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As linhas estruturantes de Grande sertão: veredas

3 “NO MEIO DO REDEMOINHO” DO TEMPO DA NARRATIVA

3.1 As linhas estruturantes de Grande sertão: veredas

Grande sertão: veredas, constituído como romance, encena uma narração oral. O que os

leitores têm “[...] diante de seus olhos é uma espécie de tradução escrita do espelhamento de uma narrativa oral feita por um ex-jagunço [...]” (AGUIAR, 2001, p.62, grifo do autor). Para isso, Guimarães Rosa usa, na obra, uma temporalidade recorrente nas narrativas orais e também escritas: o relato de fatos que se passaram em um momento afastado da narração. Devido aos efeitos do livro que levam a supor que a narração está acontecendo no tempo presente, tal como

um relato oral, o narrador encena dispor de menor domínio sobre a temporalidade, o que faz com que a narração aparente certa falta de planejamento temporal, de não premeditação do relato.

Riobaldo conta sua vida ao interlocutor em voz alta e uma pessoa que narra dessa forma durante certo tempo desgoverna-se mais facilmente do que aquela que escreve, está mais sujeita a oscilações subjetivas, perde com frequência os fios condutores da trama, deixando-se levar pelo fluxo verbal, o que acentua ainda mais a desorganização temporal presente no discurso da narrativa. Todo sujeito que lembra enfrenta a dificuldade, senão a impossibilidade, de reviver o passado tal e qual foi. Posto o limite fatal que o tempo impõe ao sujeito, não lhe resta alternativa senão reconstruir, no que lhe é possível, a fisionomia dos acontecimentos. Nesse esforço, exerce um papel condicionante todo o conjunto de noções passadas e presentes que, involuntariamente, leva-o a alterar o conteúdo da memória. Assim, ao ser remanejado pelas ideias e ideais passados e presentes do sujeito, o passado sofre um processo de desfiguração, de desmontagem e remontagem, de superposição, de concessão de privilégio. Esse movimento da memória é evidenciado ao compararmos os níveis narrativos que estruturam o romance.

Pode-se dizer que a escritura de Grande sertão: veredas organiza-se por meio de um jogo textual que relaciona duas linhas narrativas que só podem ser consideradas isoladamente por um efeito de decisão de leitura e para que se tente desarticular seus elementos, a fim de explicitar as leis de sua composição. Baseando-nos no estudo de Manuel Cavalcanti Proença (1959), “Trilhas no Grande sertão”, e no de ensaístas posteriores que seguiram esse método, adotamos a separação do romance em linhas para efeito de análise, para iluminar a obra e facilitar sua compreensão.

Grande sertão: veredas, segundo Manuel Cavalcanti Proença (1959, p.155), estrutura-se

em duas linhas paralelas: uma objetiva – de combates e andanças –, e uma subjetiva – de marchas e contramarchas de um espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o Diabo. Nesse romance há, ainda, segundo o crítico, uma superposição de planos, que ele divide em três partes: a primeira parte é individual, subjetiva, de verdadeiro antagonismo entre os elementos da alma humana, que seria o plano subjetivo; a segunda é coletiva, subjacente, influenciada pela literatura popular que faz do jagunço Riobaldo o Dom Riobaldo do Urucúia, cavaleiro dos Campos Gerais, um símile do herói medievo, retirado da tradição dos romances de cavalaria e aculturado nos sertões do Brasil Central; e a terceira parte é telúrica, mítica, em que os elementos naturais – rio, sertão, vento, buritis, destino e mar – tornam-se personagens vivos e atuantes; essa parte diz respeito ao plano mítico.

José Carlos Garbuglio (2005, p.9), no texto “A estrutura bipolar da narrativa” – dando continuidade ao estudo das linhas que estruturam Grande sertão: veredas –, diz que na linha objetiva transcorrem os acontecimentos e fatos de que participa o narrador, seria a história, a sucessão de fatos em que se envolve Riobaldo como jagunço. Na linha subjetiva, estão as indagações formuladas pela personagem-narradora, à busca de uma ordenação do mundo para atingir um grau possível de percepção e reconstrução da realidade vivida pela personagem protagonista. O crítico nota, o que pode ser acrescido à divisão inicialmente elaborada por Cavalcanti Proença (1959), que a linha objetiva trata dos fatos em sentido diacrônico, mas apresentando a sucessão dos acontecimentos de maneira fracionária que aparentemente os tumultua e lhes dificulta a ordenação. A subjetiva, por sua vez, os vê e analisa em sentido sincrônico, buscando penetrar no fundo das causas e consequências dos acontecimentos. A primeira linha é expositiva, a segunda, de natureza crítica. Uma decorre da outra visando o estabelecimento da articulação entre as duas faces da realidade: o tempo do acontecido e a compreensão do acontecido, a recriação e a análise (GARBUGLIO, 2005, p.10).

Podemos dizer que a linha objetiva de ambos os críticos diz respeito à história, no sentido genettiano, ou seja, “o significado ou conteúdo narrativo” (GENETTE, [197-], p.25). Notamos, entretanto, que a linha subjetiva não é pensada da mesma forma pelos dois críticos. Para Cavalcanti Proença (1959), a segunda linha ou nível, onde estão contidos elementos, principalmente, do primeiro e do segundo plano, destaca a subjetividade de Riobaldo, que está presente nas indagações e reflexões que acontecem tanto no tempo narrado (da história):

Pecados, vagância de pecados. Mas a gente estava com Deus? Jagunço podia? Jagunço – criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Êsmo disso, disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente. (ROSA, 1965, p.169),

quanto no tempo da narração – “[...] o acto narrativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar.” (GENETTE, [197-], p.25) –, momento da enunciação:

O senhor não vê? O que não é de Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa existir para haver – a gente sabendo que êle não existe, aí é que êle toma conta de tudo. O inferno é um sem- fim que não se pode ver. Mas a gente quer o Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dêle a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é êste. Nasci para não ter homem igual em meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor... (ROSA, 1965, p.49).

José Carlos Garbuglio (2005, p.26), por sua vez, não inclui na linha subjetiva as indagações e reflexões feitas pelo jagunço Riobaldo no tempo do narrado. De acordo com o crítico, o homo cogitandi, que é o narrador, somente pôde surgir depois do desaparecimento do

homo actuandi, o jagunço: “Enquanto atuava não tinha tempo de pensar, pois ‘fazia e mexia’.”

(GARBUGLIO, 2005, p.11), ou seja, ele só considera as reflexões feitas no tempo da narração. Todavia, o crítico vê um desdobramento na linha subjetiva, que chama sincrônica, que Manuel Cavalcanti Proneça (1959) não aponta. Para Garbuglio (2005, p.32-33), a linha sincrônica duplica-se, de um lado, em uma linha de especulação existencial, que objetiva reduzir o visível e invisível à unidade inteligível, assim, funda-se um processo prospectivo com o fim de romper o exterior para conferir o interior; essa linha assemelha-se à subjetiva de que fala Proença (1959); e de outro, em uma linha metalinguística, em que transparece a agudeza crítica do narrador consciente de sua arte e das dificuldades do tratamento da matéria bruta, a palavra.

Conclui-se, dessa forma, que o estudo de Proença (1959) completa o de Garbuglio (2005) e vice-versa. O primeiro, ao tratar da linha subjetiva, que é de indagações e reflexões, não deixa de considerar o tempo do narrado. E o segundo ressalta um aspecto importante da linha subjetiva, a metalinguagem, que o primeiro não aborda. De qualquer modo, as linhas e planos descritos aqui, só podem ser apreendidos pelo discurso, que é, para Genette ([197-], p.25), cujas proposições são aqui utilizadas para se ter maior clareza das distinções feitas pelos dois críticos, “[...] o significante, enunciado ou texto narrativo em si [...]”, ou seja, o único que se oferece diretamente à análise textual, a base da análise da narrativa literária, e por meio do qual apreendemos a história.