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As leituras da Retratos − O que dizem os autores

Convido a iniciarem a leitura dos capítulos que seguem a partir das reflexões dos especialistas da Unesco na área da educação Maria Rebeca Otero Gomes e Célio da Cunha. Eles apontam os desafios, revelados pela pesquisa, que necessitam ser encarados e superados para a melhoria de nossos indicadores de leitura, como condição imprescindível para a construção do desenvolvimento social, humano e cultural sustentável de nossa sociedade. Mas a leitura é especialmente instigante porque eles exploram as causas da crise na leitura trazendo uma citação de Sergio Paulo Rouanet sobre a crise da cultura que, a meu ver, traduz de forma exemplar como a “planetarização” (promovida pelas redes sociais) vai “destruindo a curiosidade intelectual [...] sem a qual deixa de existir o prazer da leitura” (Rouanet, 2003, p. 71).

Não poderia deixar de convidar Ana Lúcia Lima, coordenadora da pesquisa INAF − Indicador de Alfabetismo Funcional, tantas vezes citada em nossas análises e em artigos desta obra. Ana aceitou nossa provocação para um diálogo entre as duas pesquisas: Retratos e INAF. Ela optou por percorrer esse “encontro” a partir dos “não leitores” de livros (aqueles que declararam não ter lido nenhum livro, inteiro ou em parte, em um período de três meses), com foco nos desafios do letramento, na adolescência e juventude, para a formação de leitores. Destaca como as limitações em termos de letramento apontadas pela INAF ajudam a

compreender os hábitos de leitura de livros dos brasileiros (de 15 a 60 anos) revelados pela Retratos da Leitura no Brasil. Apresenta também, sem deixar dúvidas, como se define o alfabetismo, “entendido como a capacidade de compreender, utilizar e refletir sobre informações contidas em materiais escritos de uso corrente para ampliar conhecimentos e participar da sociedade, considerando duas dimensões: Letramento e Numeramento”.

A queda no percentual de leitores, que, nesta edição da Retratos, inicia após os 10 anos e se acentua após os 14 anos, despertou nosso interesse em buscar explicações para essa “fuga”. Convidamos Rita Jover-Faleiros, que desenvolve esses estudos na UFSP. Por que perdemos e onde estão os leitores que perdemos é o que Rita nos leva a descobrir em “Leitores que perdemos pelo caminho”. Ela foi buscar explicações sobre o comportamento leitor dos estudantes no repertório de leituras e no perfil leitor dos professores que responderam à pesquisa. Para ela, os modelos de formação dos currículos escolares; a formação literária do professor; a seleção das obras literárias lidas, e as não lidas, na escola revelam que “a formação de leitores de literatura [na escola] [...] está em perigo”. Entre outras razões, ela vê na transição entre o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, quando mudam as razões e o modo como se lê literatura na escola, uma das principais explicações para o desinteresse desses leitores.

Quase todas as análises sobre a formação leitora, a partir dos dados da pesquisa, privilegiam a população com mais de 5 anos, especialmente após ingressar no Ensino Fundamental. Idmea Semeghini-Siqueira me “encantou” ao apresentar novas inquietações sobre a necessidade de oferecer às crianças pequenas, na Educação Infantil (creche e pré-escola), em especial as oriundas de famílias mais vulneráveis, “diferentes linguagens de forma lúdica, propiciando o despertar da imaginação criadora para que [as crianças] se envolvam com a aprendizagem da leitura e o encantamento pela leitura” como

“iniciação” à formação do jovem leitor. É o que ela defende em “O encantamento das crianças pelos livros e pela leitura nas famílias e nas escolas: letramento emergente e alfabetização”. Entende que é urgente que toda escola pública receba investimentos (do Fundeb!) “para criar ambiente acolhedor e instigante” − a Sala de Múltiplas Linguagens −, imprescindível para o letramento emergente lúdico. Defende também que é preciso reorientar a concepção de alfabetização.

Entender a importância das bibliotecas escolares na formação de leitores e como elas são percebidas pelos estudantes entrevistados nesta edição foi a principal orientação para a reflexão encomendada a Maria das Graças Monteiro Castro − que também analisou os resultados da pesquisa Retratos da Leitura em Bibliotecas Escolares realizada pelo IPL em 2019 e aplicada pelo Insper (conheça em www.prolivro.org.br). Para Graça, esses dois estudos reúnem elementos e indicadores fundamentais para orientar a constituição de um sistema de bibliotecas escolares segundo os diferentes segmentos da educação formal. Em “Bibliotecas escolares – Livros nas estantes ou leituras que conquistam leitores e promovem aprendizagem?”, Graça, para orientar sua análise, define a biblioteca escolar como “uma das estruturas do sistema organizacional escolar, que deve estar vinculada ao projeto pedagógico e educativo da escola”, e acrescenta que, para que seja um espaço formativo do leitor, prescinde da formação de mediadores de leitura (bibliotecários, atendentes ou professores). Ela também destaca que a indicação do professor, na pesquisa, como principal influenciador e o perfil leitor dos estudantes (de 5 a 17 anos) contradizem a avaliação das dificuldades da escola na formação de leitores. Em relação aos acervos, defende ser fundamental ter em mente que se estará selecionando um texto para uma outra pessoa (mesmo se crianças) e que a seleção deverá se orientar pelas necessidades do

futuro leitor, destacando a importância dos textos informativos e dos textos literários (estes, enquanto arte) para a formação do sujeito leitor. Acha que os dados da pesquisa acerca das percepções dos entrevistados sobre o que entendem como bibliotecas escolares apontam para uma relação direta entre os diferentes níveis de escolaridade e a motivação e a frequência de uso da biblioteca.

Propus a Rodrigo Lacerda nos relatar sua trajetória leitora com o propósito de descobrir, nesse percurso, leituras e autores que seduzem a tal ponto que despertam a vontade de “imitar” ou de “botar pra fora” o que tais leituras desvendaram sobre sua existência. Leituras que transformam um leitor em autor devem ser poderosas. A significativa aprendizagem que Rodrigo nos traz, em especial para mediadores e para

aqueles que sonham descobrir como formar leitores, destaca como os interesses mudam

nessa trajetória, que vai se desenhando desde a infância, ganhando complexidade na adolescência, ao buscar personagens que provoquem maior compreensão de si ou do mundo na busca de “companhia” para seus problemas, ou, quando já adulto e escritor,

sem qualquer compromisso com identidade, amando e vasculhando centenas de autores.

“Por onde andará a literatura infantil e juvenil brasileira?”, pergunta João Luís Ceccantini, para nos dizer que, segundo sua leitura dos resultados da pesquisa, os índices de leitura de literatura contradizem aqueles que dizem que cada vez se lê menos literatura. Na defesa da sua tese ele destaca que 28,9% dos entrevistados declararam-se leitores de livros de literatura, o que corresponde a cerca de 55 milhões de leitores; além de 31,7% que declararam ser

leitores de literatura em outros formatos digitais, o que corresponde a cerca de 61

milhões de leitores. Mas também traz uma dúvida sobre esses leitores, ao verificar que um número significativo não indicou o título do último livro que teriam lido. Ceccantini traz outro contraponto importante ao analisar as obras citadas pelos leitores de literatura infantil e juvenil: a prevalência de obras estrangeiras, apesar da diversidade e da qualidade da produção nacional, com “alto padrão criativo de nossa literatura infantil e juvenil, reconhecida nacional e internacionalmente”. Mas o mais perturbador, nas palavras dele, é a ausência, na lista de autores citados, de autores

consagrados como Lygia Bojunga, Marina Colasanti, Ziraldo, Ricardo Azevedo, João Carlos Marinho, plenamente inseridos nos acervos enviados a bibliotecas escolares de todo o país. Essa lamentável constatação o leva a apontar como fundamental, para reverter o quadro deficitário em relação à leitura, a necessidade de políticas e ações mais efetivas para garantir a mediação de leitura e a formação de mediadores (professores, bibliotecários e agentes).

Em “Literatura de ficção, escola e utopia”, Ricardo Azevedo nos leva a percorrer poesias para mostrar a importância da literatura e da ficção na formação do jovem. Defende a literatura que “trabalhe as semelhanças/ identidade entre as pessoas” e não as diferenças (infantil, juvenil, adulta). Para ele, “a criação da utopia depende da capacidade de criação das pessoas, e essa capacidade tem a ver, entre outras coisas, com a ficção: a arte de imaginar o que não existe, mas poderia existir”. Portanto, não depende de idade e é fundamental para que o jovem experimente emoções ou imagine situações que ainda não viveu.

Mariana Bueno, economista e responsável pela pesquisa Produção e Vendas do

Setor Editorial Brasileiro, atendeu nossa “encomenda” para analisar se o que a Retratos revela sobre os consumidores de livros está em sintonia com os estudos desenvolvidos sobre o mercado editorial e se esses conhecimentos podem orientar a cadeia produtiva. Em “A demanda por livro: dois lados de uma mesma moeda”, Mariana destaca vários achados importantes, como a preferência dos leitores pelo livro em papel e o preocupante, para o mercado livreiro, aumento expressivo do uso do tempo livre nas redes sociais e acessando conteúdos via

streaming. Outra sinergia entre os estudos

verifica-se na redução de leitores de nível superior que rebate, entre 2014 e 2019, na queda do subsetor de CTP (Científicos, Técnicos e Profissionais). Mas, além de outras leituras, a meu ver, Mariana deixa alguns recados importantes para a cadeia produtiva: se os leitores de literatura leem e consomem livros cinco vezes mais do que os demais brasileiros leitores, parece ser estratégico investir no incentivo e, eu diria, na formação do leitor de literatura para “gerar um incremento positivo na demanda por livros”. Mariana “cutuca” um pouco mais ao afirmar

que “a expansão concreta da demanda” por livros depende de “pleitos” que promovam políticas públicas voltadas à formação de uma população leitora dentre aqueles quase 50% que se declaram não leitores.

Fabio Malini, convidado a refletir sobre os impactos da leitura de livros em plataformas digitais no Brasil a partir dos dados da pesquisa, certamente foi quem me trouxe mais inquietações, ao identificar, em seu artigo “A plataformização da leitura e redes sociais: impactos no consumo de livros”, como as plataformas (Facebook, WhatsApp, Instagram, etc.) impactam a leitura à medida que priorizam os conteúdos, atores (autores) e a agenda que serão mais visibilizados. Nesse sentido, encontra “achados” na pesquisa que apontam para uma “mutação” na ideia de público leitor para “amigo- -seguidor”, na ampliação do percentual daqueles que citam o autor como fator de escolha e de compra do livro. Para ele, essa preferência, não pela obra ou o tema, indica que o interesse é despertado pela identificação e a relação de “proximidade” que esse “leitor” estabelece, ou que acredita que tem, com esse autor nas redes e mídias sociais. Malini, ao defender que essa mutação pode impactar o consumo de livros, destaca também a ampliação do uso da internet em todos os segmentos e aponta o interesse por temas “plataformizados” que polarizam nas redes sociais, aglutinando grupos e definindo audiências em torno de “autores” e suas ideias. Na indicação de gêneros lidos por esses leitores, aponta a preferência por textos mais ligeiros, como o conto e a poesia.

José Castilho Marques Neto, o conhecido pai do PNLL, e somente ele, poderia nos ajudar a explicar por que os números da Retratos 5 nos frustraram tanto. Em seu artigo, “Retratos da leitura no Brasil e as políticas públicas do livro e leitura − O que nos diz a série histórica”, Castilho nos traz um apanhado importante sobre a escala desse desmonte ou de como esse projeto, que vai aos poucos minando o

valor simbólico do livro e o direito à leitura e à literatura, está sendo desenhado. Mas não poderia deixar de destacar, porque compartilho integralmente, o alerta que Castilho apresenta, com tantos argumentos, sobre as responsabilidades do Estado: na garantia dos “direitos básicos da cidadania para todos, somente o poder público, em todos os seus níveis federativos, tem a possibilidade de trabalhar com programas e ações com escala para atingir a maioria da população”, em especial em um país tão complexo, diverso, com tantas exclusões e com a tamanha extensão. Mesmo reconhecendo a importância das organizações não governamentais e de outros entes da sociedade civil que lutam por um Brasil de leitores, em especial em momentos de desmonte como o atual, para ele “é igualmente verdadeiro que só alcançaremos um Brasil de leitores se houver uma forte política pública”. Eu acrescentaria: nós, da sociedade civil, devemos ficar atentos e alertas aos “cantos das sereias”: as responsabilidades do Estado não podem ser transferidas, sob o argumento da “livre inciativa” ou da qualidade desses serviços, para a sociedade civil ou para o privado.

* Zoara Failla Socióloga pela Unesp, com

mestrado em Psicologia Social na PUC-SP e pós-graduação pela FGV-SP. Foi consultora do PNUD e coordenou o Programa de Melhorias do Ensino Médio/SEE-SP. Consultora nos 5 PALOPS, entre outras atividades na Fundap. Desde 2006 responde pelos projetos do Instituto Pró-Livro, tendo coordenado o Programa Mais Livro e Mais Leitura, em parceria com o MINC; a Plataforma Pró--Livro e as quatro edições do Prêmio IPL – Retratos da Leitura. Coordenou também as três últimas edições da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil e, em 2018/2019, a realização da Pesquisa Retratos da Leitura – Bibliotecas Escolares. Foi organizadora das obras Retratos da Leitura no Brasil

3 e 4 e é autora de vários artigos sobre o

Leitura

transformando