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2 A NARRAÇÃO COMO BUSCA DE ENTENDIMENTO

2.2 Riobaldo, aquele que mira e vê

Riobaldo-personagem vive por meio da memória de Riobaldo-narrador e este faz da memória seu instrumento de perquirição. Tudo o que rodeia o narrador de Grande sertão:

veredas e por ele é relatado sofre interferências de seus sentimentos, pois ele foi a principal

testemunha da própria aventura psicológica no passado e das ações praticadas naquele tempo. Os eventos passados que formam o universo criado por Riobaldo no presente da narração estão sob a luz da sua consciência atual, o que implica uma nova versão e interpretação do que é contado. Cada visão no universo do romance é filtrada pela consciência do narrador-protagonista e, por conta disso, o que se oferece ao interlocutor, e obviamente também ao leitor, é o resultado dessa filtragem.

Entramos no campo da segunda modalidade da regulação da informação narrativa, aquilo que Genette ([197-], p.183) chama de perspectiva narrativa, isto é, o que procede da escolha (ou

não) de um ponto de vista restritivo. Essa é a questão que foi, dentre todas as que respeitam à técnica narrativa, a mais frequentemente estudada depois do fim do século XIX, com resultados críticos incontestáveis. Porém, a maior parte dos trabalhos teóricos sobre esse assunto (que são, essencialmente, classificações) pecam, segundo o teórico, por uma confusão entre uma das categorias do modo e a voz, ou seja, entre a pergunta “qual é a personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva narrativa?” e esta bem distinta pergunta: “quem é o narrador?” – ou, para adiantar a questão, entre a pergunta “quem vê?” e a pergunta “quem fala?”

No que se refere ao modo, para evitar aquilo que os termos visão, campo e ponto de vista – usados por estudiosos como Jean Pouillon, Tzvetan Todorov, Lubbock e Blin para classificar as perspectivas narrativas – têm de especificamente visual, Gérard Genette ([197-], p.187) utiliza o termo, um pouco mais abstrato, focalização, que corresponde à expressão de Brooks e de Warren

focus of narration. Rebatizando os tipos de focalização, o teórico francês nomeia o primeiro tipo

– aquele que geralmente está presente na narrativa clássica, em que o narrador sabe mais que a personagem, ou, mais precisamente, diz mais do que aquilo que qualquer personagem sabe – de narrativa não-focalizada, ou de focalização zero. É a focalização onisciente. O segundo é a narrativa de focalização interna – aquela em que o narrador apenas diz aquilo que certa personagem sabe –, que pode ser fixa – quando a personagem focal, por exemplo, começa por ser uma e depois outra personagem – ou múltipla, como nos romances por cartas, em que o mesmo acontecimento pode ser evocado várias vezes segundo o ponto de vista de várias personagens- epistológrafas. O terceiro tipo é a narrativa de focalização externa, em que as personagens agem à nossa frente sem que tenhamos acesso aos pensamentos ou sentimentos delas.

Grande sertão: veredas é romance de voz – ou narrador – única, somente a voz de

Riobaldo é ouvida, nenhum ser, nenhum fragmento de realidade se torna perceptível para os leitores se não for expresso por ela. Quem vê e quem fala é Riobaldo. Segundo Lanser (apud REIS; LOPES, 2000, p.261), o tipo de narrador que pode ser identificado nesse romance, o autodiegético, pode especular apenas do exterior a propósito de outras mentes, ou seja, tudo o que este narrador limitado menciona acerca de outras personagens deve se basear naquilo que ele pôde, logicamente, observar, escutar e sobre o que pôde fazer conjeturas. Desse modo, conclui-se que a focalização do narrador relativamente às personagens à sua volta é externa. Sobre Diadorim, por exemplo, seu companheiro de luta mais próximo, seu amor impossível, o narrador observa: “Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de transparecer o que cismava

profundo, nem o que presumia.” (ROSA, 1965, p.49). Como narrador-protagonista, todavia, a focalização sobre ele mesmo – personagem – é interna e intensa, pois consegue rememorar o que sentiu quando passou pelos eventos narrados: “Assim, uns momentos, ao menos eu guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nêle.” (ROSA, 1965, p.19).

De acordo com Genette ([197-], p.189-190), a fórmula de focalização nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra, mas antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser breve. Ao fazer essa mescla de tipos de focalizações no seu romance – externa quando fala das personagens e interna sobre ele mesmo, o narrador, que rememora a própria história – Guimarães Rosa torna o ponto de vista narrativo imanente à matéria narrada; o modo de narrar de Riobaldo torna-se orgânico em relação ao que se narra. Dessa forma, o narrador penetra na matéria narrada de corpo e alma, por ser parte dela, ele é participante da matéria, não a vê de fora, parte de dentro dela para narrar (ARRIGUCCI JÚNIOR, 2004, p.134-135). Tal escolha permite que o leitor acompanhe de mais perto e com maior intensidade os conflitos do protagonista, além de contribuir para o movimento dialético da narrativa por propiciar maior identificação entre o leitor e o interlocutor, que, por conta do silêncio em que permanece, transforma-se em projeção do primeiro (COUTINHO, 1993, p.69). É como se, na verdade, Riobaldo estivesse rememorando e contando a história aos leitores de Grande sertão: veredas.

Jean-Paul Bruyas (1991, p.469) diz que, recusando a focalização onisciente ou uma estrutura que permitisse ao leitor ter acesso à consciência do protagonista, Guimarães Rosa nega ao leitor o retrato profundo das personagens e de Riobaldo. O crítico pergunta-se:

O que ele [Guimarães Rosa] nos dá? Uma pintura em pinceladas fragmentárias, fragmentadas, do comportamento e mesmo, no mais das vezes, do que há de mais elementar nesse comportamento: gestos e palavras comuns da vida a mais cotidiana – que podem certamente, ser por vezes significativos, mas cuja significação nunca é formulada. No fundo, o que conhecemos de Riobaldo, sem dúvida “o mais conhecido” dos personagens? (BRUYAS, 1991, p.469).

Porém, o discurso de Riobaldo, que é o indireto livre, aquele em que o narrador assume o discurso da personagem (GENETTE, [197-], p.172), é um dos meios para se chegar à consciência da personagem. Aqui, a sua fala é mediada por ela mesma, anos depois do ocorrido. Temos, pois acesso às especulações de Riobaldo, tanto no presente do discurso da narrativa, como no tempo do narrado. Em Grande sertão: veredas é-nos apresentado mais do que o comportamento da

personagem, que também é narradora, temos acesso à sua consciência, mas sempre mediada por sua fala.

A focalização escolhida sob as personagens, não permite que seja fornecido aos leitores o universo interior delas, elas não nos são apresentadas como um todo conhecido, tal como ocorre nos romances tradicionais. De acordo com Antonio Candido (2000, p.58), em seu estudo sobre as personagens, o romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, está, na verdade, retomando, no plano da técnica da caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória e incompleta com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Entretanto, esse tipo de visão é inerente ao ser humano, é uma condição que não escolhemos, mas a que nos submetemos. Por sua vez, no romance ela é criada, estabelecida e dirigida racionalmente pelo escritor, que delimita e encerra o conhecimento do outro.