diferentes formas e como elas não são
excludentes. Há cinco capítulos: um para a crítica genética, um para a crítica
psicanalítica, um para a crítica temática, um para a sociocrítica e um para a crítica
textual. Neste último, Valency faz uma compilação de idéias de Greimas, Benveniste,
Bakhtin, Ducrot, Barthes, Todorov, Maingueneau e Genette, entre outros, para mostrar
como – desde a análise estrutural das narrativas até as problemáticas da enunciação – a
pesquisa lingüística foi oferecendo cada vez mais subsídios para decifrar o texto
literário, explicitando-lhe o funcionamento. Valency, em seu trabalho, desenvolve uma
idéia de Genette, para quem a
crítica talvez não tenha nada a fazer, não possa fazer nada, enquanto ela não
tenha decidido – com tudo o que essa decisão implica – considerar toda obra ou
toda parte de obra literária como um texto, quer dizer como um tecido de figuras onde o tempo (ou, como se diz, a vida) do escritor que escreve e o do leitor que
lê se juntam e se misturam em meio às contradições da página e do volume
Essa preocupação com o texto confirma a impressão, presente em Culler, de que
há “discussões demais sobre questões não-literárias” nas análises literárias. A proposta
de Genette corrobora o ponto de vista semiótico de que toda análise deve partir do texto,
e não de qualquer tipo de elemento exterior ao enunciado. Bertrand explica com
propriedade esse ponto de vista:
Nosso método consiste pois, inicialmente, em nos atermos ao texto
propriamente dito, em reconhecer sua autonomia relativa de objeto significante
Ele considera o texto como um “todo de significação” que produz em si mesmo,
ao menos parcialmente, as condições contextuais de sua leitura. Uma das
propriedades sempre reconhecidas no texto dito “literário” é que (...) ele
incorpora seu contexto e contém em si mesmo o seu “código semântico”: ele
integra assim, atualizado por seu leitor e independente das intenções de seu
autor, as condições suficientes para sua legibilidade (2003, p. 23).
Haveria então, para Bertrand, quatro dimensões (a “narrativa”, a “passional”, a
“figurativa” e a “enunciativa”) que “se articulam de maneira específica” no texto
literário (2003, p. 27).
Nesta tese, haverá uma preocupação maior – e não poderia ser diferente, de
acordo com nossos objetivos – com a dimensão enunciativa dos textos literários. Quem
sabe assim, contribuímos para diminuir o fosso a que Maingueneau se referia...
3. Objetivos e métodos: o mapa do percurso
Antes de iniciar este livro, imaginei
construí-lo pela divisão do trabalho.
(Graciliano Ramos, São Bernardo)
É certo que, ao abordar lingüisticamente a obra literária, encontramos algumas
dificuldades. Talvez a maior delas resida no fato de que alguns textos literários
apresentam procedimentos discursivos que não são fáceis de ser explicados. É
justamente por esses mecanismos discursivos complexos que este trabalho irá se
Um desses procedimentos que discutiremos é a ironia, conceito que muitas
vezes, na crítica machadiana, é empregado de modo mais amplo do que sua própria
definição sustenta. Essa discussão sobre a ironia, por exemplo, suscitará outros
problemas, mais complexos, e será o ponto de partida para delimitar qual é o raio de
atuação do narrador e do enunciador nos romances machadianos, até porque, algumas
vezes, por metalepses, quem parece falar no texto machadiano é o enunciador, e não o
narrador. Proporemos então uma reclassificação de narradores e enunciadores que,
levando em conta os inúmeros trabalhos que já se debruçaram sobre o problema do foco
narrativo, possa servir para – é nossa pretensão – compreender melhor essas instâncias
actanciais enunciativas e, assim, permitir que os estudos lingüísticos contribuam, de
fato, para decifrar alguns dos enigmas enunciativos propostos por Machado de Assis.
O caso da ironia e o problema da delegação de voz são apenas dois dos
problemas de enunciação sugeridos pelos romances machadianos. Nossa intenção é
levantar e estudar mais alguns deles. Nosso trabalho também poderá funcionar como
uma “gramática discursiva” das Memórias póstumas, mostrando que essa narrativa
possui traços inovadores na Literatura Brasileira não só de natureza histórica ou
conteudística, mas também de natureza lingüística.
Um exemplo disso seria o romance, ao mesmo tempo, teorizar e exemplificar
suas estratégias enunciativas, pois o narrador-enunciador não se priva de comentar os
meios pelos quais está sendo construído o discurso nas passagens metalingüísticas na
obra. Outro elemento complicador está no fato de Memórias póstumas funcionar como o
simulacro de uma autobiografia. Desde a dedicatória aos vermes decompositores e a
advertência do romance, supostamente compostas por Brás Cubas, é como se o autor da
obra fosse, de fato, alguém que não Machado de Assis. É evidente que se trata de um
jogo de cena, por meio da qual o sujeito da enunciação apresenta Brás Cubas não apenas
como narrador da obra, mas também como seu enunciador.
Se realmente tomássemos Brás Cubas como enunciador da obra (e há indícios
que poderiam justificar essa idéia), Memórias póstumas acabaria cometendo uma
incoerência, já que Brás demonstra durante toda a narrativa uma erudição (por meio de
citações de escritores e filósofos renomados da tradição ocidental) incompatível com seu
caráter volúvel e seus conhecimentos superficiais. Essa presumível incoerência já foi
apontada por vários estudiosos em relação, por exemplo, a São Bernardo, romance de
brutalidade. Na verdade, como veremos, é bastante discutível se, nas obras em que o
narrador assume também a posição de ator do enunciado, sua linguagem (tanto no nível
da variedade empregada quanto no das referências interdiscursivas e intertextuais) deve
ser adequada a seu suposto padrão cultural.
Todas essas questões, que serão discutidas ao longo dos três próximos capítulos,
e muitas outras de que também trataremos foram levantadas a partir de uma leitura
sistemática da obra machadiana, com atenção especial às Memórias póstumas, para que
fosse possível apreender os problemas enunciativos mais recorrentes em seus textos,
dando atenção, principalmente, àqueles que não estão plenamente solucionados pelos
estudos lingüísticos ou literários.
Um objetivo específico desta tese é discutir as questões ligadas ao conceito de
estilo, mostrando como se constrói o ator da enunciação em Machado de Assis. É
consenso teórico que a semantização do enunciador só se dá a partir de uma totalidade
de discursos. Mas como acreditamos que as Memórias póstumas de Brás Cubas possam
funcionar como uma espécie de súmula da obra machadiana, há a hipótese de que
apenas esse romance possa oferecer indícios suficientes para identificar o éthos
machadiano. Dessa forma, a análise da complexidade discursiva das Memórias
póstumas nos levaria ao enunciador.
Uma rápida síntese do que trataremos em cada um dos três capítulos desta tese
ajudará a precisar nossos objetivos e nossa metodologia de trabalho.
Capítulo 1
Esse capítulo tem como objetivo apresentar os pressupostos teóricos da pesquisa.
O primeiro item será dedicado ao problema dos níveis enunciativos e abordará
as relações entre enunciador e enunciatário, entre narrador e narratário e, quando
necessário, entre interlocutor e interlocutário, o que implicará diferenciar continuamente
actantes do enunciado e actantes da enunciação. Desses três níveis enunciativos, o
primeiro – por ser pressuposto – será analisado mais detidamente, principalmente no
que diz respeito ao estatuto do enunciador, que será visto como resultado de coerções
históricas. Na análise dos níveis enunciativos, aproveitaremos também a noção
genettiana de diegese.
Em relação ao segundo nível, começaremos uma discussão a respeito do
narrador é “falar”, pois sempre há um ponto de vista a partir do qual se fala. Assim,
além de discutir quem fala nos textos, é necessário tocar no problema de quem observa e
de quem age na narrativa, ou seja, delimitar como se relacionam observadores, atores do
enunciado e atores da enunciação. Dessa maneira, podemos concluir quais são os efeitos
de sentido produzidos pelas múltiplas configurações discursivas.
O segundo item fará, inicialmente, um inventário de algumas abordagens do
conceito de enunciação. Em seguida, retomaremos o problema dos níveis enunciativos,
para tratar de suas respectivas enunciações, apontando questões de sintaxe discursiva e,
principalmente, de semântica discursiva. A noção de ironia será então utilizada para
mostrar a importância teórica de diferenciarmos as enunciações de 1º, 2º e 3º grau.
O terceiro item retoma os três “quem” do primeiro item por meio de uma
discussão sobre foco narrativo, dando exemplos de como as posições de narrador,
observador e ator do enunciado podem articular-se. Partindo da conhecida
sistematização de Friedman e aproveitando as noções de onisciência (em Barros) e
focalização (em Genette e Fiorin), procuraremos fazer uma taxinomia dos tipos de
narrador, adotando uma perspectiva semiótica.
O último item do primeiro capítulo interessa-se pelas noções de éthos e estilo, já
semiotizadas por Discini. Trataremos do efeito de individuação que subjaz a um
conjunto de discursos e que delimita o ator da enunciação.
Como o segundo e o terceiro capítulo da tese concentrarão seus exemplos na
obra machadiana, optamos – para evitar as repetições e mostrar o alcance das teorias
aqui apresentadas – por extrair os exemplos do primeiro capítulo de outras obras
célebres da literatura universal, fundamentalmente do século XX.
Capítulo 2
O segundo capítulo consistirá na análise, com base nos pressupostos do capítulo
anterior, de muitos dos elementos inovadores – do ponto de vista discursivo – presentes
em Memórias póstumas de Brás Cubas.
O primeiro item define o romance como subversivo. Isso ocorre, como se verá
ao longo de todo o capítulo, devido às complexas relações que se estabelecem entre
enunciação e enunciado, entre enunciador e narrador, entre enunciatário e narratário,
O segundo item apresenta o romance como simulacro de uma autobiografia,
destacando a vinculação de Machado à literatura carnavalizada, à sátira menipéia, à
tradição luciânica.
No terceiro item, retomando a questão dos níveis enunciativos, falaremos sobre
as distinções entre a narrativa e os comentários à narrativa, entre a fábula e trama,
mostrando como enunciação e enunciado se articulam nas Memórias póstumas. Além
disso, trataremos do problema das digressões machadianas. De alguma maneira, todos
os elementos desse item confirmam a dimensão metaenunciativa do romance, o que
exemplificaremos ampliando o conceito de modalidade autonímica.
O quarto item volta a falar da ironia e dos níveis enunciativos, distinguindo as
ironias produzidas pelo narrador das que o atingem. Eis um dos momentos da tese em
que é possível notar uma forte dissensão semântica entre enunciação e enunciado.
O quinto item traz a discussão para a posição do destinatário, analisando o papel
do narratário na obra e dos pseudonarratários instalados por meio de insistentes
apóstrofes. Falaremos da ligação de Machado com os gêneros folhetinescos, da função
de direção, das marcas de oralidade no enunciado e, principalmente, do caráter
dialógico presente nas Memórias póstumas.
No sexto item, aproveitando a proposta teórica de Fiorin sobre os contratos
enunciativos e incorporando as definições clássicas de Realismo e Romantismo,
mostraremos como o romance nega as interpretações objetivantes e subjetivantes da
realidade, ao mesmo tempo em que satiriza os exageros românticos.
O sétimo item é dedicado às manifestações de erudição de Brás por meio das
excessivas referências históricas, literárias, mitológicas e filosóficas, que pertencem à
instância da enunciação de 1º grau, e não à de 2º. Abordaremos ainda algumas questões
associadas ao foco narrativo, às citações truncadas e ao discurso indireto livre.
O oitavo item aborda as formulações teóricas de Brás e seu caráter
pseudocientífico. A idéia é, recuperando o conceito de modalidade autonímica, mostrar
que essas formulações servem ora para figurativizar o próprio estilo enunciativo, ora
para justificar ações dos atores; daí que elas sejam decisivas para mapear a enunciação
do texto.
No nono item, Brás é apresentado, à semelhança dos demais membros de nossas
elites imperiais, como um sujeito cujo comportamento é marcado pela volubilidade,
romance à tradição menipéia, uma vez que a postura narrativa de Brás é caracterizada
pela inconclusividade e pelo inacabamento.
O décimo item retoma a filosofia humanitista, já mencionada no item sobre
ironia, para tomá-la como uma tentativa de legitimação da busca desenfreada pelo
prazer, o que, por um lado, funciona como sátira aos cientificismos naturalistas e, por
outro, reforça o caráter interesseiro e egoísta de Brás.
Após essa longa análise do mais conhecido romance machadiano, o último item
deste segundo capítulo pretende levantar as características do ator da enunciação a partir
das Memórias póstumas. É claro que, no caso de Machado de Assis, assim como na
obra de qualquer outro literato, para delimitar seu estilo e precisar as características de
seu enunciador, é necessário recorrer a outros textos, sem os quais não se tem uma
totalidade de discursos.
Ocorre que nossa tese é justamente a de que Memórias póstumas parece ser, em
sua complexidade, uma espécie de súmula da obra machadiana, de modo que, por meio
dessa obra, reconstruir-se-ia sinedoquicamente o ator da enunciação “Machado de
Assis”. Dessa forma, procuraremos delimitar o estilo machadiano a partir de um único
romance.
Nesse item, desenvolveremos uma hipótese de éthos do enunciador, partindo dos
três elementos – caráter, voz e corpo – que o definem, de acordo com Maingueneau. Um
elemento que será central para essa hipótese é o cinismo do enunciador, que se combina
com a indiferença do narrador e a ambição desmedida dos demais atores do enunciado.
Capítulo 3
Não adiantaria sugerir um éthos a partir das Memórias póstumas se não
pudéssemos comprová-lo em outros textos que constituem a totalidade discursiva
produzida por Machado. Dessa maneira, no terceiro capítulo da tese, nosso objetivo será
o de mostrar que o enunciador machadiano, depreendido da análise das Memórias
póstumas, está presente nos seus outros oito romances.
Haverá três itens nesse capítulo: um para o caráter, um para a voz e um para o
corpo. Cada uma das características apontadas no último item do segundo capítulo será
retomada e, com exemplos extraídos dos demais romances de Machado de Assis,
Base teórica
A base teórica da pesquisa será – como já apontamos – a Semiótica, com
eventuais incursões em outras teorias do discurso: tomaremos como referência
bibliográfica as obras de Algirdas Julien Greimas, que estabeleceram os primeiros
paradigmas semióticos, bem como as de Joseph Courtés, Jacques Fontanille e Claude
Zilberberg. A pesquisa também recorrerá aos estudos discursivos de José Luiz Fiorin,
Norma Discini de Campos, Diana Luz Pessoa de Barros, Dominique Maingueneau,
Gérard Genette, Denis Bertrand, Jacqueline Authier-Revuz, Catherine
Kerbrat-Orecchioni e Luiz Tatit, às teorias da enunciação propostas por Emile Benveniste e
Roman Jakobson, às obras “polifônicas” de Mikhail Bakhtin, Umberto Eco e Roland
Barthes. Além disso, procuraremos, dentro do possível, aproveitar sugestões de
trabalhos da Teoria Literária, principalmente daqueles que, ao analisar as obras de
Machado, já abordaram – ainda que de uma maneira não sistemática – problemas de
enunciação em Machado, como ocorre em obras de Antonio Candido, Alfredo Bosi,
Roberto Schwarz, John Gledson, Harold Bloom, José Aderaldo Castello, Ivan Teixeira e
Massaud Moisés.
Considerando que nossa perspectiva de análise é textual, durante toda a tese
procuraremos justificar nossas observações teóricas com exemplos, com citações
extraídas das obras analisadas3. O que poderia ser uma falha do trabalho – o excesso de
citações literárias – é, na verdade, fidelidade ao modelo, afinal, como sugeriu Greimas,
EXTRA TEXTVM NVLLA SALVS.
3
Capítulo 1:
Problemas
gerais
1. Uma questão de níveis: alguns fundamentos teóricos
(...) uma teoria semiótica geral está destinada a topar limites ou “umbrais”.
Alguns desses limites serão estabelecidos por uma espécie de acordo
transitório, outros serão determinados pelo próprio objeto da disciplina.
(Umberto Eco, Tratado Geral de Semiótica)
No Curso de lingüística geral,Saussure dizia que uma das constantes tarefas da
Lingüística seria a de “delimitar-se e definir-se a si própria” (1993, p. 13). Isso porque o
fazer científico, de fato, coloca-nos repetidamente diante do problema dos limites, das
fronteiras, dos contornos, dos perímetros, dos “umbrais” de qualquer teoria. É por isso
que o alcance de uma disciplina é relativo, é variável, e seus objetos de estudo podem
alterar-se ao longo do tempo.
Com a Semiótica não é diferente. Embora, desde o final dos anos 60, desde
Semântica estrutural, haja – nesse ramo dos trabalhos lingüísticos – o princípio
norteador de que a Semiótica se interessa pela produção do significado, tomando o
sentido como algo que pode ser apreendido por um método, e não pela mera intuição, os
semioticistas estão constantemente desenvolvendo as noções teóricas greimasianas,
aumentado-lhes o raio de alcance, determinado-lhes novos “umbrais”, fazendo com que
a Semiótica se (re)delimite e (re)defina a si própria continuamente.
Esse processo, inerente – repita-se – ao trabalho científico, por um lado, garante
o pleno desenvolvimento dos modelos teóricos, que se ajustam cada vez mais às
necessidades impostas pelos objetos de análise, mas, por outro, obriga-nos a trabalhar
com uma teoria que nunca é definitiva, pois parece estar à espera de um acabamento, de
um aperfeiçoamento, que nunca vem completamente. Fazer ciência é, de certo modo,
conviver, com essa contradição insolúvel.
Pode-se levar essa discussão sobre as contradições da ciência para um dos
assuntos mais relevantes desta tese: o problema dos níveis enunciativos. Para começar,
tratemos do problema dos níveis na Semiótica.
O percurso gerativo de sentido propõe um método de estudar textos, em que se
concebe um “caminho” que vai das estruturas elementares de significação para suas
manifestações discursivas. Desse modo, a “estrutura profunda” do texto vai sendo
discursivizada. Ao tomar contato com um texto pronto, portanto, está-se diante de um
jogo de significação que pressupõe estágios anteriores: os sentidos foram concebidos
antes de se projetar sobre o enunciado. Esses três estágios do percurso (o fundamental, o
narrativo e o discursivo), que se convertem nesta progressão
fundamental ! narrativo ! discursivo,
mas são apreendidos nesta outra
discursivo ! narrativo ! fundamental,
são chamados níveis, entendidos como
um plano horizontal que pressupõe a existência de outro plano que lhe é
paralelo. Trata-se de um semema figurativo abstrato que serve de conceito
operatório em lingüística e que se identifica, em geral, no uso corrente, com
outras denominações vizinhas, tais como plano, patamar, dimensão, instância,
eixo, estrato, camada, etc (Greimas & Courtés, 1983, p. 305).
A noção de nível, bastante presente nos estudos de Benveniste e Hjelmslev,
“entra na definição da pertinência semiótica” (Greimas & Courtés, 1983, p. 305), na
medida em que, para apreender os sentidos de um texto, é necessário precisar quais os
níveis de análise serão convocados no processo de interpretação.
Além disso, é imprescindível destacar que, na consideração desses níveis,
pressupõe-se uma hierarquia. Mas faça-se a ressalva de que
qualquer conotação eufórica ou disfórica que aí se acrescentar será de ordem
metafísica ou ideológica e, como tal, não pertinente em semiótica (Greimas &
Courtés, 1983, p. 305).
Por isso, não se pode dizer, por exemplo, que o nível discursivo, por ser mais
complexo e mais concreto do que os níveis fundamental e narrativo, é mais importante
percurso gerativo de sentido, eles foram definidos como categorias estruturais do
processo de significação, sem nenhuma axiologização prévia.
O estudo do nível fundamental, nos últimos anos, concentrou-se cada vez mais
em determinar de onde provém o sentido, desde a análise das precondições
tensivo-fóricas para seu estabelecimento até as primeiras projeções de valores sobre os
elementos constituintes dos quadrados semióticos.
O estudo do nível narrativo – merecedor nos anos 80 de grande atenção dos
pesquisadores, que foram capazes de sistematizar praticamente toda a sintaxe narrativa
– tem recebido atualmente maior atenção em sua dimensão semântica, com o
desenvolvimento das pesquisas sobre as paixões.
Sem dúvida, o nível discursivo é aquele que ainda oferece mais problemas aos
semioticistas, pois ainda há uma série de questões a ser estudadas com mais cuidado. É
o caso dos níveis enunciativos.
Uma das grandes dificuldades da Semiótica atual é abordar mais eficientemente
certos problemas discursivos. Pensando inicialmente na sintaxe discursiva, essa questão
dos níveis está associada sobretudo à categoria de pessoa, que “é essencial para que a
linguagem se torne discurso” (Fiorin, 1999, p. 41 e 68-69), e, mais especificamente, a
“um problema de delegação de ‘voz’” (Barros, 1988, p. 84).
A actorialização é um dos componentes da discursivização e constitui-se por
operações combinadas que se dão tanto no componente sintáxico quanto no
semântico do discurso. Os mecanismos da sintaxe discursiva, debreagem e
embreagem, instalam no enunciado a pessoa. Tematizada e figurativizada, esta
converte-se em ator do discurso (Fiorin, 1999, p. 59).
Assim, a instalação dos atores (individuais, coletivos, figurativos ou não
figurativos [Greimas & Courtés, 1983, p. 34]) no enunciado, por mecanismos de
debreagem ou de embreagem, começa a explicitar as “vozes” que aparecerão no texto.
Analise-se, por exemplo, o papel do narrador. Definido como o destinador do
discurso, explicitamente instalado no enunciado (Greimas & Courtés, 1983, p. 294), o
narrador recebe a competência de “/poder conduzir/ o discurso de diferentes modos”
(Barros, 1988, p. 85).
Ora, se o narrador é semioticamente o “condutor” do discurso e se essa
possibilidades de actorialização discursiva –, isso reitera a importância da noção de foco
narrativo4, que
é, sem dúvida, um problema de delegação de “voz”. Considera-se a delegação
de voz como resultante da operação de debreagem ou embreagem ou de
projeção da instância da enunciação no discurso. Em termos de sintaxe,
pode-se afirmar que o sujeito da enunciação, para construir seu objeto, instala um ou mais sujeitos delegados, aos quais atribui o /dever-fazer/, que os instaura como
sujeitos, e o /poder-fazer/ ou poder falar por ele, que os qualifica, que os dota
de “voz” (Barros, 1988, p. 84).
O narrador é, portanto, um sujeito delegado, qualificado como tal por uma
instância superior, que lhe dá voz, que lhe atribui o /poder conduzir/ o discurso. Essa
instância, que remete à “estrutura da enunciação, considerada como quadro implícito e
logicamente pressuposta pela existência do enunciado” (Greimas & Courtés, 1983, p.
150), inclui a figura do enunciador, cujo simulacro discursivo é o narrador (Barros,
1988, p. 75). O processo de delegação de voz constrói-se na enunciação, instância a
partir da qual se projeta no enunciado aquele que vai “falar”. Há, pois, dois papéis
claros: o do narrador, que está enunciado, e o do enunciador, que enuncia.
Dentro do próprio discurso, é possível ainda que o narrador delegue voz a outros
actantes, subordinados a ele, num processo similar ao que lhe permitiu ser dotado de
voz. Por essa debreagem de 2º grau, instalam-se no texto os interlocutores, entendidos
como os actantes que, no papel de destinadores de um discurso, reproduzem, sob a
forma de um simulacro, no interior do discurso “principal”, a estrutura da comunicação
(Greimas & Courtés, 1983, p. 239).
Existem, pois, três níveis enunciativos. Em cada um deles, há uma relação
subjetal, envolvendo destinador e destinatário. O nível do enunciador é implícito,
enquanto os demais se manifestam no enunciado. Assim, apenas o narrador e o
interlocutor têm voz nos textos; o enunciador somente delega voz ao narrador.
1º nível enunciativo
(pressuposto) Enunciador Enunciatário
2º nível enunciativo
(manifestado) Narrador Narratário
3º nível enunciativo
(manifestado) Interlocutor Interlocutário
Vale a ressalva de que
termo “sujeito da enunciação”, empregado freqüentemente como sinônimo de
enunciador, cobre de fato as duas posições actanciais de enunciador e
enunciatário (Greimas & Courtés, 1983, p. 150),
É possível analisar a relação entre destinadores e destinatários em todos esses
três níveis enunciativos. As relações entre narrador e narratário e entre interlocutor e
interlocutário são mais simples de ser estudadas, na medida em que são explícitas. Já as
relações entre enunciador e enunciatário geram mais dificuldades justamente porque são
pressupostas.
Pensando apenas no primeiro nível enunciativo, já temos um problema teórico a
ser resolvido. Se o enunciador estabelece uma relação subjetal com o enunciatário,
assumindo o papel de destinador pressuposto do discurso, é preciso imaginar qual seu
estatuto, ou seja, é necessário delimitar como ele se constitui como tal. O mesmo pode
ser feito para o enunciatário, que está na posição de destinatário pressuposto do
discurso.
Barros (1988, p. 136-142) apresenta uma saída para isso ao demonstrar, no
estudo narrativo e discursivo da enunciação, que há dois percursos temáticos a ser
considerados: o da comunicação e o da produção. O primeiro engloba “tanto o fazer
persuasivo do enunciador quanto o interpretativo do enunciatário” (p. 137); o segundo
diz respeito ao momento em que “o enunciador e o enunciatário, sincretizados no sujeito
da enunciação, lêem-se como sujeitos produtores do discurso-objeto” (p. 139). Desse
modo, o percurso da comunicação coloca-se como um problema de argumentação, de
valores. Isso significa que existem precondições para que o enunciador se discursivize,
afinal, mais do que um actante, do que uma posição sintáxica, ele se configura
semanticamente como um “lugar de investimento de valores” (p. 139).
Embora nesse percurso da produção se opere com apenas o conceito de “sujeito
da enunciação”, o enunciador e o enunciatário – como instâncias discursivas diferentes e
complementares – fazem parte desse percurso, uma vez que a constituição do sujeito da
enunciação acaba por determinar o estatuto do enunciador e do enunciatário. De acordo
com as formulações originais de Barros, no percurso temático da produção, a casa do
destinatário-sujeito seria ocupada pelo sujeito da enunciação, enquanto a do
destinador-manipulador caberia ao “produtor” e a do destinador-julgador, ao
“receptor-interpretante”. Dessa forma, o sujeito da enunciação seria simultaneamente manipulado
e sancionado nesse percurso:
Estruturas
Narrativas
Destinador-Manipulador
Destinatário-
Sujeito
Destinador-
Julgador
Estruturas Discursivas:
Tema da Produção PRODUTOR
SUJEITO DA
ENUNCIAÇÃO
RECEPTOR-INTERPRETANTE
(Cf. Barros, 1988, p. 140)
Esse esquema acrescenta dois papéis temáticos à análise enunciativa: o
“produtor” e o “receptor-interpretante”. Mas não se trata de uma complexificação do
problema dos níveis enunciativos; ao contrário, a sugestão teórica de Barros permite que
se determine quais são as precondições para que o sujeito da enunciação – que funciona
como uma espécie de origem dos valores veiculados no enunciado – constitua-se
semanticamente. É o ponto de partida para chegarmos ao estatuto do enunciador.
Sobre o destinador-manipulador no percurso temático da produção, Barros
afirma:
O produtor é o destinador-manipulador responsável pela competência do sujeito da enunciação e origem de seus valores. Deve ser entendido como o
destinador sócio-histórico (ou psico-sócio-histórico). O sujeito da enunciação
constrói o discurso enquanto delegado do destinador-produtor, o que lhe dá
Já o destinador-julgador é aquele que
julga e sanciona o fazer do sujeito da enunciação, com base no contrato
passado entre destinador-produtor e sujeito (p. 141).
Ao reconhecer que o sujeito da enunciação – e, por extensão, enunciador e
enunciatário – sofre, simultaneamente, manipulação e sanção e que esses destinadores
são produtos de coerções psico-sócio-históricas, tem-se que o discurso se constrói não
numa torre de marfim, mas sim num universo de “confrontos sociais” (p. 141). De fato,
determinar
os destinadores do sujeito da enunciação corresponde a inserir o texto no
contexto de uma ou mais formações ideológicas, que lhe atribuem, no final das
contas, o sentido (p. 141).
Enunciador e enunciatário são, portanto, constituídos por essa espécie de
destinador “psico-sócio-histórico” do discurso, capaz de manipular e sancionar o /fazer
enunciativo/ do sujeito da enunciação. É por isso que o objeto-discurso que se engendra
pelo /fazer/ do enunciador possui uma autonomia relativa, já que os valores implicados
no enunciado são “determinados de antemão pelo destinador sócio-histórico” do
discurso (p. 141).
Esse destinador psico-sócio-histórico influencia o enunciador, como produtor
implícito do discurso, e o enunciatário, como receptor implícito do discurso. O primeiro
é o responsável pelas projeções dessas formações ideológicas no objeto-discurso; o
segundo é quem avalia sua eficiência discursiva. Desse modo, a relação
enunciador-enunciatário nasce de um jogo entre coerções psico-sócio-históricas veiculadas pelo
enunciador e a maneira como o enunciatário as sanciona.
De acordo com essa idéia, o estatuto do enunciador e do enunciatário se
estruturaria da seguinte maneira:
SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO
Enunciador: responsável por projetar nos enunciados as formações ideológicas
Enunciatário: responsável por sancionar a eficiência discursiva do objeto-discurso
É importante insistir na tese de que esse esquema não representa uma
complexificação ainda maior da análise semiótica. Ele apenas permite considerar o
enunciado produto de certas formações ideológicas, e não apenas como projeção de uma
instância pressuposta. Trata-se de uma possibilidade de determinar o estatuto do
enunciador e do enunciatário, mostrando como eles se constituem como sujeitos sociais,
o que funcionaria como uma espécie de precondição para a análise dos níveis
enunciativos.
Essa proposta teórica ajuda a desfazer a impressão de que o modelo semiótico é
inimigo da historicidade. Essa crítica, talvez nascida como uma resposta à base
essencialmente estruturalista dos primórdios da pesquisa semiótica, se algum dia teve
fundamentos, perdeu-os completamente quando os estudos enunciativos passaram a
considerar que o enunciador, como uma instância produzida por um tipo de coerção
psico-sócio-histórica, é sobretudo alguém que se pronuncia no “espetáculo do mundo”,
para usar a bela expressão de Ricardo Reis.
Bertrand nota que, ao longo dos anos 70, a Semiótica afastava-se das discussões
sobre a enunciação, porque “ela criava problema”, na medida em que representava “a
entrada (...) do universo extralingüístico na imanência tão laboriosamente construída do
objeto-linguagem”. Por isso, os semioticistas desconfiavam “de um sujeito da fala
soberano”, temendo, com isso, “o retorno à ontologia do sujeito, que caracterizava
particularmente os estudos literários”. Assim, se a Semiótica, num primeiro momento,
atualmente, com as adiantadas pesquisas sobre a enunciação, assistimos à “sua
reintegração no corpo da teoria” (2003, p. 79-80).
Hoje em dia, diversos conceitos – como a intertextualidade, a interdiscursividade
(que incluem as noções de heterogeneidade mostrada e constitutiva), o éthos, a
argumentação, o pacto fiduciário entre enunciador e enunciatário, a polifonia, o
dialogismo, o estilo, as formações discursivas, a cenografia, entre tantos outros – têm
sido desenvolvidos por semioticistas, analistas do discurso e demais lingüistas para dar
conta de explicar as múltiplas facetas da enunciação. A sugestão de que o sujeito da
enunciação se constrói a partir de coerções psico-sócio-históricas é uma contribuição a
essa discussão.
Claro que existe o risco de que o produtor e o receptor-interpretante sejam
tomados como seres do mundo real, que ocupariam os lugares do enunciador e do
enunciatário, mas vale, nesse caso, a ressalva de Barros:
Cabe esclarecer, porém, o modo como se concebe tal estudo [do produtor e do
recpetor-interpretante]. Não se trata, como alguns poderiam supor, de analisar
o ser ontológico. Pretende-se refazer os caminhos narrativos do
destinador-manipulador e do destinador-julgador, assim como os percursos temáticos do
produtor e do recpetor-interpretante, pelo recurso aos textos que formam o contexto do discurso em questão. Revê-se o problema do contexto em termos de relações intertextuais (1988, p. 142).
De fato, está-se diante de uma possibilidade de chegar às formações discursivas
ou ao “contexto”, tomando-os como textos e, portanto, passíveis de serem analisados
segundo o método semiótico.
O primeiro nível enunciativo está organizado a partir da relação entre o
enunciador e o enunciatário. Esses dois papéis discursivos, sincretizados no sujeito da
enunciação, são produtos de coerções históricas, e só é possível captá-los a partir das
marcas textuais que funcionam como projeções ideológicas.
Essas coerções pressupõem um ponto de vista a partir do qual o destinador
psico-sócio-histórico do discurso inicia o processo de axiologização dos conteúdos
semânticos do texto. Esse sujeito coletivo, precondição para o /fazer enunciativo/, pode
ser apreendido a partir dos discursos que circulam dentro de um determinado campo,
um conjunto de formações discursivas estão em relação de concorrência em
sentido amplo, delimitando-se reciprocamente (Charaudeau & Maingueneau,
2004, p. 91).
Dessa forma, será preciso também aceitar que o enunciador, como produtor
implícito do discurso,
pode ser considerado (com mais ou menos pertinência, conforme o tipo de
enunciado de que se trata) como o representante e o porta-voz de um grupo
social, de uma instância ideológico-institucional (Kerbrat-Orecchioni, 2002, p.
203).
Considerar que a ideologia5 do enunciador é influenciada por um sujeito coletivo
que está sempre a montante da produção discursiva pode levar à falsa conclusão de que,
dentro de um mesmo campo discursivo, a enunciação – por estar sempre sob a
influência basicamente das mesmas coerções – seja exatamente a mesma, acabando com
o efeito de individuação que, no final das contas, costuma caracterizá-la. Mas não é isso
que ocorre. O fato de vários sujeitos da enunciação serem construídos a partir de uma
determinada formação ideológica não significa que os enunciados produzidos por eles
sejam idênticos do ponto de vista da visão de mundo. O sujeito da enunciação não é
apenas assujeitado. Na verdade, a relação entre ele e os discursos circulantes pode ser
extremamente variável, e é o enunciado que vai indicar como se organiza essa relação.
Com efeito, o
enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento
social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos
existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de
enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele
também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não
sabe de que lado ele se aproxima desse objeto (Bakhtin, 2002, p. 86).